setembro 04, 2012

Entrevista 2011/ texto sobree Mº Archer


 Qual o objectivo principal do Congresso e o que esteve na sua origem?


Um primeiro objectivo é olhar a realidade complexa e dinâmica da nossa emigração, situando às mulheres no espaço que efectivamente ocupam, ainda que sem terem ainda a visibilidade que merecem. Uma visão diacrónica, conforme à enunciação das grandes temáticas em que se vai incidir o nosso enfoque sobre as portuguesas da Diáspora: história, memória, devir.
Por isso, no centro das atenções estarão as múltiplas formas de asserção das mulheres no associativismo, na cultura, nas artes e ciências, no desporto, no empreendedorismo, no trabalho… Move-nos a ambição de retratar, tão bem quanto possível, a história do passado e a história no seu curso para o futuro, com a esperança de influenciar o processo, de mobilizar para a acção a metade mais marginalizada nas nossas comunidades, que e é por isso a que oferece a maior margem para o seu desenvolvimento. Numa época em que se fala da dificuldade de manter abertos muitas centros culturais e de convívio, sobretudo por falta de quem os queira dirigir - o que, como é evidente, exige grande entrega e disponibilidade - , a chegada das mulheres ao dirigismo associativo duplica o "campo de recrutamento", se assim o posso dizer. E como capacidade e vocação para o voluntariado é coisa que não falta a tantas mulheres que até já lá estão, nos bastidores dessas organizações, vale bem a pena motiva-las para ocuparem também a linha da frente. A própria gestão será melhor, não porque elas sejam melhores, mas porque o equilíbrio de género é um factor favorável, reforça complementaridades, confronta pontos de vista e modos de actuação, de uma forma nova e criativa. Acho que é sempre diferente e estimulante trabalhar em equipas mais ou menos paritárias. e excelente por fim à segregação dos sexos, à divisão atávica de trabalho entre um e outro. De um ponto de vista puramente pragmático, todos ficam a ganhar. Para além disso, esta procura de equilíbrio de género pode e deve ser vista como um exercício de cidadania ao qual são chamados, por igual, mulheres e homens... A Constituição da República impõe ao Estado a "tarefa fundamental" de promover a igualdade de sexo, no que respeita à participação cívica e política. Não é uma tarefa menor, como indica o qualificativo "fundamental"! O Estado tem levando a cabo essa sua incumbência constitucional, através de organismos próprios, de planos, de acções centradas dentro do território, que poucas vezes se estenderam às comunidades do exterior. Mas não vai ser mais assim! Acredito que estamos no limiar de uma nova fase. O actual Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas mostra bem, neste início de mandato, querer dar um conteúdo, real, em acções muito concretas e de uma forma sistemática, à tarefa fundamental de promover a igualdade entre mulheres e homens nas comunidades portuguesas..Estará connosco na Maia, assim como os deputados pela emigração, e os autarcas. Vai ser um Encontro feito de diversos encontros, entre políticos e "sociedade Civil", entre pessoas com ligações várias à emigração, entre o "mundo académico", professores, especialistas e investigadores, com a sua capacidade de análise científica e de teorização, e o "mundo da experiência vivida", as protagonistas da emigração, com a força das suas expectativas, e o seu querer - mulheres portuguesas, numa relação transnacional, em que o seu destino se transforma e em que transformam o meio em que estão.
Na origem deste Encontro Mundial está, à distância de mais de mais de 25 anos, um primeiro Encontro de Portuguesas da Diáspora, convocado pelo Secretaria de Estado da Emigração para ouvir as representantes de associações e dos media sobre os principais problemas que se colocavam, não só às mulheres, mas também às comunidades, globalmente. Era uma forma de suprir um défice de audição, de que havia já consciência bastante. Era, por sinal, ao tempo, uma iniciativa inédita. Nenhum governo de um país de emigração dera um semelhante sinal de preocupação e de interesse pela situação da metade feminina das suas comunidades do estrangeiro, apesar de, tal como em Portugal, ela não estar praticamente representada nos órgãos consultivos do tipo do nosso CCP.

