agosto 25, 2018

...NO PÓS MAIO 1968

...no pós Maio de 1968 1 – A minha relação com os acontecimentos de Maio de 1968, em Paris, é a história de um “rendez-vous manqué”. Cheguei tarde, nos últimos meses do ano. Ou cedo, para avaliar o seu impacto no futuro da instituição “universidade” e da sociedade francesa – ou o seu significado profético, revelação de um mundo emergente de novos conflitos e tensões sociais, de formas novas de manipulação ou de “opressão”, não num quadro de exploração de classes e de pauperização, mas em economias prósperas, de sedimentação de “classes médias”, e enriquecimento generalizado, ainda que desigual… Para Paris parti, numa segunda-feira, 28 de Outubro de 1968, no wagon-lit do Sud-Espresso – já na sua fase de declínio, sobrevivência do gosto de viajar sem pressa e com conforto. Até Hendaye, o Sud avançava com um vagar próximo da indolência. Parava aqui e ali. E ficava estacionado o tempo suficiente para entrarem e saírem das carruagens famílias inteiras, na despedida do passageiro (assim foi comigo, na Pampilhosa…). Havia tempo para tudo: para ler, passear nos corredores, gozar o exclusivo de um restaurante quase vazio e dormir num beliche, entre lençóis bem engomados, uma noite longa. Na fronteira francesa, era obrigatório mudar de comboio – porque até nos carris a Península divergia do resto da Europa! – um comboio velho, “vulgar”, superlotado, mas bastante mais rápido. Deixou-me, sem um minuto de atraso, terça-feira à tarde, na Gare de Austerlitz. Um sem número de emigrantes portugueses – em número largamente superados por sacos e por enorme malas - desembarcaram também. Foi tarefa difícil arranjar um táxi, no meio de uma multidão desordenadas de portugueses e não só, com os seus pertences espalhados extensivamente pelos passeios, a dar à primeira imagem de Paris revisitada, um ar de arraial, de desfazer de feira muito pouco cosmopolita… Havia apenas o escape do “metro”, mas não ousei aventurar-me na sua rede densa, a caminho de um “quartier” desconhecido, algures na direcção da “Porte d’Orleans”, da Cidade Universitária e, dentro do seu perímetro vasto, da “Casa de Portugal”. Com o motorista cheguei, sem mais problemas, ao edifício, que, aliás não tinha nada de caracteristicamente português. Aí fui conduzida a um pequeno quarto, onde não cabia muito mais do que um divã estreito (como o beliche do Sud) e uma secretária de trabalho. Deixei a mala pousada num canto, olhei de relance a janela com vista para a Igreja de Gentilly (que seria, anos depois, a primeira grande paróquia dos nossos emigrantes) e saí. No momento da despedida tinha, pouco avisadamente, prometido telefonar a minha mãe, logo que possível. Mas não foi possível… Não havia linha exterior disponível para os residentes, nem mesmo na recepção (um retrocesso até em comparação com o provinciano lar de freiras, do meu primeiro ano em Coimbra…) O porteiro deu-me instruções para demandar a estação de correio, junto à entrada principal da “Cité”, no Boulevard Jourdan, Mas, perante a minha perplexidade, traçou, numa folha, um mapa improvisado útil! Fui direita à estação em poucos metros. Depois esperei numa comprida fila a minha vez, para receber apenas a informação de que teria de aguardar até à hora de encerramento de serviços. Só então fariam o favor de discar o número de minha casa. Faltavam ainda duas horas! Mandei um telegrama sintético e económico. Senti-me só e longe. Nunca o Porto me parecera tão remoto. À medida que outros episódios semelhantes foram despertando a minha combatividade, habituei-me a reagir à má vontade ou má disposição de alguns parisienses, nos correios, nas lojas, nos cafés, com mais determinação – chegando, se preciso, à agressividade verbal controlada – e obtive, regra geral, melhores resultados. Na altura, atribuía tanta sobranceira (se assim era comigo, como seria com os emigrantes, sem o mesmo domínio da língua?) à maneira de ser e de estar do povo local. Mas mais tarde achando-os bem mais comunicativos e amáveis – como ainda são – conclui que sofriam, de uma irritabilidade conjuntural, que era apenas uma das sequelas dos traumas de Maio de 68 (a primeira com a qual tive de lidar…). 2 – No início de 1968, enquanto os estudantes ensaiavam as primeiras formas de contestação, em Caen e Nanterre, faziam a greve geral, em Itália, ou se manifestavam, contra a guerra do Vietnam, nas ruas de Berlim, eu estava em Genebra. Geograficamente perto, mas distante, em termos de percepção do fenómeno… Se alguma erupção de descontentamento estudantil ocorreu na Suíça, nós, no “Instituto Internacional de Estudos de Trabalho”, não demos por isso. Éramos um grupo de investigadores, professores, sindicalistas, funcionários públicos e até alguns políticos – todos vistos como promissores, embora nem todos nos tivéssemos revelado, como previsto, nas décadas seguintes – e no centro das nossas atenções não estava Nanterre, nem a França, mas regiões do mundo onde residiam maiores desafios ao desenvolvimento (o chamado “terceiro-mundo”) e à paz (Vietnam, Cuba, Checoslováquia…). Quase todos púnhamos moderadas esperanças na “primavera política” de DubceK, que foi quase contemporânea da portuguesa, mas