dezembro 12, 2018



COM NATÁLIA EM S. BENTO

Natália é uma de duas deputadas que tem busto de mármore no Parlamento Português. Esculpido por Cutileiro. A Assembleia conserva, nas páginas do Diário das Sessões, a magia da sua palavra, porventura a mais fulgurante, e, não raro, a mais agreste que algum dia se ouviu no hemiciclo. Contudo, não lhe ocorreu ainda reunir em coletânea as suas intervenções, ao contrário do que acontece com os notáveis tribunos masculinos, com ou sem lugar na estatuária do Palácio de S. Bento...
Foi nos "Passos Perdidos" que a conheci. Falámos, por sinal, só de leis - de uma em particular, já nem sei qual, que passara pelo meu gabinete de responsável pela emigração, e que ela defenderia, em sede parlamentar, no dia seguinte. Combinámos que, para análise de todos os detalhes, lhe enviaria a casa um distinto jurista. De lá voltou o especialista mais impressionado do que se tivesse privado com figuras históricas, como Catarina da Rússia, ou a Marquesa de Alorna. Ainda por cima, ela elogiara aquele modo de colaboração - que deveria ser a regra, mas não era - entre governo e bancada parlamentar. Talvez tenha visto nisso uma das diferenças que podem fazer as mulheres na república dos homens.
De longe a longe, nos reencontrámos no Botequim (que, não sendo eu notívaga, não podia frequentar assiduamente), e, depois, entre 81 e 83, no quotidiano da bancada da AD que, desaparecido Sá Carneiro, entrara no seu ocaso anunciado.
Como é lidar com o mito no quotidiano? É inevitável a sua "normalização"? Com Natália, de modo algum! Tinha as qualidades que "humanizavam" a sua grandeza, sem a diminuírem. Na convívio era amável, solidária, imensamente divertida e imprevisível - sempre formidável, não intimidava. Antes da minha primeira intervenção formal, sentindo-me nervosíssima e muito hesitante, não ousando improvisar, escrevi umas linhas, que submeti ao parecer crítico de Natália. Graças ao seu "nihil obstat" subi à tribuna com alma nova!
Porém, como opositora, num frente a frente, siderava qualquer um, sem exceção, com secos e contundentes argumentos ou com tiradas ribombantes e não menos contundentes - ordália a que, felizmente, nunca tive de me submeter. A sua diatribe mais mediática foi, sem dúvida, a que incendiou o debate sobre o aborto, fulminando, em prosa e verso, um fundamentalista religioso do CDS, que se atreveu a propugnar o sexo exclusivamente para procriação da espécie - o famoso "truca-truca" do procriador de uma pequena prole de dois descendentes. Assisti ao clamor que se seguiu, em lugar privilegiado, muito perto da Oradora.
Após integrar governos sucessivos e breves, (como foram todosaté ao surpreendente advento das maiorias de Cavaco Silva), regressei a São Bento e às conversas com Natália, então já no PRD. Nada que nos afastasse - afinal, partilhavao seu gosto pelo distanciamento dos aparelhos partidários e até a sua simpatia pelo general Ramalho Eanes - que, à época, não abundava entre  Sácarneiristas.
Estávamos em agosto de 87 e eu acabava de me tornar a primeira mulher eleita vice-presidente da Assembleia. Poucos dias depois, aconteceu a temida  inevitabilidade de ser chamada a dirigir a sessão - sem pompa nem anúncio prévio, a meio de um discurso de Basílio Horta, apenas para o Presidente Crespo fumar um cigarro nos bastidores. Tanto melhor para mim, que queria passar despercebida... Mas eis que Natália se levanta em aplausos, logo seguida por Helena Roseta e pelos demais deputados e, finalmente, por Basílio, que continuara a intervenção, sem saber o motivo por que a Câmara inteira aplaudia de pé. Um momento feminista para a história parlamentar!
Não menos feminista foi outro, que, igualmente, se lhe ficou a dever: a ideia de homenagear as pioneiras do movimento sufragista português, a 8 de março de 88. Precisamente oitenta anos depois da criação da Liga da Mulheres Republicanas, elas tiveram, enfim, o direito de serem ouvidas em longos e expressivos discursos, citados por deputadas da geração das suas netas. Ali, na casa-mãe da democracia, a que uma democracia imperfeita lhes vedara acesso.
Em 1991, o Partido Renovador perdeu representação parlamentar e, com isso, a Assembleia da República perdeu a Mulher que a ressuscitaria da hibernação na mediocridade em que estava caída. A Mulher capaz de transformar, por exemplo, um simples jantar de portistas em S. Bento em tertúlia erudita, discorrendo brilhantemente sobre desporto, deuses e mitos, para concluir que a serpente da antiga Lusitânia e os dragões da "cidade invicta" pertenciam a uma mesma matriz.
Inesquecível! Nesses tempos, quantas vezes, da terceira fila do hemiciclo, onde Natália também se sentava, olhei em redor, pensando: "Daqui a cem anos estamos todos mortos - todos, menos a Natália". E lembro-me de lho ter dito uma vez, perante um silêncio complacente e o esboço de um sorriso.
A profeta de futuros longínquos era ela, eu apenas ousava uma incursão em terreno proibido ao comum dos mortais. Sorte de principiante: a profecia vai a caminho de se cumprir.