Foi, alias, de dentro do CCP que surgiu a proposta para a realização do 1º Encontro, feita por uma das raras mulheres que nele tinha assento - Maria Alice Ribeiro, directora do mais antigo jornal português de Toronto.
O Encontro assumiu um modo de funcionamento, de abordagem das questões e de formulação de propostas e recomendações, bastante semelhante ao do Conselho. Foi um "fórum" do mesmo género, mas melhor, com todas as suas virtudes e sem os seus defeitos. Mais pragmático e, mais consensual, absolutamente livre depressões e influências partidárias.. Fiquei "convertida" e tentei, a partir do Governo, institucionalizar uma conferência periódica para audição das emigrantes. Não tive tempo de concretizar esse projecto, porque deixei a Secretaria de Estado. Foi do lado da "sociedade civil", através da Associação Mulher Migrante, criada em 1994, por algumas das organizadoras e participantes no Encontro de 85, que prosseguiu a luta pela maior intervenção cívica das emigrantes aí encetada.
Este é o 3º Encontro Mundial organizado pela "Associação", depois dos de 1995 e de 2009. Pelo meio, inúmeras reuniões, seminários, colóquios, no país e nas comunidades do estrangeiro, quase sempre em colaboração cm departamentos do Estado.
Graças a essa colaboração, a AMM acabou por ter, ao longo de décadas, um papel visível como parceiro no prosseguimento de políticas com uma componente de género nas comunidades - através do que podemos chamar "congressismo". Sou uma adepta do "congressimo"! Afinal, foi também através das suas formas várias, de convenções, colóquios, debates, que os movimentos de emancipação feminina se desenvolveram, desde os tempos de Elizabeth Cady Stanton, em Seneca Falls, ou, no século seguinte, com as nossas feministas da 1ª República. Uma boa razão para as vamos evocarmos. no início do Encontro da Maia!

 Quais são os maiores problemas que se colocam actualmente às mulheres migrantes portuguesas?

As situações em concreto são hoje muito diversas. Num período de recomeço de grandes vagas migratórias, as mulheres são, cada vez mais, protagonistas autónomas de uma aventura, em que tradicionalmente se limitavam a seguir o marido, a família... Há as que têm excelente preparação académica e profissional, assumem riscos bem calculados, procuram, como os homens, o que o país, infelizmente, não lhes pode dar. Todavia, também continua a emigração à moda antiga, pouco qualificada, tanto feminina como masculina. Para muitos, como no passado, é a fuga à pobreza, a terras de horizontes fechados...
Ao contrário do que se comummente se julgava, antes dos primeiros estudos com a vertente de género, sobre a emigração portuguesa na Europa (penso nos da Profª Engrácia Leandro, em Paris), consta-se que as mulheres são, em regra, as maiores beneficiárias da saída, da expatriação - sobretudo as oriundas de meios rurais, que, lá fora, acederam, em massa, ao mercado de trabalho, e, em muitos casos, se integraram tão facilmente, ou mais, do que os maridos. Empregadas no sector dos serviços, quase sempre dominam melhor a língua, fazem a mediação entre a sociedade local e a família, ganham um novo estatuto no círculo familiar.São, por isso, quem mais tem, previsivelmente, a perder em caso de reinserção no país e são muitas as que procuram adiar ou evitar o regresso, em regra, mais desejado pelos homens.
Em todas as fases do ciclo migratório a "padronização"no masculino é ainda um facto, as especificidades da situação das mulheres permanecem insuficientemente estudadas, apesar de progressos inegáveis neste domínio, devidos sobretudo ao interesse de universidade, centros de estudos, equipas de investigadores. Espero que também o "Observatório da Emigração", criado pelo anterior governo, passe a incluir, sistematicamente, a vertente de género nas suas preocupações.
E é evidente que em Encontros como o da Maia também vamos à procura de respostas a esta pertinente pergunta que me põe.

ATENDENDO À SUA EXPERIÊNCIA, FOI SECRETÁRIA DE ESTADO DA EMIGRAÇÃO, QUE PERFIL PODE SER TRAÇADO DA MULHER MIGRANTE?