ainda mais breve e com epílogo mais trágico, logo em Agosto de 68… Quando a chama do Maio francês já praticamente se apagara, os tanques do exército soviético mostravam, em Praga, como se reprime e extingue uma vivência curta de liberdade condicionada. Dubcek era o meu tipo de “herói” e Cohn-Bendit não era (por muito atraente que (mais as suas circunstâncias do que a sua pessoa) o tivessem tornado e, a meu ver, por erros alheios, efectivamente tornaram! À falta de “posters” de Dubcek na colecção da “Librairie Gibert” de St. Michel, seriam os Kennedys, John e Bob, a ocupar vários metros quadrados nas paredes brancas do meu quarto no Boulevard Jourdan. Alguns dos meus amigos portugueses escolhiam, por veneração ou talvez por provocação, à distância, ao regime que nos aguardava no regresso a casa (para os que podiam regressar…), retratos gigantes de “Che”, que estava na moda e era decorativo. De qualquer modo, acho que naquele tempo o paradigma português das “greves académicas” do início dessa década, que pouco incomodaram o regime, e também, as expectativas que se abriam – embora não muito… com as “conversas em família” de Marcelo e, nas eleições de 69,com a criação da “ala liberal” - contribuíam para que eu, jovem recém-licenciada em Direito, e politicamente reformista, desvalorizasse à época, o alcance e simbolismo de Maio de 68. Pesava negativamente o facto de saber que as consequências para os paladinos do “movimento” e até para os seus simples seguidores seriam fatais em Lisboa, ou em Moscovo, com perseguições e chacinas, que, apesar de tudo – da violência e até de algumas mortes, que mancharam o balanço final – não aconteceram na França “Gaullista”. Não deixava, contudo, de sentir atracção, não ideológica, pela espontaneidade e pela bravura com que os jovens e os “citoyens”, em geral, mesmo na periferia do movimento, ajudaram ao crescimento de uma fantástica vaga contestária. Mas o “Poder” – o poder político e os poderes no interior daquela sociedade em concreto, como as organizações partidárias ou sindicais – era-me simpático em comparação com o que imperava no meu país. Como pôr-lhe, à data, os defeitos que, hoje, no do Portugal de hoje, lhe reconheço? (pondo em causa a lógica aparelhística, e o carreirismo nos nossos partidos políticos e falando de partidocracia, ou olhando, por exemplo, os próprios sindicatos com não menor distanciamento afectivo…). Mas em verdade, durante Maio de 68, já de volta ao “Centro de Estudos” na Praça de Londres, em Lisboa, acho agora que visionava então, aquele filme de peripécias alucinantes, sem realmente compreender as suas motivações (que obviamente faziam mais sentido para quem respirava o ar de uma democracia estabilizada - embora em crise momentânea de destabilização…), para uma parte da “inteligentzia” europeia e universal (muitos professores e investigadores apoiaram o “protesto” dos jovens, tal como vários “Prémios Nobel” - esse clube restrito). Mas, estranhamente, assim não aconteceu com a maioria dos políticos franceses,. Também eles não souberam fazer a correcta e atempada leitura da situação…. 3 – Tal como a via, a revolta de Maio era um “happening”! Maior, em si, no movimento que passava, na dimensão que ocupava, do que em consequências futuras – isto é, em rupturas portadoras de mutações para uma instituição (a universitária) ou para um país (a França). E a verdade é que, pelo menos no curto prazo, o reformismo a que deu azo, era o oposto dos objectivos – dispares, aliás – dos heterogéneos protagonistas principais do “movimento”. Absolutamente indesejável para qualquer revolucionário. E de menos, face aos meios envolvidos na luta. A mim, nos dois anos lectivos que passei no território da revolta, no imediato futuro do movimento de Maio, o movimento parecia-me mais sem futuro, e sobretudo, mais inútil do que na minha perspectiva actual… Frequentei, com curiosidade, os seus locais de culto” (a Sorbonne, Nanterre) e ainda, Vincennes, nascida por causa de Maio. Por aí vagueei em cursos de frequência livre, (quando quis inscrever-me em sociologia, na Sorbonne, já as inscrições tinham encerrado por excesso de procura e tive de contentar-me com a matrícula no “Centro Universitário Experimental de Vincennes, que fazia jus ao seu carácter experimental, para além da École Pratique des Hautes Études, onde pude escolher como director de estudos, Alain Touraine). Como “case study”, Maio era obsessivamente estudado, analisado e comentado pelos grandes nomes da Paris académica (Poulantzas, Althusser, Friedman, Chombart, Aron, Bourdieu…). Via-os de perto, ouvia-os com a fascinação com que no Olympia ou no Bobinno, assistia aos espectáculos de Léo Ferré, ou Serge Reggiani, Porém, a dissecação da “revolta”, ou da revolução (que não o chegou a ser) operada, com inexcedível brilhantismo, nas suas lições e palestras, parecia-me sempre, aquém ou além das intenções de qualquer deles, uma autópsia ou um requiem pelo Maio próximo passado... Ao meu sentimento de perda – perda do espectáculo, já em análise póstuma… – subjazia a convicção de que ele era irrepetível e estava definitivamente encerrado. Passara da rua para as salas de conferências, as páginas dos livros. É