outubro 25, 2015

So bre ML Pintasilgo (texto sintético)

Maria de Lurdes Pintasilgo, a primeira chefe de governo da República portuguesa tomou posse a 1 de agosto, escassas semanas depois de Margareth Thatcher. uma coincidência que reforça o caráter simbólico e europeu de uma quase simultânea intrusão feminina no mundo das altas esferas da política, contra cânones de sociedades patriarcais, é muito mais o que as distancia na experiêncua governativa do que o que as aproxima. Thatcher vem do âmago das estruturas partidárias,  improvavelmente, de um partido conservador e elitista, numa democracia antiga, através de uma sucessão de vitórias eleitorais, no partido e no país. Pintasilgo, pelo contrário, vem da pura militância em organizações nacionais e internacionais, em movimentos cristãos e feministas, numa democracia incipiente, instável, ainda á procura do seu paradigma, e é chamada á cena política de fora para dentro, pela mão do Presidente da República (par le fait du prince!), no auge de uma crise - crise que fundamentava a controversa decisão presidencial de dissolver a Assembleia da República e de convocar eleições intercalares. Ou seja, num quadro político e constitucional insólito e irrepetível, como responsável por um governo transitório, incumbido de conduzir um processo eleitoral considerado de crucial impotância para o aprofundamento da democracia..Por isso, lhe profetizavam um mandato tudo menos pacífico, como veio a acontecer...
, Pintasigo era uma personalidade independente, de grande notoriedade e prestigio, tal como os seus predecessores nos governos "de iniciativa presidencial" - a mais descomprometida com o sistema partidário. a mais envolvida nas questões sociais, a mais conotada à esquerda, em especial, com a ala meloantunista do Conselho da Revolução, (.Quando interrogada por um jornalista sobre a sua alegada pertença a essa corrente do MFA, responderia ironicamente: "Eu não meloantonista, Melo Antunes é que é marialurdista").
Os "media" internacionais tendiam a comparar as duas chefes de governo. Num jornal espanhol Pintasilgo surgia como a "Thatcher roja". Em Portugal, a imprensa de direita e até alguns políticos falavam de " gonçalvismo de saias". Nada que detivesse os ímpetos de mudança de Maria de Lurdes, com o seu impressionante curriculum académico e profissional em áreas de tradicional discriminação e exclusão feminina - a engenharia química, a investigação e a direção no setor da grande indústria - uma líder nata jdesde os bancos do liceu e da faculdade, depois nas organizações cristãs, na ação social e cultural a que se dedicava por inteiro. Acreditava na importância da intervenção inovadora da mulher na igreja e no mundo - teórica, doutrinadora e praticante, aceitava, sem hesitação, testar a sua própria capacidade de trabalhar no terreno da política ( foi Procuradora à Câmara Corporativa, instada por Marcello Caetano, com quem colaborou, também, no âmbito do Ministério das Corporações, presidindo aos trabalhos da plataforma que esteve na origem da Comissão da Condição Feminina (a qual voltaria a presidir, depois do 25 de abril). Logo em 1974 tornou-se a primeira portuguesa ministra (dos Assuntos Sociais) nos governos provisórios, sem levantar quaisquer reparos ou remoques sexistas.
No antigo ou no novo regime, procurou dar o seu melhor, desinteressadamente, com uma assumida intenção de transformar as coisas. Estava nos cargos de passagem, sem amarras, sem "pertencer", mas com inteira convicção e enorme energia - assim a vi, sempre. Arrojada, entusiasta. Nos encontros esporádicos que fomos tendo, nos anos 70, e, muito mais tarde, em Lisboa, falamos, invariavelmente de intervenção feminina na sociedade, o domínio em que mais estivemos sintonizadas. Quanto à generalidade de outros temas políticos, a minha posição sendo mais próxima de Pintasilgo do que de Thatcher, era, naquela conjuntura, muito distante. Estava contra a ideia de um governo "para fazer eleições" e, consequentemente, contra a sua protagonista maior .Não porque lhe faltassem qualidades - vasta cultura, inteligência, rasgo, experiência, boa vontade ao serviço de valores e causas humanistas - , mas porque achava que era a mulher certa na hora errada, no lugar errado,
Foi já sob ruidosos protestos que Maria de Lurdes tomou posse no Palácio da Ajuda, numa quente manhã de verão, perante uma multidão de amigos e de representantes instituicionais, combinando admiradores certos e aguerridos antagonistas, entre estes quase todos os mininistros e secretários de Estado do governo cessante, a que eu pertencera. Recordo o ambiente formal, a solenidade das posturas e do trajar - que não se perdera em cermónia tão frequentemente repetida - , as palavras do juramento, ali ditas no feminino ( "eu abaixo assinada...), os discursos, os cumprimentos. A Primeira ministra optara, não por um "fato de executiva", mas por um vestido chique de seda italiana, um penteado impecável, uma imagem exuberantemente feminina (não muito diferente da senhora que conhecera 20 anos antes em debates abertos do Graal em Coimbra, embora, então, apesar da sua erudição e simpatia, achasse demasiadamente reformista a sua via para a igualdade de sexos),. Ausentes naquele ato solene, os resposáveis da AD (Aliança Democrática). Ausência prenunciadora dos duros afrontamentos que a esperavam, de começo a termo do mandato, somando descontatamentos, agravados pela sua recusa em se concentrar, exclusivamente, no escopo principal, pela afirmação de uma vontade de "experimentalismo social"
.Mais de cinco meses durou o V Governo Constitucional, ultrapassando o horizonte temporal previsto no meio de uma campanha eleitoral extremamente radicalizada, que levou à vitória da AD, dando ao país a primeira maioria parlamentar desde 1974. Anos mais tarde, ao fazer o balanço breve dessa experiência, diria que toda a classe política estivera contra ela, mas o povo não. Era uma inevitabilidade que os partidos se voltassem contra quem procurava outras configurações para estruturar a arquitetura de uma democracia representativa emergente, que era para as três maiores partidos portuguesas, do centro- esquerda ao centro- direita, a primeira prioridade, unindo, no projeto de adesão à CEE, Mário Soares, Sá Carneiro e Freitas do Amaral.
Para a história, a Primeira Ministra,a meu ver, cumpriu, com rigor e eficácia, a missão principal de que estava incumbida - a de organizar um processo livre e transparente´de expressão da vontade popular. E ganhou, do mesmo modo, o desafio de se impor como mulher na esfera pública, em cumplicidade com o povo, a quem queria dar voz, como se veio a comprovar, em 1985, aquando do seu breve regresso ao palco da política institucional com uma fulgurante campanha para a presidência da República. Arrancou, cercada de entusiasmo e simpatia, com um discurso coerente e vibrante, recetividade e sondagens esperançosas, mas acabou, em novo braço de ferro, vencido pela força avassaladora das máquinas partidárias.
Num enfoque feminista, poderemos dizer que, já em 1979, o povo português reagia bem ao"empoderamento" de uma mulher à frente da governação da República, pela corajosa decisão de um homem, o Presidente Eanes.. Desde a primeira hora, Pintasilgo foi saudada ou antagonizada nos media e na opinião pública, de acordo com a adesão de cada pessoa, de cada formação cívica ou política ao quadrante em que se situava - seguida que pelos que queriam uma viragem à esquerda, mais ou menos detestada pelos que apoiavam o reformismo europeísta do Governo Mota Pinto, que seria continuado pelo Governo da AD e do chamado Bloco central. Ou seja, não se pôs, fundamentalmente em causa, em função do género, a sua competência para exercer o cargo, nem isso provocou, especial comoção ou espanto.