setembro 19, 2013

Congressismo Encontro 2011


O CONGRESSISSMO COMO ESPAÇO DE LUTA PELA IGUALDADE DE GÉNERO
O "congressismo", uma das heranças feministas do início de novecentos
- entendido em sentido lato, para abranger o esforço de informação,
debate, reflexão, crítica, testemunho, troca de experiências,
reivindicação em múltiplos "fora" e, genericamente,
eventos com projecção mediática - é ainda um dos mais eficazes
instrumentos actuais ao serviço do objectivo de mobilizar as
portuguesas para a intervenção nas comunidades do estrangeiro.
A organização dos vários Encontros Mundiais de Mulheres Migrantes, a
partir de 1985, e de um sem número de conferências e debates sobre a
temática de género ligada à emigração portuguesa, enquadra-se nesta
visão estratégica.
Tem sido, frequentemente, através de fórmulas diversas, iniciativas
conjuntas do governo e de ONG’, caso de muitas das que vêm sendo
levadas a cabo, desde 1994, pela "Mulher Migrante - Associação de
Estudo, Cooperação e Solidariedade". A continuada cooperação entre
Estado e “sociedade civil”, entre mulheres e homens é, sem dúvida, um
aspecto a notar, e não se pode dizer que seja algo de alheio às nossas
melhores tradições, pois, de facto, vai encontrar raízes no passado.
Nesta breve comunicação, terei o cuidado de assinalar, em especial,
algumas das características singulares do paradigma português de luta
pela afirmação da cidadania das mulheres e de registar a recorrência
de singularidades ou originalidades nossas, em épocas tão distintas
como foram o início e o final do Século XX. Há ensinamentos a tirar,
que apontam, ainda que com todos os riscos inerentes à extrapolação,
para as virtualidades de uma mudança rápida do "status quo", de que os
portugueses se
mostram, tão capazes, para surpresa dos outros e, talvez, até também
deles próprios.

I - O PRIMEIRO PARADIGMA - O MOVIMENTO FEMINISMO NO INÍCIO DE NOVECENTOS
O movimento feminista foi, em Portugal, surpreendentemente moderno e
vanguardista na medida soube resistir à tentação do radicalismo, aos
excessos de uma "guerra de sexos", por um lado, e, por outro, ao
mimetismo dos padrões masculinos, em favor de uma assunção plena do
"feminismo feminino", na expressão de Carolina Beatriz Ângelo. As
nossas “Avós” sufragistas, reclamaram, lucidamente, os mesmos direitos
e deveres na "res publica", com a sua própria maneira de ser e de
actuar – em caminhada democrática e solidária, lado a lado, com os
homens. Era já uma vivência da ideia da "paridade", que teorizaram e
quiseram por em prática muito antes da palavra ter feito o seu curso
nas Constituições e nas leis, que hoje nos regem.
Partilhavam, como sabemos, a utopia igualitária que inspirava os
movimentos de luta pela libertação das mulheres por toda a Europa e na
América do Norte, mas moldaram-na à sua feição, com a força da
esperança numa mutação de regime, imediatamente antes e durante o
processo de consolidação da República.
De facto, entre nós, as questões de género e de regime
entrelaçaram-se, num mesmo desígnio de liberdade e progresso, que
parecia capaz de resolver a primeira pelo simples facto de resolver a
segunda – embora, o não viesse a fazer, sem que às mulheres possa ser
assacada a responsabilidade por esse desvio do que poderia e deveria
ter sido o curso da história do feminismo em Portugal.
Aquela dupla pertença foi, a meu ver, a argamassa, a base sólida da
especial cumplicidade que as unia aos revolucionários do outro sexo ,
e as levava a situarem, claramente, a problemática da mulher no quadro
global das transformações do Estado e da sociedade. Era como que a
refundação do País que idealizavam, sem dúvidas de que ela comportaria
o fim de todos os privilégios, incluindo, os baseados no sexo. Não era
uma luta apenas em causa própria, em favor de uma minoria - a elite da
cultura ou da fortuna, a que muitas delas pertenciam - mas em favor de
todas as mulheres, e, mais latamente, da sociedade portuguesa.