certo que uma de infinitos ensinamentos. Em primeiro lugar para o poder ou poderes: desafiados, desacreditados, vencidos, no tempo efémero da aventura, e logo reinstalados. Os políticos que se haviam convertido em actores principais pela ausência, pelo imobilismo, pela inépcia, pela incompreensão da forma e direcção que o curso daquela história ia tomando. Permitindo, com isso, alianças impossíveis e um efeito “bola de neve” (no caso, mais “bola de fogo”…) dos descontentamentos e dos conflitos , a que a repressão da polícia de choque deu um voo de asa – e a adesão popular. Do povo em estado de indignação! Solidário, contra a máscara bélica de uma democracia desfigurada… Nesta base de emoções e de reacções se construiu um império da palavra, da imaginação, da acção pela acção, a unir indiferentes, ou opositores, numa festa de protestos: manifestações, desfiles, ocupações, greves – de estudantes, de operários – a reunião magna do Champs de Mars, as barricadas do “Quartier Latin e da Bastilha, a brutalidade policial, detonador de uma explosão de fraternidades… Por uns dias – ou semanas – foi como se a democracia francesa tivesse sumido do mapa, deixando em seu lugar, omnipresente e omnipotente, um regime policial. Por fim, até De Gaulle seria dado como desaparecido, num interregno táctico, para reaparecer, vindo da plácida Colombey, a dissolver o parlamento e a convocar eleições legislativas – solução última em democracia. E, assim, mudando o campo de batalha (ou melhor: a batalha de campo…) ganhou força, com outras armas… Os resultados eleitorais só terão surpreendido os que se equivocaram nas razões da complacência popular com o “movimento” (que eram apenas as do coração, de simpatia pelos combatentes, mais do que pelas razões do seu combate). Na hora de votar, venceram as razões da razão… Venceu De Gaulle, que proclamara “La réforme, oui, la chienlit non”. Na primeira volta, a 23 de Junho, o gaullismo ressurgiu, na segunda, uma semana depois, a sua vitória foi esmagadora. O velho general reocupava o comando (por pouco tempo, é certo…). E o reformismo, o espaço da contestação, dando a Maio 68, enquanto “happening”, um lugar no álbum de recordações. 4 – Como escreveu Touraine, num livro de leitura obrigatória ( (Le mouvement de Mai ou le communisme utopique), Maio foi “um movimento revolucionário sem revolução…” E o alvo não fora De Gaulle, mas a sociedade francesa, as forças de controlo e manipulação da sua vida, postas em causa por um núcleo minoritário, que mobilizou massas gigantescas à sua volta, beneficiando, fundamentalmente, de dois erros alheios, que em análise retrospectiva, pareceriam fáceis de evitar: primeiramente, o encerramento da Faculdade de Nanterre, que transporta a contestação de uma espécie de “laboratório experimental”, isolado nos subúrbios, para o palco aberto e central do “Quartier Latina” em redor da Sorbonne, a “alma mater”. E, depois, no auge dos tumultos, o eclipse total do poder político, deixando, como sucedâneo, a polarizar indignação e antipatia, o aparelho policial e, com ele, a violência à solta. Touraine dixit... por outras palavras. Ouvi-o dize-lo, de viva voz, em Nanterre, ou na “École Pratique”, nunca achei argumentos para discordar… 5 – Propendo, 40 anos depois, a valorizar Maio de 68. (vulcão extinto ou,na perspectiva de então, simplesmente dormente?), enquanto factor determinante da decisão de aceitar uma bolsa de estudos para fazer a pós-graduação de sociologia em Paris. A meio do ano, ainda a minha prioridade era: Northwestern, Illinois, onde tinha matrículas e direcção de estudos meticulosamente organizada (e uma bolsa melhor!) Em Paris era a improvisação que me aguardava. Parti quando pude, retida por várias peias burocrática - e, em pleno Novembro, tive de encontrar “in loco” as soluções possíveis. A École Pratique dês Hautes Études – um dos objectivos iniciais - o departamento de sociologia de Vincennes e a “Catho” (Universitai Catholica Parisiensis), onde coleccionei certificados de cursos. Sentia-me no quotidiano, a transitar entre mundos universitários colocados nas antípodas uns dos outros. Os reflexos do “movimento” eram mínimos na “Católica” (indiciados no pormenor do uso de gravata por professores e alunos…) e máximo na novíssima Vincennes: um aquartelamento universitário acabado à pressa - implantado nas lonjuras de um bosque, sem nada mais do que belezas naturais à vista. Aí o dia podia ou não ou não ser tumultuoso, sem qualquer risco de intervenção dos CRS (ainda visíveis e frequentemente actuantes em incidentes menores no “Quartier Latin”). Em Vincenne ocorreria, de vez em quando, sem periodicidade previsível, ma batalha campal entre clãs rivais (comunistas versus “gauchistes”). Partiam vidros e cadeiras. Pouco mais! Nada que perturbasse (excepto durante o desenrolar das escaramuças) a normal frequência das aulas, algumas das quais de excelente nível. De Vincennes, herança de Maio 68, ficou-me uma boa impressão. Como um “self-service”, lá encontrávamos o que queríamos – da lição tradicional, ao “comício” dos grandes profetas do tempo ou a “bagarre”. 