novembro 28, 2010

Sá Carneiro - o Homem e o Mito

O Homem, como político e como líder partidário nunca foi consensual. Teve invariavelmente consigo a imensa maioria da "arraia miúda" do seu partido, mas nunca a maioria dos chamados "notáveis".
Comecei por fazer parte da imensa maioria da gente anónima que se revia no seu pensamento e na sua maneira de estar na política. Lia os seus escritos, as suas intervenções dedsde 1969- e admirava-o, crescentemente. Depois de 74, via-o na tv, ou, de longe, nos comícios. Uma só vez estive perto dele, a poucos metros, em Espinho. A minha Mãe avançou, como é seu costume, por entre a multidão, e foi felicita-lo. Eu não me atrevi...
Conheci-o pessoalmente apenas quando já era Primeiro-Ministro. Telefonou-me para o Serviço do Provedor de Justiça e perguntou-me se podia encontrar-me com ele, no seu gabinete da Gomes Teixeira, às 17.00. Disse que sim, sem hesitação, sabendo que tinha de adiar, logo de seguida, uma reunião marcada para essa hora. Sabia mais ou menos ao que ía, porque os jornais davam o meu nome como provável no governo AD, ainda em formação - só não sabia em que pasta.
Estava inquieta, tanto pelo convite que me esperava (apesar de uma "interessante" estreia no governo de Mota Pinto, não queria repetir) como pelo receio de não gostar da pessoa de Francisco Sá Carneiro: o meu "heroi" como figura pública ("mítico", se preferirem o termo, mas,como diria a personagem de telenovela, "mítico no bom sentido"...).
Poderia a falta de empatia ou simpatia pelo Homem concreto destruir a imagem arrebatadora da figura pública?
Receava que sim. Pelo telefone, numa breve troca de palavras pareceu-me seco, distante (eu detesto telefones, sobretudo se do outro lado não está alguém bem familiar...).
Cheguei à hora exacta, como é evidente, e fui imediatamente recebida - "a las cinco in punto de la tarde"!. Não tive de esperar nem um minuto, o que me surpreendeu. ("Tem berço" - lembro-me de ter pensado instantaneamento - é um Lumbrales"...).
A porta abriu-se e ele veio em direcção à entrada, recebeu-me à porta do gabinete, com um sorriso. Os olhos claros brilhavam, acompanhavam o sorriso. Um momento mágico: o Homem, com todo o seu charme, com todo o seu carisma. Era ele mesmo, tal qual sempre o imaginara. Absolutamente! Por isso, desde esse primeiro minuto, lhe falei como quem o conhece há muito tempo, como costumava falar com uma familiaridade antiga com Barbosa de Melo, Mota Pinto ou Rui Machete (e porque também ele me tratava do mesmo modo!). Da minha parte, sem preocupação de medir as palavras, sem hesitar em usar a boa disposição e o humor - que, em Portugal, é coisa quase sempre perigosa, porque nos levam à letra e não nos levam a sério. A impressão ali, era a contrária: Sá Carneiro estava vsivelmente divertido, respondia no mesmo tom, mais moderado, embora... Tive também a impressão de que sabia a história completa do meu incondicional "sácarneirismo", ainda que nunca tenha procurado averiguar quem lhe contou essa história. Por isso parti desse princípio e confirmei o facto pela palavra, em vários momentos da conversa - logo no início lhe disse qualquer coisa como "do PSD quase só conheço dissidentes, os meus amigos saíram todos do partido, os de Coimbra e os de Lisboa" (ele ria-se, mas o certo é que referiu, de imediato, os contactos recentes com Mota Pinto!)
Assim começava, no início de Janeiro de 1980, o ano mais feliz da minha vida.
Não terei estado em mais do que uma dúzia de cerimónias com Sá Carneiro. Mas quantas vezes me telefonou, sobretudo no princípio, enquanto teve a clara percepção de que me sentia insegura!
Ligava directamente e, às vezes, enganava-se no número e falava com as minhas secretárias - que logo me passavam a chamada, emocionadíssimas.
Nenhum outro político, ao nível de 1º ministro, actua assim... Não têm tempo a perder com a segunda linha dos seus governos...
Será um pormenor, mas, na minha opinião, muito mais significativo do que parece à primeira vista. É assim que se faz o espírito de equipa, é assim que se cria motivação, é assim que se consegue coesão e eficácia...
Interessava-se pelos problemas concretos, queria vê-los bem resolvidos, depressa e bem. Quando me telefonava era sempre para uma abordagem pragmática das questões, ou para me me dizer uma palavra simpática de encorajamento...
Talvez por isso tudo correu tão bem para mim - e, certamente, para para a maioria dos seus Ministros e Secretários de Estado (não todos - alguns, poucos, com ele não teriam lugar no governo seguinte e sem ele tiveram...).
Para esse meu ano inesquecível, que terminou a 4 de Dezembro, muito contribuiu o facto de um entendimento perfeito, tanto entre Sá Carneiro e Freitas do Amaral, como, no que especialmente me respeita, com Sá carneiro e Freitas do Amaral, o meu Ministro...
Publicada por Maria Manuela Aguiar