No Encontro de Viana, em que estive precisamente nessa qualidade, houve uma definição dada por uma participante de França, Aurora Vackier, que me pareceu paradigmática e que nunca mais esqueci: as emigrantes portuguesas são "corajosas, laboriosas e apagadas".
Aquelas duas esplêndidas virtudes mantêm-se, e uma das nossas preocupações continua ser o "low profile" da maioria das emigrantes! Menor hoje do que então, sem dúvida. Mas quanto há a fazer, para que se revelem, para que caminhem na vanguarda, par a par com os homens.
Eu própria, levei algum tempo a aperceber-me do papel das mulheres nas comunidades da emigração. Os meus interlocutores eram sempre homens. Elas ficavam na sombra. Era evidente que o trabalho profissional, que é a regra geral, pelo menos nas comunidades da Europa e da América do Norte, as revelava aos meus olho com activas cidadãs. É sempre pelo trabalho, pela independência económica que a emancipação se alcança.
Mas outra coisa que aprendi, pela observação, foi que a afirmação das emigrantes é sempre muito mais rápida e mais fácil nas sociedades de acolhimento do que no mundo paralelo. mais fechado, mais conservador, das comunidades portuguesas!

 NO GERAL COMO DECORRE A INTEGRAÇÃO NO PAÍS DE ACOLHIMENTO E QUAL A LIGAÇÃO AO PAÍS DE ORIGEM?
Como disse, o trabalho fora de casa é um factor fundamental de integração na nova sociedade. O facto de as mulheres portuguesas se inserirem tão bem ou melhor do que os compatriotas, deve-se ao facto de procurarem imediatamente um emprego, o que lhes dá confiança em si, lhes permite o relacionamento com a gente do novo país, lhes dá consciência dos seus direitos e mais força dentro do círculo familiar. Com a sua integração ajudam poderosamente para a integração dos outros, da família inteira. Não é a situação corrente em muitos outros grupos étnicos, onde as mulheres vivem encerradas num verdadeiro "ghetto", regido pelas regras da sociedade de origem.
E, do mesmo modo espontâneo e pragmático, como a experiência mostra, conseguem estabelecer as pontes com o país de origem. São as guardiãs da língua e das tradições, envolvem-se, discretamente, é certo, mas depressa, na vida associativa, para apoiarem o ensino do português, e toda a espécie de actividades culturais, a música, o folclore, o desporto, a gastronomia.

Antes de elas chegarem, levando os filhos consigo (e neles pensando acima de tudo), muitos dos centros de convívio criados pelos emigrantes eram pequenos bares ou tabernas, onde os homens se encontravam para beber um copo e jogar as cartas...

 QUE DIFERENÇAS HÁ ENTRE AS MULHERES MIGRANTES E OS HOMENS MIGRANTES?

Há diferenças entre homens e mulheres, sem dúvida, em todos os tempos e em todos os lugares. Na emigração oitocentista, a sorte das mulheres melhorava muitas vezes, como mero reflexo da capacidade do marido ganhar a vida, Na emigração mais recente elas trabalham, como eles, embora não nos mesmos sectores, e contribuem directamente para o orçamento familiar…
Havia a ideia, que chegou até os nossos dias, que as emigrantes num mercado de trabalho irremediavelmente segmentado, em razão do sexo, eram sempre duplamente discriminadas, como mulheres e como estrangeiras. Esse mito caiu... As discriminações tendem a atenuar-se no contexto da emigração, em países mais desenvolvidos e mais modernos. Os portugueses aderem com relativa facilidade aos novos valores dessa modernidade. Apesar do nosso relativo atraso em alguns aspectos, partilhamos uma herança europeia, cultural, ética, religiosa e sempre demos provas de marcada vocação para o relacionamento internacional... Em Roma, sê romano! Em sociedades mais igualitárias, os próprios homens se abrem, por mimetismo, quanto mais não seja, a comportamentos menos sexistas.
A emigração portuguesa é uma das mais equilibradas em termos quantitativos, pois as mulheres constituem cerca de 50% do total e em termos qualitativos, graças a essa aptidão de mulheres e homens aderirem a novos comportamentos e atitudes, na sua vida comum, no seu relacionamento. Mérito masculino, também, sempre que isto acontece. E acontece, com frequência.

 NUMA LÓGICA DE IGUALDADE, A SEPARAÇÃO DO TEMA POR GÉNERO NÃO É CONTRAPRODUCENTE?