6 – Quarenta anos depois, aquela bastante impulsiva e muito enigmática e questionável (do meu ponto de vista…) preferência por “Paris” = dispersão de esforços e incertezas, em vez de “Northwestern, Evanston” = perfeita organização e perspectivas de progressão segura, só não são motivo de maior arrependimento e de lamentação, porque acabou por se revelar uma aprendizagem inesperadamente adequada, para o que viria a ser, o trabalho da maior parte da minha vida profissional (ou política). De facto, não estava destinada, como queria, a passa-la no interior de gabinetes de estudo, ou em em salas de aula, mas em incessantes viagens para contacto e colaboração com comunidades de expatriados! Ora em Evanston, ter-me-ia faltado não só o conhecimento de “experiência feito” da realidade da emigração portuguesa no seu período heróico na França, mas também e, sobretudo, a vivência em pequena e coesa comunidade no estrangeiro – comunidade de estudantes, com as suas semelhanças e diferenças face às comunidades de trabalhadores imigrantes. Illinois nunca foi terra de acolhimento da nossa gente nos Estados Unidos da América (que, como é sabido, se fica, tradicionalmente pelo litora,l a Leste e a Oeste). Aí teria, pois, estado entre estrangeiros, certamente bem integrada a dar curso ao meu velho sonho americano. Em Paris, pelo contrário, permaneci entre portugueses, num espaço extra-territorial português (em 68/69) ou entre portugueses e argentinos (em 69/70), quando, involuntariamente, fui transferida da Casa de Portugal para a Fundação Argentina, dentro da “Cite” – e em boa hora: lá pude fazer amigos para sempre, entre jovens de um dos países mais europeístas e cosmopolitas e, para mim, dos mais atraentes de todo o universo… Esta pertença a uma comunidade de emigração (ou melhor, a duas) não a teria tido no Illinois com americanos, ainda que americanos de origens diversas. Como sabemos, a nossa emigração atingiu, em França, nesse período, o seu máximo de sempre – superando a emigração “delirante” de que falava Emygdio da Silva, abismado perante os números do êxodo de 1911 – 1913. De 1968 a 1970, os expatriados foram mais de 500.000, na maioria clandestinos (a que se somavam os que partiam em direcção aos chamados novos destinos, como o Canadá e a Venezuela, constituindo um movimento quase da mesma ordem de grandeza, ainda que com muito menor visibilidade - talvez pela sua componente maioritariamente insular, dos açoreanos para Norte e dos madeirenses para a América Latina). A França atravessava um “boom económico” – e, por isso, é óbvio que Maio de 68 não teve a ver com a crise neste sector… - e precisava destes portugueses tanto quanto eles precisavam de buscar, em França, trabalho ou refúgio contra perseguições políticas ou recrutamento forçado para as guerras de África. Estes trabalhadores fazem parte das minhas memórias do pós-Maio 68, não porque tivesse com eles um relacionamento próximo (o que só aconteceu com um ou outro exilado político), mas porque eram símbolos sempre presentes de um Portugal que não queríamos que fosse como era. Com eles me cruzava, no dia-a-dia, nas ruas de Paris. Reconhecia-os, mesmo que não falássemos. Quando falávamos - se os via em dificuldade de comunicação - era para servir de interprete. Espantavam-se com a minha fluência na língua local, como se fosse coisa impossível para um compatriota… Uma das recordações mais pungentes que guardo dessa minha expatriação temporária é a dos passeios de domingo a Versalhes. Não porque lá fosse muitas vezes, com os amigos, mas porque, sempre que ia, lá estavam dezenas de portugueses, só homens – e homens sós… - de fato completo e chapéu preto, espalhados em pequenos núcleos pelos jardins geométricos do palácio real, assim como que colocado no lugar do átrio de uma igreja paroquial minhota… Eram o retrato perfeito dos sentimentos de inadaptação e de nostalgia. O movimento associativo não tardaria a recriar um espaço, de cultura popular portuguesa, com os seus bares, cafés, restaurantes, ranchos folclóricos, bandas de música, grupos desportivos, escolas – a transplantação de uma aldeia portuguesa .bem organizada em todo o seu pitoresco e modos de estar (como se costuma dizer…) Também na “Cité” a “Casa de Portugal” nos oferecia o factor proximidade num círculo fechado, se o soubéssemos aproveitar com laços de amizade – e soubemos ! Éramos um grupo unido, coeso, com um “projecto de convívio” nos tempos livres, embora sem comando, sem “chefes”, como iguais. Não incluíamos todos os portugueses da “Casa” – longe disso! – nem excluíamos, à partida, os estrangeiros (um dos nossos amigos, jovem exilado pelo regime dos coronéis, viria a ser, muito mais tarde, Embaixador da Grécia em Lisboa!). Apenas “uma trintena de residentes”, como fomos chamados num momento de “confronto” com a direcção da Casa, logo no início do ano lectivo. Terá esse “incidente”estado na origem do espírito de grupo? Talvez sim, talvez não… Tudo começou assim: alguns de nós – nem sequer me lembro quantos… - resolveram lançar mão de um dos direitos que o Maio de 68 conquistara: o “droit d’affichage”. O direito de expor cartazes, anúncios, sem autorização do director da residência. Usamos esse direito para convocar eleições para os órgãos dirigentes da Casa. Apresentámos