comentários:

Maria Manuela Aguiar disse...
Um amigo que fiz nesses 11 meses inesquecíveis foi António Patrício Gouveia (o chefe de gabinete de Sá Carneiro). Era um jovem muito inteligente e muito bem preparado - nem de outro modo alguém como Sá Carneiro o teria escolhido para uma missão tão crucial... - e, além disso, simpático, simples, divertido!
Com ele, sobretudo nas primeiras semanas, falava pelo telefone quase todos os dias - sempre que tinha um problema ou uma dúvida ou um projecto interessante a discutir. Ajudou-me imenso. Não era diplomata, mas conhecia a "casa" perfeitamente... Teve sempre todo o tempo do mundo para mim, para as minhas questões, para as minhas propostas. Espero que o resto do governo lhe tenha dado um pouco menos de trabalho... Pagou o "preço" de eu confiar tanto nele e na sua opinião.
Ainda hoje me custa a acreditar que também tenha desaparecido naquele 4 de Dezembro.
Considerava-o o futuro, o Sá Carneiro da geração seguinte. Se quisesse... Mas nem sequer sei se quereria, se era era militante do PSD. O partido foi coisa de que nunca falamos!

5 de Novembro de 2010 16:28
Maria Manuela Aguiar disse...
Com o resto do gabinete do 1º Ministro as relações não foram do mesmo tipo. De Pedro Santana Lopes, por exemplo, nem me lembro e Conceição Monteiro parecia-me menos comunicativa. De qualquer modo, as minhas "mensagens" para Sá Carneiro passavam mais por Patrício Gouveia do que por ela. Só mais tarde, no Parlamento, viria a conhecê-la mais de perto.

5 de Novembro de 2010 16:36
Maria Manuela Aguiar disse...
Com o próprio Sá Carneiro o relacionamente foi sempre fácil. Sentia que ali estava quem me compreendia!
E desde o princípio, como disse, tive a impressão que ele sabia bem que estava a conhecer uma das suas mais incondicionais "fãs", à face da terra...
Foi sempre a quinta essência da afabilidade.
Quando me dirigi a ele como "Senhor Primeiro Ministro", disse-me de imediato: "Não me trate por Primeiro Ministro!"
E eu, com o mesmo à vontade com que cruzava argumentos com os meus professores de Coimbra, respondi-lhe:
"Mas eu tenho de o tratar assim , porque sempre sonhei com o dia em que fosse Primeiro Ministro de Portugal!"
E mantive a posição: sempre o tratei pelo título!

5 de Novembro de 2010 16:51
Maria Manuela Aguiar disse...
Em matéria de títulos oficiais, aconteceu-me coisa bem pior, no dia em que tomei posse do meu 1º governo, que foi o Governo do Prof. Mota Pinto, em 1978-79.
Era então Secretária de Estado do Trabalho. Foi na Praça de Londres que entrei no carro que me estava destinado. Não guardo memória, nem da marca nem da cor, só do motorista, um homem pequeno, rosado, cerimonioso, que me perguntou, abrindo a porta traseira, com uma vénia: "Como é que Vossa Excelência deseja ser tratada? Por Senhor Secretário de Estado ou por Senhora Doutora?
"Senhora Doutora" - respondi sem sombra de hesitação, horrorizada com a alternativa!!!