A realidade da emigração é complexa é plural, há que a estudar nas suas facetas e singularidades, nomeadamente as de género…, porque existem! Tudo o que vá no sentido do conhecimento mais aprofundado das especificidades da situação de mulheres e homens, como de quaisquer outras particularidades que se detectem na vida das comunidades (envelhecimento de populações, características das segundas gerações, conflitos geracionais…) é importante do ponto de vista científico como do ponto de vista político. De facto, as medidas de correcção de desigualdade, de aproveitamento de recursos humanos, de potencialidades dos membros de grupos, de instituições, de comunidades, têm de se basear na verdade das coisas e das pessoas...
A igualdade conquista-se a partir da consciência das discriminações, fundada na observação, no estudo, na vontade de mudança que a própria constatação das injustiças ou dos favorecimentos suscita. Esta nossa iniciativa enquadra-se numa procura das novas dinâmicas da emigração e da desocultação de tudo o que particularmente respeita à emigração feminina. Foram os estudos de género, desenvolvidos por investigadores dos dois sexos, evidentemente, que modificaram, de forma radical, a nossa percepção do fenómeno. E no campo da solidariedade o mesmo se pode dizer, como muito bem o expressou há anos, na reunião fundadora da "Associação da Mulher Migrante Portuguesa da Argentina" o Conselheiro das Comunidades Luís Panasco Caetano: "não é preciso ser jovem para apoiar os jovens, não é preciso ser velho, para acompanhar a situação dos mais idosos, não é preciso ser mulher para lutar pelos direitos das mulheres".

A PROPÓSITO DO CONGRESSO, A AMM DIZ; – no seu blogue – QUE “a paridade está há muito conseguida na proporção mulheres/homens na emigração portuguesa. Todavia, não se reflecte ainda no movimento associativo, nos centros de decisão das instituições, na vida pública, na política”.
QUEM É RESPONSÁVEL POR ESTA SITUAÇÃO E O QUE PODE SER FEITO PARA INVERTER A SITUAÇÃO?

O enfoque está aqui colocado na partilha do que podemos considerar a "esfera pública", na liderança, na assumpção formal do poder, ainda desigualmente repartido por género, à semelhança do que acontece, no próprio país, em matéria de participação cívica e política.
É legítimo querer individualizar as culpas pelo "estado de coisas" em que são muitos os responsáveis, homens e mulheres, a começar na família e na escola e a continuar nas direcções de organizações cívicas, dos media, nos partidos políticos, e, bem entendido, nos governos, nos políticos. Mas ainda mais importante é ver este "estado de coisas" como uma "pesada" herança cultural do passado, à espera de infinitas transformações. E este é o tempo de as alcançar, com novos valores, com outro sentido de justiça e de dignidade das pessoas, através da mudança de mentalidades, mas não só - também através de correcção de vícios estruturais do sistema, que resistem mesmo à abertura dos espíritos, das mentalidades, e constituem barreiras e obstáculos muito poderosos.
Os detentores do poder formal, maioritariamente homens, ficam em cheque, quando os índices de participação das mulheres no dirigismo associativo ou na política são, por exemplo, muitíssimo inferiores aos de acesso à universidade, ou aos da conclusão de estudos superiores. Onde depara com critérios objectivos (como são as classificações conseguidas numa universidade) a "metade feminina" é mais do que metade matemática. Onde funciona a escolha discricionária, (para não falar de compadrio o nepotismo) acontece precisamente o contrário.
Mudar é preciso e há muitas maneiras de provocar profundas metamorfoses - a observação da realidade, a informação sobre ela, a reunião para o debate de ideias, de propostas são apenas algumas... O Encontro situa-se nesta linha de intervenção, ainda que entre os participantes, haja os que são mais norteados pela pura preocupação académica de saber e outros, mais prosélitos, como é o meu caso, com o objectivo de agir, ou de se municiar com argumentos para a acção concreta.

NA PRÁTICA, QUE PAPEL DESEMPENHA A SECP?
Os cortes orçamentais, que estão a abarcar a generalidades dos sectores, podem ameaçar os apoios oficiais às comunidades portuguesas
TEME UM MAIOR ISOLAMENTO DAS COMUNIDADES PORTUGUESAS?