uma lista de candidatos e proponentes (no conjunto, a tal “trintena”). Ganhámos as eleições e logo o processo foi posto em causa… A administração não reconhecia – a “uma trintena de residentes” a legitimidade para afixar convocatórias sem a chancela da Autoridade. Mostrámos, então, que nos faltava, em absoluto, o impulso revolucionário, na tradição de Nanterre 68. Não contestámos. Reconvertemos o projecto cívico de intervenção nos destinos da “Casa” em projecto lúdico de convívio dentro da “Casa” e da “Cité”, Em inúmeras reuniões, ao longo do ano, sempre pedíamos e obtínhamos autorização, para usar cozinhas e salões de festas à maneira de um clube ou de uma tertúlia. Os contactos com a França, limitavam-se ao local de trabalho (ou estudo!), do qual voltávamos para casa: familiar. A residência da Fundação Gulbenkian estava assim, para nós, integrada em dois mundos: o do nosso País, com as marcas da sua mentalidade, das suas cisões, dos seus “fantasmas” (também das expectativas geradas pelo “marcelismo”…) e o da Cidade Universitária, que fora um dos palcos de Maio 68 – embora palco do segundo plano - com outros “fantasmas”, as imagens da destruição no seu interior e o encerramento violento das residências “representativas” de regimes ditatoriais, Espanha, Argentina, Portugal… Pouco importara que a nossa não fosse do Estado, mas de uma Fundação privada, com sede em Lisboa. A “trintena de residentes” não escapara, neste contexto, a uma conotação política: de “católicos progressistas”. Na verdade, uns eram católicos outros não – o mesmo podendo dizer dos progressistas. Talvez fossemos todos democratas. Admito que sim. Mas não éramos os únicos nem essa qualidade podia justificar um tão forte ímpeto a uma cooperação que não passava por preocupações políticas. Tenho uma certeza: foram insignificantes as afinidades e as divergências políticas sobre o evoluir da situação em Portugal ou em França, no nosso relacionamento. E no pós 25 de Abril de 1974, uns manter-se-iam independentes – a maioria – outros adeririam a formações partidárias variadas, entre as muitas que então floresciam. Raros foram os intervenientes na cena política. Dali saíram, sim, professores, investigadores, académicos em várias áreas, como seria previsível face aos seus “curricula” e aos interesses que os norteavam em vários ramos do saber. Recordo-me, por exemplo, dos nossos três bolseiros de engenharia nuclear, que num curso extremamente elitista de uma vintena de franceses e estrangeiros, ficaram classificados em primeiro, segundo e quinto lugar… Ou de um outro que, nesse ano, se doutorou na Sorbonne com vinte valores - o primeiro não francês a alcançar tal distinção na sua especialidade… 7 – Como disse, em 1969, o Maio do ano anterior estava já pouco presente no quotidiano da “Cité”, (o “droit d’affichage” e outros direitos eram já apenas vestígios da “utopia autogestionária”… Nesse ano, houvera um terramoto em Portugal (que divertido foi, sabendo o seu epílogo, receber em simultâneo, dois dias depois, uma vintena de cartas, a contar pormenores hilariantes de reacções muito individualizadas ao susto colectivo…). O Homem fora à lua (e nós aguardáramos pelo momento alto ao longo de uma noite inteira de conversa, na sala de televisão da residência…). Eddie MercKx ganhara, de forma indescutível e galvanizante o primeiro dos seus cinco “Tours de France” que igualmente acompanhámos diante do grande ecrã de televisão, torcendo pelo belga, naturalmente… De Gaulle retirou-se, de vez, por iniciativa própria, para Colombey, a pretexto de um contratempo menor. Spínola era um “habitue” da televisão francesa (o mais mediático dos portugueses), impressionando com o seu monóculo e a sua serena heterodoxia, sempre em directo confronto com o sereno ortodoxo Amílcar Cabral. Estávamos atentos à França e ao mundo exterior, mas vivíamos intensamente Portugal – como é característico de uma comunidade imersa em terra alheia O regresso à Pátria iria significar a dispersão, a incapacidade de vencer os obstáculos postos pela grande cidade dissolvente à nossa vontade de continuar a realidade do grupo. Permanecem memórias (mais do que é possível contar) desse tempo eminentemente feliz, repartido na transposição quotidiana da fronteira entre o território do estudo ou do trabalho e o da convivialidade e do lazer, entre dois países em movimento descompassado: a “França pós Maio” e o futuro “Portugal de Abril”. Quarenta anos depois, (mais de 30 passados sobre a nossa “revolução”, torna-se mais fácil acompanhar, sentimentalmente, a insatisfação e os impulsos de rebeldia que sacodem, a espaços, as águas mornas dos “paraísos democráticos”. A aversão aos aparelhos partidários, ás cooperações ou a uma classe política, como a de Maio de 68, pouco sensível à expressão de novas formas de dominância e dependência cultural e não só económica. E por isso me é mais fácil equacionar no presente o sentido da acção desse Maio passado. Janeiro de 2008 Maria Manuela Aguiar

agosto 24, 2018