5 de Novembro de 2010 17:03
Maria Manuela Aguiar disse...
Tenho muitas coisas a registar sobre esse 1º governo, que considero absolutamente decisivo para a democracia em Portugal, porque foi um governo de viragem, o primeiro de tendência não socialista. Ou seja, o primeiro de alternância, após 1974...
Mas isso fica para depois.

5 de Novembro de 2010 17:08
Maria Manuela Aguiar disse...
Voltando ao dia em que conheci Sá Carneiro:
A "convocatória" para o encontro foi tão súbita, que não tive tempo para ir a casa mudar de fato. E estava, como de costume, muito mal vestida, com um velho casaco de fazenda grossa, gola larga, desactualizada, xadrês preto e branco. Um horror!
A Branca Amaral, minha colega de gabinete na Provedoria da Justiça, muito frequentadora de meios políticos, irmã de Rui Pena e cunhada de Rui Machete, chamou-me a atenção para o facto.
E acrescentou que o Dr. Sá Carneiro era um homem muito observador, que não deixaria de reparar no casacão "demodé".
Solução encontrada por ela: emprestou-me o seu elegante casaco de peles!
Só um "senão": ela era mais pequena do que eu e isso notava-se um pouco no comprimento das mangas... Mas não demais!
E assim marchei, insegura por muitas e variadas razões, para a Rua Gomes Teixeira.

5 de Novembro de 2010 17:22
Maria Manuela Aguiar disse...
Antes de formular o convite para aquela particular Secretaria de Estado, Sá Carneiro perguntou-me se falava francês e inglês.
Não pude negar que sim, que falava...
Muito me lembrei dessa prudente cautela em governos posteriores, nos quais a mesma pasta foi ocupada por homens incapazes de dizer uma frase completa em qualquer dessas línguas...

5 de Novembro de 2010 17:26
Maria Manuela Aguiar disse...
A conversa decorreu sob o signo do insólito. Aquele Primeiro Ministro, com todo o seu carisma, não deixava ninguém indiferente: o interlocutor ou ficava intimidado ou eufórico.
Eu pertencia a esta segunda categoria.
As respostas que lhe fui dando não tiveram nada de convencional.
Quando me perguntou:"O que lhe parece ser Secretária de Estado da Emigração?" a reacção instintiva e franca foi esta: "Eu no Ministério dos Negócios Estrangeiros? Nem pensar! Ando sempre mal vestida e mal penteada."
Ele ria e eu ria. De facto, ambos estavamos muito divertidos.
O pior foi quando o Dr. Sá Carneiro chamou o Professor Freitas do Amaral, MNE, para vir participar na conversa. Eu já não conseguia mudar de estilo e imaginava que o cerimonioso líder do CDS estaria a pensar que o outro partido convidava estranhas criaturas para integrar o executivo e que uma delas estaria a seu lado no Palácio das Necessidades. Não sei se era ou não o que ele achava - nunca procurei averiguar. Nesse dia ele também sorria imenso. O certo é que nos viríamos aentender maravilhosamente, sem a mais pequena sombra de divergência...

5 de Novembro de 2010 17:45
Maria Manuela Aguiar disse...
Acabei a conversa a dizer a Sá Carneiro que Secretária de Estado da Emigração não queria ser, mas que por ele faria qualquer outra coisa, por exemplo, colar o seu retrato nas paredes ou ir, de balde e pá, pintar a sigla AD nas ruas...