Viam o momento de explosão revolucionária, como um tempo de grandes
oportunidades, para o qual estavam, porém, como o futuro demonstraria,
bem mais preparadas do que os homens seus correligionários. Sabiam que
nada aconteceria sem esforço, sem a comprovação da importância do seu
contributo, muito concreto, num combate que só poderia ser ganho pela
força da organização colectiva, pelo movimento conseguido, pela
demonstração pública da inteligência, da coragem, e capacidade de
intervenção cívica de toda uma geração. Não apenas de algumas mulheres
a título excepcional - como as que, em diferentes épocas, venceram a
barreira do absoluto anonimato a que estavam destinadas, em razão do
sexo, na História escrita pelos
homens: (Chefes de Estado, rainhas influentes nos negócios do Reino,
heroínas de revoltas populares e de guerras, sobretudo nas praças de
África, no Oriente, algumas invulgares escritoras ou artistas
imortalizadas pelo talento...) Todavia, o que é raridade não conta. e,
por isso, não destrói, pelo exemplo solitário, os estereótipos de
inaptidão da mulher comum para a coisa pública. Não influencia o
estatuto e os direitos da generalidade das mulheres, como a elite de
novecentos se preparava para tentar.
A tomada da palavra perante multidões, um pouco por todo o país, com
um discurso vogoroso e convincente, tanto por parte de nomes já
consagrados (Osório, Cabete, Veleda…), como também de tantas jovens
desconhecidas, em comícios, em "fora" de reflexão e debate, em acções
de propaganda, constituiu um momento de viragem.
Foi, assim, no campo de acção ou de luta designado por “congressismo”,
que as Portuguesas fizeram a passagem, súbita, inesperada,
espectacular, do círculo doméstico, onde os costumes as confinavam,
para a esfera pública, onde abriram caminhos, que levariam décadas a
percorrer – e que são ainda agora a via aberta para o nosso próprio
trajecto.
Outra das peculiaridades nacionais, revela-se no papel que os homens
desempenharam neste processo. Os líderes republicanos apelaram, eles
próprios, à participação activa das mulheres, deram-lhe, nessa
primeira década de novecentos, a ocasião de aparecer, de tomar o seu
lugar no palco das sessões de propaganda, no turbilhão revolucionário
em que, por igual, se envolveram. Até então, o incipiente movimento
feminista nascia à semelhante dos de outros países europeus - mais
tardio, mais discreto, porventura - mas
avançando, à margem de solicitações partidárias directas, com
republicanas como Ana de Castro Osório e Adelaide Cabete, mas também
com monárquicas, como Olga Morais Sarmento Silveira, Branca de Gonta
Colaço ou Domitília de Carvalho (que haveria de ser, durante o Estado
Novo, deputada na Assembleia Nacional).
As primeiras tomadas de posição, com pouca visibilidade popular, estão
ligadas a organizações pacifistas, como a "Liga Portuguesa da Paz", de
Alice Pestana, que veio a organizar, em 1906, uma "Secção Feminista" e
foi responsável pela que se poderá considerar a primeira sessão
pública de um grupo feminista. Teófilo Braga, um declarado defensor da
emancipação da Mulher, prestigiou o histórico acontecimento com a sua
presença.
As datas são de salientar, porquanto, pouco antes, no ano de 1902, uma
das participantes activas nessas iniciativas, Carolina Michaelis de
Vasconcelos, olhando, com a sua mentalidade germânica, e,
naturalmente, com muita preocupação, o país do sul que escolhera para
viver, escrevia o seguinte:
"O combate das massas feministas, em vista de melhores condições
sociais, está inteiramente por organizar"[...] "O aparecimento de uma
mulher na política seria considerado uma monstruosidade".
Ora apenas dois anos depois, em 1904, Adelaide Cabete, Maria Veleda e
outras mulheres fazem-se ouvir no I Congresso do Livre Pensamento. Em
1906, a própria Carolina Michaelis está entre as impulsionadoras da
"Liga Portuguesa da Paz", em manifestações em que pacifismo e
feminismo se interligam.
A partir do ano seguinte, acentua-se a convergência entre feminismo e
republicanismo e a entrada de muitas notáveis em lojas maçónicas.
É de ressaltar a assombrosa aceleração do processo de participação
feminina, neste curto período, a revelar as contradições, os
anacronismos e a grande capacidade de os superar - essa tal
capacidade de que, de vez em quando, dá provas a sociedade portuguesa,
com uma plasticidade, uma maleabilidade, que não se adivinha de fora e
é preciso saber descobrir, de dentro. Ainda por cima, em geral, o
inesperado
protagonismo feminino, essa suposta "monstruosidade", despertava nas
massas um enorme entusiasmo e aplauso, demonstrando que as afinidades
ideológicas superavam facilmente os preconceitos misóginos. (1)
Por parte do povo, a reacção era, sem sombra de dúvida, espontânea.