Tal como eu o vejo, o papel do Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas começa por ser o de um mediador. Mediador a nível do governo e da administração publica, entre os portugueses de fora e os do território, entre as diversas comunidades, tão dispersas e alheias umas das outras. Aproxima-las, entre si, e do País, dá-las a conhecer e a admirar (porque são, de facto, admiráveis), é parte essencial de uma missão, que nunca está acabada. Em oitenta, quando estive no governo, falava a este propósito, de promover "políticas de reencontro", entre os portugueses. Acho que é uma forma expressiva de sintetizar um projecto que se desdobra em mil e umas acções...Entre elas, as que procuram mobilizar as mulheres para a participação cívica e política.
Para além das nossas fronteiras, a tarefa fundamental que o legislador constitucional, na alínea h) do artº 9, impõe ao Estado, cabe, naturalmente, em primeira linha, ao SECP. A diáspora, onde tantos são os obstáculos específicos, sobretudo ao nivel da desigualdade de participação cívica dentro das próprias comunidades portuguesas, esteve, por muito tempo, esquecida. Depois de um auspicioso começo, com a referida audição das mulheres emigrantes, em 1985, que pode ser considerada uma primeira manifestação de uma política de género, voltamos ao ponto zero. Durante décadas, o que se fez de mais relevante, deve-se à sociedade civil - o caso do Encontro Mundial de 1995, em que a SECP não foi sequer um dos parceiros principais. Mais tarde, já no século XXI, foi, sobretudo, através de parcerias com ONG'S que o Estado veio a retomar o seu curso de acção no universo da diáspora. A AMM, em conjunto com várias outras ONG'S propôs ao Secretário de Estado António Braga, em 2005, justamente duas décadas passadas sobre o Encontro de Viana, a realização de uma série de "Encontros para a Cidadania", com o objectivo de promover a maior intervenção cívica e política das expatriadas. Buenos Aires, Estocolmo, Toronto, Joanesburgo e Berkeley foram as comunidades que receberam as principais reuniões, ao longo dos quatro anos seguintes. Um excelente trabalho, que envolveu sempre associações locais, e que dará frutos se for continuado.
E agora, foi o próprio Secretário de Estado José Cesário que nos entusiasmou a avançar, pois quer dar a prioridade devida às suas obrigações constitucionais de promover activamente a igualdade nas comunidades. Estamos, definitivamente, num novo patamar das políticas de género!

Quanto a cortes orçamentais, suponho que terão de existir, mas espero que possam, em certa medida, ser supridos, pela colaboração com o movimento associativo das comunidades! Se há coisa de que tenho a certeza é de que não é por falta de subsídios que as comunidades se vão isolar. Ao contrário do que se passa no país, elas estão pouco habituadas a receber benesses do Estado. Fizeram-se por si, com os seus próprios meios, são absolutamente independentes. Sempre solidárias com o país, sempre atentas ao que nele se passa, sempre actuantes. Uma presença viva e prestigiante de Portugal - é o que querem ser e são!
Para o que contam, essencialmente, com os seus meios, pois estão habituadas a dar ao País muito mais do que recebem...

ESTE CONGRESSO VAI TER UM VERTENTE CULTURAL FORTE,. O que vai ser apresentado equal a razão para esta aposta?

Sim, foi de caso pensado que resolvemos dar esta orientação ao programa. Por um lado, porque em anteriores iniciativas, foram mais os temas sociais e laborais que estiveram em destaque, e, por outro, porque a mulher na diáspora se afirma, essencialmente, pela cultura, no sentido de que faz sempre a "sua" revolução cultural, como "emigrante - imigrante", entre culturas, e também porque há cada vez mais portuguesas que se dedicam às ciências, artes e letras. Promover o encontro, a convivência, a colaboração entre estas mulheres, sem as barreiras de uma fronteira, é um dos nossos objectivos. Tornar as emigrantes mais conhecidas e reconhecidas no País ajuda a País a redimensionar o mundo em expansão da sua cultura e a ter uma imagem mais verdadeira da diáspora. Vários estudos vão ser apresentados precisamente neste domínio. A qualidade dos interventores (há que usar o masculino, porque muitos serão homens) é uma certeza quanto à qualidade dos debates - e, num segundo momento - quanto ao interesse da respectiva publicação.
O magnífico Forum da Maia e a colaboração da Câmara permite dar ao Encontro Mundial a envolvência de várias exposições, concertos, projecção de pequenos filmes e documentários. Exposição sobre "Rostos Femininos da 1ª República", completada por uma exposição documental sobre Maria Lamas e Maria Archer.
E uma exposição colectiva de pintoras e escultoras, algumas emigrantes, que será comissariada por Nassalete Miranda. "A ideia foi dela, e, como é muito boa, há-de repetir-se!
Porque não organizar, no futuro, "colectivas" semelhantes em várias comunidades, com forte componente local e sempre com a vertente de intercâmbio, de ultrapassagem das distâncias geográficas e de aproximação de quem faz parte de um mesmo universo artístico?