 APOSENTAÇÃO COMPULSIVA AOS 70 ANOS. UM CASO DE INCONSTITUCIONALIDADE? 1- Vejo a aposentação compulsiva dos servidores do Estado, (em sentido lato), como uma espécie de sentença de "morte profissional" aos 70 anos, e considero a sua imediata abolição uma forma de restituir a plena dignidade humana aos trabalhadores do setor público. Nunca compreendi o "porquê" deste regime excecional e discriminatório, que contrasta, em absoluto, com a regra da liberdade de trabalho, sem limite etário, aceite tanto no setor privado, como na política, não obstante a sua natureza de serviço público. É, a meu ver, uma limitação atentatória do princípio de igualdade entre todos os cidadãos, consagrado no nº 1 do artº13º da Constituição da República, em tudo semelhante ás que vêm expressamente mencionadas no seu nº 2 (ascendência, sexo, raça, instrução, condição social, etc, etc ). Bom bom seria que, em próximo processo revisional em São Bento , o fator de discriminação "idade" fosse acrescentado a essa enumeração.. Só a falta de capacidade física e mental para o exercício do cargo pode ser fundamento da cessação do vínculo laboral pois, como sabemos, a presunção de incapacidade aos 70 anos choca com a verdade da vida e da ciência! E não se invoque o argumento da necessidade de renovação geracional, pois esse valeria, do mesmo modo, para a política, aos vários níveis, e para o setor privado.. A renovação é precisa, mas acontece, naturalmente, como comprovam estes dois domínios. 2 - Não estamos a falar, como alguns com grosseira demagogia têm insinuado, de aumento da idade de reforma/aposentação. O prolongamento forçado ( sublinho, "forçado") da vida ativa vem sendo imposto por motivos essencialmente economicistas, para retardar a passagem dos contribuintes a beneficiários do sistema de pensões, como expediente para assegurar a sustentabilidade, ao que dizem posta em causa, do edifício da segurança social, e, com ele, do futuro das pensões dos atuais contribuintes, A questão que nos ocupa não é do foro da economia ou da contabilidade - para a qual a opção de continuar para além dos 70 será até positiva . É, sim, uma questão de princípio, de fundo humanista, personalista e libertário, que recoloca a pessoa no centro da decisão, dando-lhe a escolha de retardar a data do fim da carreira. Para tal, bastará revogar uma medida, que foi instituída há cerca de um século, quando a esperança média de vida era, de facto, inferior à da barreira estabelecida. Uma atualização para o equivalente a essa média, no presente, elevaria a fasquia da aposentação compulsiva, em cerca de uma década, ao menos no nosso país. Não é o que propomos, em nome dos direitos de cidadania dos seniores. A mera dilatação do prazo continuaria a corporizar o mal de uma imposição arbitrária, desde logo, porque o processo de envelhecimento não é uniforme. Nada há de mais relativo do que o peso da idade no declínio efetivo de faculdades de pensamento e de ação. O prematuro "abate" ao ativo de funcionários, ainda pujantes de sabedoria e experiência, é um perfeito paradigma de desperdício. 3 - Há, ainda os que invocam como decisivo para, sem mais discussão, se manter o "status quo" a simples constatação de serem poucos, (três ou quatro centenas em muitos milhares), os que, atualmente, permanecem em funções até ao preciso momento de "expulsão" do serviço público. Expulsão - não tenhamos medo de palavras tão contundentes quanto verdadeiras! Ora, o número é coisa totalmente irrelevante, quando se trata de fazer justiça. Reconheçamos que uma esmagadora maioria tem pressa de ir para casa, ou porque sente o fardo da idade ou do labor em si mesmo, ou do ambiente em que é exercido. Admitamos, também, que a maioria dessa maioria é facilmente substituível por uma nova vaga, e que muitos dos que a integram, teriam gostado de se retirar aos 40 ou 50 anos. Não é desses que curamos, é dos outros - para lhes garantir a livre opção por saída mais tardia. Só dela aproveita quem quer. Serão, sobretudo, elites académicas, professores, cientistas, diplomatas, médicos... Médicos! Talvez esta iniciativa do governo tenha sido desencadeada pela recente aposentação compulsiva do famoso cirurgião de Coimbra, Doutor Manuel Antunes, que tudo disse e tudo fez para continuar a sua missão e foi obrigado a sair para o setor da medicina privada, certamente, em relutante competição com o serviço público de excelência, que ele próprio criou. Um absurdo, que constituindo drama pessoal, semelhante a outros menos conhecidos, ganhou particular visibilidade

agosto 18, 2018

Ângelo Viegas é um dos nomes mais ilustres da nossa Diáspora, no século XX. Ao dedicar uma publicação à sua memória, ao seu percurso de vida, estaremos, em simultâneo, a fazer a história da construção e afirmação da presença lusa no sul do Brasil, no progressivo Estado do Paraná, na jovem e moderna cidade de Maringá. Já o conhecia pela fama, pela qualidade da sua intervenção comunitária, antes de o encontrar pessoalmente. E foi por seu intermédio que aceitei o convite para incluir o Estado Paranaense no roteiro de uma deslocação ao Brasil. com a primeira visita a uma cidade, que tinha de idade, menos anos do que eu, e a um novo Centro Cultural, cujo dinamismo revelava a existência de forte liderança. Muitos terão dado importante contributo para a concretização desse ousado projeto, mas não me ficaram dúvidas quanto ao