Por parte das lideranças, a utilização das mulheres consumava uma
hábil estratégia política. Vejamos: em 1908, António José de Almeida,
Bernardino Machado e Magalhães Lemos dirigiram a ilustres
correligionárias o convite para criarem "A “Liga Portuguesa da Mulher
Republicana", que foi a maior das associações feministas – com cerca
de um milhar de militantes. A “Liga” deve a sua génese a esse convite,
assim convertido numa das excentricidades da história do nosso
movimento de emancipação da mulher. (2)
No ano seguinte, a LPMR é formalmente integrada nas estruturas do
Partido Republicano, tornando-se como que o equivalente aos
departamentos femininos de muitos partidos actuais.
Ao período de grande unidade, que assinalou a última fase da monarquia
e a da proclamação da República, seguir-se-á o das múltiplas cisões do
movimento feminista, fatalmente determinadas pelo incumprimento das
promessas do novo regime, sobretudo no que respeita ao sufrágio. (3)
Os "pais fundadores" da República, não se haviam limitado a chamar -
como tantas vezes e em tantos países viria, posteriormente, a suceder
- meras figuras decorativas, dispostas a fazer o jogo do partido e dos
seus interesses, mas intervenientes de grande estatura moral e
intelectual, escritoras, jornalistas, médicas, professoras,
advogadas... Poucas foram as que toleraram a dolosa recusa do direito
de voto nas sucessivas leis eleitorais da República. A maioria
abandonou a "Liga", logo em 1911. Ficaram as que, como Maria Veleda,
eram verdadeiramente mais "republicanas do que feministas", e
colocavam, estrategicamente, o esforço de educação cívica das mulheres
antes da concessão de direitos políticos, como condição “sine qua non”
. As sufragistas, sem nunca enjeitarem os seus ideais republicanos,
multiplicaram associações independentes e ligadas a movimentos
internacionais, como foi o caso
da Associação de Propaganda Feminista de Ana de Castro Osório (1911) e
do Conselho Nacional da Mulher Portuguesa, por muitos anos liderado
por Adelaide Cabete, e que viria a ter, como última presidente, nos
anos 40, Maria Lamas.
A prioridade do movimento sufragista está bem expressa no grito de
revolta de Ana de Castro Osório: "Se uma República nos expulsa das
suas leis cívicas, não podemos considerar nossa a Pátria onde não
temos direitos, onde não temos voz para protestar".
Nos seus turbulentos 16 anos de vida, a República perdeu-se pela
incapacidade de agregar crescentemente os portugueses, de responder
aos anseios democráticos das mulheres e de largos sectores da
população, que foram marginalizados num universo eleitoral cada vez
mais reduzido (mais restrito do que o existente na última fase da
monarquia…)
Por medo de um voto popular, que não soube atrair, a República
incumpriu as promessas de sufrágio universal, não soube, de facto
enraizar-se, crescendo no apoio popular e não pode resistir ao golpe
militar de 1926… A que se seguiu uma tão longa ditadura.
As republicanas alcançaram, todavia, vitórias em domínios que
consideravam, justamente, do maior relevo, como as novas leis da
família, a lei do divórcio, a extensão da rede de ensino, a
co-educação, o acesso das mulheres à função pública, a carreiras
profissionais - reformas que transformaram a sociedade portuguesa, e
que, apesar de muitos retrocessos, de alguma forma, resistiram durante
a ditadura e o Estado Novo, levando ao acesso, limitado embora, ao
voto e à política, ao ensino, à participação no mundo do trabalho, da
cultura.
As mulheres não esmoreceram, prosseguiram o seu infindável combate
cívico. O I Congresso feminista acontece quase em fim de regime, em
1924. O II Congresso realiza-se em 1928, já em plena ditadura. Quase
duas décadas depois, em 1947, um outro grande evento dá a conhecer as
mulheres da cultura, no país e no mundo - uma audaciosa iniciativa do
CNMP, presidido pela grande intelectual, jornalista e escritora Maria
Lamas, que hoje justamente, evocamos neste Encontro. A visibilidade e
o êxito do “feminino” no campo do pensamento, da escrita, da livre
expressão, foram vistos como realidades verdadeiramente subversivas e,
por isso, intoleráveis para o regime. O CNMP foi extinto e Maria Lamas
perseguida.
Podemos assim dizer que um ciclo se fecha e uma época incomparável
termina no rasto do sucesso de um último congresso...

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