Considera que a cultura é um dos elos mais importantes para manter a ligação com o país e as raízes?

Sobre isso tenho certezas absolutas. As comunidades portuguesas são uma construção fundada na vontade de manter a identidade cultural. As pessoas têm perfeita consciência da importância de falar a língua, de a ensinar, de a cultivar. A criação de escolas está na base do associativismo, como a música, o folclore, a preservação de rituais e de festas. É a realidade de uma emigração de famílias inteiras, com uma forte componente feminina, com segundas e terceiras gerações que dão vida, coesão e continuidade às instituições. Quem visita estas comunidades bem organizadas, de região em região, de continente em continente, está sempre em viagem do seu próprio país. Um espantoso fenómeno de extra-territorialidade! Como muito bem dizia Sá Carneiro: "Portugal é mais uma cultura do que um território".



ANDAMOS NA SAUDADE DE MARIA ARCHER
Para uma associação de estudos sobre as mulheres da emigração, como é
a nossa, Maria Archer é uma personalidade inspiradora, que convida à
pesquisa, à reflexão e ao diálogo.
Começámos por a lembrar no Encontro Mundial de Mulheres Portuguesas da
Diáspora, em Novembro de 2011, justamente porque nesse congresso
pretendemos partir da história da emigração no feminino, traçando, por
um lado, as linhas de evolução de mais de um século de migrações
portuguesas, com participação crescente de mulheres, e, por outro,
dando-lhes visibilidade, não só mas também, numa área em que podemos
considerar que têm estado, pelo menos, tão presentes como os homens: o
domínio da Cultura, do ensino da Língua, das Letras e das Artes.
 Por ambos os caminhos, os da História e os da Cultura, encontrámos
Maria Archer.
Ela voltou, seguidamente, a ser figura de cartaz na comemoração do Dia
Internacional da Mulher. Uma "entrevista imaginária" com a grande
escritora, protagonizada por jovens das Escolas de Espinho, deu a esse
evento simples e didáctico um toque original e comovente...
E agora, aqui, em Lisboa, no Teatro Nacional da Trindade, partilhamos
de novo, a força do seu pensamento e ideais, na evocação da sua vida e
obra tão bem conseguida em sucessivas intervenções – neste espaço
esplêndido, no salão nobre onde ela própria esteve inúmeras vezes –
contando com muitas das pessoas que a conheceram e admiraram, e com a
presença e a palavra, tão honrosas para nós e tão prestigiantes para a
sua memória, da Dr.ª Maria Barroso e do Presidente Mário Soares,
símbolos da luta vitoriosa pelo Portugal em liberdade, em democracia,
que ela sonhou.

Razões não nos faltam para justificar o empenhamento cívico com que,
assim, fazemos de Maria Archer uma companheira de jornadas sobre as
temáticas de género, no universo das migrações. Ela foi, de facto, uma
grande Portuguesa da Diáspora. Sê-lo-ia, em qualquer caso, como
intelectual, jornalista, romancista, mas foi - o, igualmente, como
verdadeira precursora na pesquisa e divulgação de usos e costumes dos
povos com os quais se viu em contacto. Primeiro em África, muito
jovem, a acompanhar os Pais por terras do” Ultramar", depois, já
sexagenária, no exílio brasileiro, passou largos anos em cinco países
lusófonos, dispersos em três continentes, sempre atenta ao que
acontecia em seu redor, com uma inteira compreensão das pessoas, dos
ambientes, dos meios sociais, que soube traduzir em dezenas de
escritos de incomensurável valor literário e de enorme interesse
etnológico, sociológico e político....

Seria motivo bastante para partirmos à descoberta desse legado
multifacetado e vasto, que, num estado de quase hibernação, guarda
experiências e segredos de tantas gentes e vivências. De um amor por
África, de um enraizamento no mundo lusófono, que o nosso anfitrião
Dr. Vítor Ramalho tão bem soube focar.