papel fundamental de Ângelo Viegas, apesar da sua postura sempre tão discreta e diplomática. Na verdade, não procurou nunca o reconhecimento individual, mas o coletivo, fazendo sua a missão tão tradicionalmente portuguesa de convivialidade, de partilha de experiências e de afetos com outros povos, de vontade de integração, norteada pelos valores da cultura de origem. Foi essa sua vontade de pertença a duas nações, a realidades culturais que quis e conseguiu tornar mais próximas, mais interativas, através de uma ação notável e constante, que o tornou, ou torna, um exemplo para as gerações futuras, um exemplo intemporal. A Ângelo Viegas não faltavam ideias e sonhos fantásticos, e não faltava, sobretudo a capacidade de os levar a bom termo, com entusiasmo e alegria, com esforçado trabalho e brilho inexcedível. Maringá deve-lhe a "época de ouro", em que esteve na vanguarda de todas as comunidades portuguesas de então! Entre as inúmeras iniciativas, que pude acompanhar de perto, estão o esplêndido paradigma que constituiu a geminação de Maringá com Leiria, e a reunião do Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), que organizou em 1986. As cimeiras do CCP, em diferentes regiões do mundo, eram bienais e convocadas para cidades com núcleos dinâmicos de portugueses, que se viam convertidas, durante o período da reunião, em autênticas "capitais" da emigração portuguesa. Foi o caso de Toronto, Fortaleza, Capetown, Danbury/ Connecticut, Estugarda, e Maringá. De todas, a maior foi a de Maringá! Primou pela cooperação das autoridades brasileiras, pela excelente cobertura dos "media", pelo envolvimento comunitário, e culminou num espetacular jantar de despedida, com a participação de mais de um milhar de portugueses e brasileiros. Só alguém como Ele conseguiria tanto. Pelo empenho e competência, naturalmente, mas também pela a facilidade com que fazia aliados, com que abria todas as portas, graças à simpatia, à sua invariável disponibilidade para colaborar, para ajudar quem quer que precisasse do seu apoio. Por isso, aqui deixo o testemunho da minha imensa admiração pelo cidadão, pelo incansável defensor dos direitos dos compatriotas, pelo excecional Embaixador da Cultura Portuguesa, e , igualmente, do sentimento de perda, de saudade por um Amigo verdadeiro, leal e generoso.

agosto 13, 2018

THE GREAT AMERICAN DISASTER Do 9-11 ao 11-9 1 - Cheguei a NY na segunda daquelas datas fatídicas: o "day after " da eleição presidencial americana. A viagem pareceu interminável, porque ao tempo real se somou o tempo psicológico, de quem ia chegar à América, já não para partilhar a festa da vitória, mas como quem vai a um funeral... de tudo o que admira na terra da liberdade, de todos os valores e causas em que acredita. Nessa noite, nas maiores cidades do país, o povo, que, com o seu voto, elegeu Presidente Hillary Clinton, saiu à rua, em pacíficas marchas de protesto. Foram as primeiras e não serão as últimas. Hopefully...Temos de esperar que o povo americano saiba defender-se da prepotência racista, xenófoba e misógina que Trump encarna, e, com resistência pacífica, defender o mundo de uma eminente regressão civilizacional. O "nine-eleven" foi uma data trágica que mudou, para sempre o tempo e o espaço de paz em que viviam as democracias, desde a derrota das potências do "Eixo", do nazismo e do fascismo, na segunda metade do século XX . Um outro presidente republicano, JW Bush, lançou a guerra (do Iraque), destruiu equilíbrio de forças no Médio Oriente e criou o "habitat" ao desenvolvimento da Al_Qaeda e de todos os terrorismos aparentados. O erro de Bush não tem fim à vista. Contudo, ao comparar Trump a Bush, a conclusão é assustadora, porque, apesar de toda a sua incompetência e estupidez , este ainda se situa no campo da democracia, na sua faixa mais conservadora e belicista, contudo ainda dentro dos princípios e das normas mínimas de relacionamento entre pessoas, raças, sexos e religiões, entre nações e povos. Tal como Trump face a Hillary, ele perdera no voto popular para o democrata Al Gore, e fora entronizado por um sistema anacrónico de voto colegial - tão anacrónico quanto o direito individual de porte de armas, que, há duzentos anos, correspondia a uma necessidade de auto-preservação nas pradarias ou nos "saloons" do Far - west" e hoje serve, sobretudo, a violência dos fanáticos e o instinto assassino dos psicopatas. Na verdade, o sistema eleitoral vigente na América favorece Estados menos populosos, por coincidência, mais WASP, (brancos, anglo-saxónicos e protestantes). mais envelhecidos e mais conservadores, que estão sobre - representados, e cada vez mais. Um outro fator de distorção da vontade popular, é a regra que dá ao vencedor de um Estado, mesmo tangencial, todos os delegados que o representam, sejam eles muito ou poucos, assim inutilizando o voto de todos quantos, nessa circunscrição, sufragaram o outro candidato De há muito se multiplicam as críticas a tais aberrações eleitorais, assim como ao uso generalizado de armas de fogo, sem que tenha sido possível a sua erradicação. 