5 de Novembro de 2010 17:49
Maria Manuela Aguiar disse...
Deu-me um curto prazo de 24 horas para repensar e dar a resposta definitiva.
O 1º conselho pedi-o ao meu anterior primeiro ministro e amigo de sempre, o Prof. Mota Pinto ( que foi quem me levou para a política...).
Ele foi a favor.
Depois fui jantar com a Branca e o Rui Machete, cujo 1º cargo governamental foi a emigração.
Igualmente a favor.
No dia seguinte dei o meu "sim" ao Primeiro Ministro. Pelo telefone, conforme o combinado.
Contei-lhe que tinha sido muito influenciada pelas conversas com Mota Pinto e Rui Machete. Ele atalhou, bem ao estilo da reunião do dia anterior:
"Ah, sim? Pensava que tinha sido eu a convencê-la!"
Ao que respondi logo, e convictamente:
"E claro que foi! Aceito "intuito personae". O mais possível! Mas acho que não vou ser capaz de dar conta da missão...Não me responsabilizo pelo resultado".
"Responsabilizo-me eu!" - disse Sá Carneiro.
Creio bem que ele entendeu perfeitamente a parte de humor e negativismo e a parte de verdade que havia na minha apreciação de capacidades. Essa terá sido uma das razões para me dar, por sua iniciativa, tanto apoio nas primeiras semanas - até sentir que eu estava completamente integrada e feliz na equipa do MNE...
E ele

5 de Novembro de 2010 17:55

Maria Manuela Aguiar disse...

Esse foi o 1º encontro com Sá Carneiro. O último seria 11 meses depois, já em Dezembro de 1980, no Hotel Sheraton, em Lisboa.
Uma magna reunião de dirigentes partidários da AD, de autarcas, de responsáveis pela campanha do General Soares Carneiro. Centenas! Salão cheio!
O General vinha na companhia do Prof. Mota Pinto (dos Açores?)e o avião chegou com um atraso enorme, mais de uma hora, talvez mesmo duas... Foi o nosso anfitrião Sá Carneiro que preencheu todo esse longo tempo extra. História atrás de história, muitos episódios das lutas pela "civilização" do regime, dos confrontos com militares, maxime, com o Presidente da República... Incluindo aquele do registo dos encontros com o PR em Belém, que, naturalmente depois de relatado ali, perante tanta gente, se tornou do domínio público, embora nem sempre fiel ao relato de que me lembro. Disse-nos Sà Carneiro que, quando o PR se dispunha já a aceitar a a existência de actas, após as reuniões entre os dois, ele lhe respondeu: "Agora, Senhor Presidente, nem com acta nem sem acta!"
Foi com pena que vimos, por fim, entrar na sala o General, visto que isso significava o fim daquele longo e esplêndido monólogo , em que ele parecia falar directamente só para cada um de nós, com enorme familiaridade e à vontade. Náo sabíamos que, para a maioria de nós, era também uma despedida...
Finda a cerimónia, vi Sá carneiro a caminho da porta de saída e não me aproximei - achava que,apesar do seu ar bem disposto, deveria estar muito cansado e não quis ser mais uma pessoa a retê-lo, com o meu cumprimento. A meu lado, estava o Zé Gama, deputado da Emigração do CDS (e, já então, meu grande amigo). Tal como eu, pensava que devíamos "poupar" o nosso 1º Ministro, não engrossando a fila de cumprimentos.
Mas Sá Carneiro, que parecia ver tudo, descortinou-nos no canto onde aguardavamos a vez de sair, e logo atravessou uns metros de sala, na diogonal, para nos vir, ele próprio saudar, com aquelas palavras de estímulo que sempre lhe ouvi. Era mesmo, definitivamente, a despedida!

11 de Dezembro de 2010 2.15

Maria Manuela Aguiar disse...

É por isso que estranho as versões de que Sá Carneiro se mostrava tenso e enervado, à vista dos olhares dos jornalistas, nesses últimos dias de campanha, como escreve, por exemplo, Avilez e creio que também Pinheiro. Nunca o vi assim! Mesmo na sua intervenção final - a que já não foi para o ar, e eu achava, ao tempo, que poderia ter ido... e que agora conhecemos - mostra-o sereno, a usar palavras duras. Bem ao seu estilo!
Embora Avilez seja mais interessante do que Pinheiro, escreva um português mais fluído e atractivo (e tenha ganho um merecido prémio com uma reportagem sobre uns dias de campanha eleitoral com SC e Snu no Portugal profundo) creio que imaginam "estados de alma" - o que está àquem do rosto de um lutador implacável, que gostava da luta, independentemente do resultado, embora lutasse sempre para ganhar...
11 de Dezembro de 2010 2.25


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