Mas há mais! Maria Archer é uma daquelas figuras do passado, que é
intemporal, por saber captar as constantes da natureza humana - sem
deixar de ser, também, testemunha, memória crítica de um muito
concreto tempo português, opressivo e cinzento, pautado pelo
anacronismo das ideias e das regras de jogo social e político, que
desvenda e põe em causa, com lucidez e fulgor. Ninguém, como ela,
retrata o quotidiano desse Portugal estagnado e arcaico, avesso a
qualquer forma de progresso e de modernidade, em que os mais fracos,
os mais pobres não têm um horizonte de esperança, e as mulheres, em
particular, são dominadas pela força das leis, pelo cerco das
mentalidades, pela censura dos costumes, pelo confinamento da educação
- tendo por pano de fundo as normas impostas para o relacionamento de
sexos, com a entronização rígida dos papéis de género dentro da
família, e as consequentes desigualdades, e preconceitos sociais, o
doloroso e duradouro impasse de uma sociedade fechada ao curso da
História, que acontecia na Europa e por esse mundo fora.

Maria Archer vai dar vida às portuguesas suas contemporâneas,
revelando-as tal como elas são, com um realismo, que é, sem dúvida,
uma busca uma evidência da verdade, doa a quem doer e para que se
saiba... então e no futuro.
Nos seus "apontamentos de romancista" (em "Eu e elas", escrevendo
sobre si e sobre os outros, com um fino sentido de humor e toda a
"joie de vivre" )) confidencia-nos :"O meu trabalho neste livro foi
quase o de um artista plástico. Moldei a obra sobre o modelo vivo".
Fica-nos a impressão de que essa foi uma metodologia que usou largamente…

A mais feminista das escritoras portuguesas, é, contrariando
estereótipos dominantes (embora não o que podemos considerar a melhor
"tradição nacional", desde o século XIX…), uma feminista muito
feminina, que ousou ser um ícone de beleza, e ter uma carreira no
jornalismo e nas Letras, fazendo, em simultâneo, combate pela
dignidade e pela afirmação das capacidades intelectuais e
profissionais negadas à mulher comum.
.Ousou fazer um nome no mundo essencialmente masculino da cultura portuguesa.
Ousou ser Maria Archer, sem pseudónimos...

Na verdade, por tudo isto, julgo que podemos dizer que ela é mais do
nosso tempo do que do seu tempo - aliás, uma afirmação que se deve
generalizar às mais notáveis feministas do princípio do século XX, as
que dão rosto à exposição da Câmara Municipal de Espinho, há pouco,
inaugurada aqui, nas salas e corredores do Teatro da Trindade.
Maria Emília era, então, demasiado jovem para poder participar nos
movimentos revolucionários, em que estiveram envolvidas a Liga
Republicana das Mulheres Portuguesas, o Conselho Nacional das Mulheres
Portuguesas, mas iria ser uma das poucas que, no período de declínio
desses movimentos (e de desaparecimento de uma geração ímpar),
continuou, a seu jeito, solitariamente, uma lide incessante contra o
obscurantismo, que condenava a metade feminina de Portugal à
subserviência, ao enclausuramento doméstico e à incultura.

Foi uma inconformista, consciente das discriminações e das injustiças,
em geral, e, em especial, das que condicionavam o sexo feminino, numa
sociedade retrógrada e "fundamentalista", como dizemos hoje daquelas
em que o Estado impõe a regressão às doutrinas e práticas de um
patriarcalismo ancestral, contra o qual, naturalmente, se revoltou...

A escrita, servida pela inteligência, pela capacidade de observação e
expressividade, foi para ela uma arma de combate político. Como dizia
Artur Portela, "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo
rasante".
É um combate em que a experiência de vida e a sensibilidade artística
se fundem - norteadas por um declarado propósito de valorização do ser
feminino e da sociedade como um todo.
É já uma Mulher livre num país ainda sem liberdade - coragem que lhe
custou o preço de um tão longo exílio ...

Maria Archer é uma grande escritora (ou um grande escritor, como
alguns preferem precisar, alargando o campo das comparações
possíveis). E pode ser lida apenas como tal. Mas permite - nos também
diversas outras leituras - para além da literária, a sociológica, a
etnológica, a feminista...
Ninguém, como ela, escrutinou e descreveu o pequeno mundo da sociedade
portuguesa da primeira metade do século XX, os pobres e os ricos, as
famílias decadentes ou ascendentes, aristocráticas, burguesas, o povo"
. Mulheres e homens imersos na nebulosa de preconceitos de género e de
classe, de vaidades, de ambições, de prepotências e temores…
Gostaria de realçar a"leitura feminista, porque ninguém conseguiu,
como ela, corroer essa imagem da "fada do lar", laboriosamente
construída sobre os conceitos falsos da harmonia de desiguais (em que,
noutro plano, se baseava a ideologia do regime “corporativo") e da
brandura de costumes - assente, porém, no autoritarismo e subjugação
ao "pater familias" no pequeno círculo do lar, ou ao ditador
paternalista no círculo alargado do País.
Maria Archer é uma retratista magistral da mulher e da sua
circunstância... O rigor da narrativa, a densidade das personagens, a
qualidade literária, só podiam agravar, aos olhos do regime, a força
subversiva da denúncia.
Os poderes constituídos não gostaram desses retratos de época, como
não gostavam da sua Autora. Primeiro, tentaram desqualificá-la,
desvalorizando-a. Sintomática a opinião de um homem do regime, Franco
Nogueira, que em contra-corrente, num texto com laivos misóginos, a
apresenta como uma mulher a falar de coisas ligeiras e
desinteressantes (por tal entendendo a realidade do destino das
mulheres, coisa para ele tão sem importância....).
Não tendo conseguido os seus intentos, o Poder passou à acção: livros
apreendidos, jornais onde trabalhava ameaçados de encerramento...
Maria Archer viu-se forçada a partir para o Brasil - uma última
aventura de expatriação, de onde só retornaria, doente e fragilizada,
para morrer em Lisboa. Porém, o desterro não seria pena bastante.
Teresa Horta, no prefácio da reedição de "Ela era apenas mulher"
afirma que Maria Archer foi "deliberadamente apagada da História".
Ser emigrante é já factor de esquecimento, regra geral inelutável, na
memória da Pátria. Mas o seu caso foi mais grave, deliberado, doloso -
muito embora, do nosso ponto de vista, não esteja definitivamente
encerrado,porque é ainda possível combater esse acto persecutório,
gizado e consumado há décadas.
Como? Restituindo à obra de Maria Archer o espaço que lhe é devido no
mundo eterno da cultura portuguesa, revisitando a Mulher de Letras,
através dos seus escritos.
Em momentos mágicos, percorramos com Maria Archer as páginas
fulgurantes dos seus contos, romances e crónicas, desocultando o
passado, lançando luz sobre a realidade insuficientemente analisada e
realçada da sociedade portuguesa de 40 e 50!

A elegância do seu estilo tempera o cru realismo, o fundo pesado e
dramático de qualquer narrativa e torna sempre um prazer a sua
companhia nas incursões pelo universo bafiento e confinado em que se
cruzaram e confrontaram as portuguesas e os portugueses durante meio
século – um universo no qual as personagens femininas raras vezes
cumpriram os seus talentos e esperanças (mesmo que modestas), e os
enredos quase nunca têm um final feliz - ou merecido...
Elegância é uma palavra que quadra com Maria Archer, que a caracteriza
na maneira como pensou, como escreveu, como se vestiu e apresentou em
sociedade, como atravessou uma rua de Lisboa ou de São Paulo, como
atravessou uma vida inteira, até ao fim...
Fim não será a palavra mais apropriada... Estamos aqui justamente
unidos pelo projecto de lhe assegurar uma segunda vida, objectivo
perfeitamente ao nosso alcance, pois "existir não é pensar, é ser
lembrado", como disse Pascoaes.

Esta não é a primeira nem será a nossa última reunião para falarmos
sobre Maria Archer, o seu exílio, o seu retorno - o seu legado ou a
sua pessoa - qual deles o mais interessante? A pessoa é certamente tão
fascinante como a escritora. E mais desconhecida. Mas só assim
continuará por omissão nossa, já que ela permanece, para sempre jovem
e vibrante, nas páginas que deixou impressas.

Dizia a Mariana desse romance eminentemente "feminista" que é "Bato às
portas da vida":
"Ando na saudade de mim, mesmo perdida no tempo".
E nós andamos na saudade de Maria Archer, perdida mas reencontrada no
nosso tempo, que queremos seja o início do correr interminável do seu
tempo futuro...

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