2 - Hillary Rodham Clinton, a brilhante Senadora de NY, a competentíssima e prestigiada antiga Ministra dos Negócios Estrangeiros, ganhou a eleição por sufrágio direto e universal, como acontecera com Al Gore o antigo Vice.presidente de Bill Clinton, Seria, em qualquer Estado, que respeite o voto expresso do Povo - de Portugal à África do Sul, do Brasil à França... - a Presidente do seu país. Fica com ela, como clamam muitos democratas, essa inegável legitimidade! Resta ao oponente a "legitimidade de sistema", ironia do destino para quem se apresentava como a candidato anti-sistema.. E sobra-lhe poder... Num e noutro caso, há 16 anos como agora, os EUA perderam estadistas de grande estatura, com um ímpar conhecimento de política internacional e nacional, e viram, em seu lugar, homens sem qualidade, que, à frente da única super-potência mundial, são tremendamente perigosos para a humanidade inteira, 3 - Depois de uma estadia esplêndida, ainda que breve em Toronto, regressei, no domingo, pessimista, mas inconformada quanto a perspetivas de futuro, tendo o Globe and Mail e o NY Times como companheiros de viagem. Nos seus textos, encontrei, invariavelmente, uma leitura do acontecido na madrugada do "elevan nine" próxima da minha.:Horrorizada", como Paul Krugman ( "Thoughts for the horrified"), dececionada como John Irving (The "great beast" has spoken), resistente como Timothy Egan ("Resistance is not Futile). Em Portugal, constatei, sem surpresa, aliás, que (quase) todos se mostram menos preocupados com a figura de Trump do que com Marine le Pen, sua aliada em versão “soft” e dão mostras de querer “branquear” a sua imagem Pouco lhes importa a nomeação dos Bannon e dos Flyn para a "entourage" presidencial, ou o regozijo de Assad, de Mugabe ou Marine, que o consideram "aliado natural". Tal como Putin... A história recente da Europa e do mundo mostra o perigo de subvalorizar ditadores em potência. Não relativizemos os movimentos nacionalistas e xenófobos que alastram por todo o lado, até nos países mais improváveis, com o Brexit do Reino Unido, e a Dinamarca a confiscar os bens dos refugiados à maneira hitleriana. Não sejamos a maioria democrática silenciosa. Maioria, sim! A começar na América, menos dividida ao meio do que se julga, porque o projeto humanista e generoso de Hillary ganhou o sufrágio popular, e, do outro lado, muitos votaram por fatores mais benignos do que o ódio. A “Alternative Right” /Tea Party , de Trump, Pence, Bannon ou Flyn, embora no poder, é largamente minoritária Os democratas já vieram para a rua, em inúmeras manifestações cívicas, um elenco de negros, num palco da Broadway, já teve a coragem de exortar o futuro Vice.Presidente Pence - vaiado pelo público - a respeitar os direitos das minorias, um significativo número de clubes da NBA, já recusou alojar-se nos hotéis Trump, o “Mayor” de Nova York já fez desaparecer do alcance persecutório da administração Trump os registos de trabalhadores indocumentados. A democracia na América vai sobreviver na multiplicação destes gestos cívicos, Estamos todos convocados a lutar, assim, pela liberdade, igualdade e fraternidade no século XXI.

MULHERES EM MOVIMENTO - COLÓQUIO PORTO 2013

ORGANIZAÇÃO PROF DOUTORA ISABELLE OLIVEIRA, Janeiro 2013 - Fundação Engº António de Almeida INTERVENÇÃO de MARIA MANUELA AGUIAR (AMM) Feminism is the radical notion that women are people 1 - UMA FAMÍLIA ESTIMULANTE Sou feminista desde que me lembro de ter opiniões sobre o assunto... Comecei cedo, com 5 ou 6 anos, e para isso muito contribuiram as Avós, especialmente a Avó materna Maria (Aguiar), uma verdadeira matriarca, que ficou viúva, com 7 filhos, aos 36 anos e se tornou líder não só na sua casa, como na sua terra. Pertencia à Obra das Mães, às organizações da paróquia, às associações culturais. Era uma senhora muito bonita, muito inteligente e muito conservadora. Em nome das boas maneiras e do recato feminino, que tanto prezava, apesar da sua respeitável proeminência, dizia-me, vezes sem conta, "as meninas não fazem isso" - "isso" sendo por exemplo, subir às árvores, saltar dos eléctricos em andamento ou jogar futebol com os primos... Eu sabia que gozava do estatuto de neta favorita e gostava imenso da Avó, mas não seguia esses seus conselhos. O plural: "as meninas", levava-me a reagir. Achava que devia mostrar que as "meninas" eram tão capazes como os rapazes de "fazer isso" e partia para o demonstrar no dia a dia. Era, pois, uma feminista praticante, com uma emergente consciência da existência das questões de género ... Curiosamente, os homens, Pai e Avó Manuel, eram fãs das minhas proezas desportivas, tanto como das escolares. Sempre me incentivaram a estudar e preparar o futuro profissional. Nunca o paradigma da "dona de casa" esteve nos meus horizontes, ou nos seus. Pelo contrário: punham em mim, a meu ver, excessivas expectativas.... E assim, graças a eles,o meu feminismo esteve "ab initio" na linha de pensamento de uma Ana de Castro Osório, mesmo que, nesse tempo, não conhecesse sequer o seu nome (como aquele personagem que fazia prosa sem saber...). Os homens foram, de facto, aliados - muitos, incluindo numerosos tios e primos, e, mais tarde, os meus professores da Faculdade de Direito de Coimbra. Tive uma infância divertida e feliz, numa família unida e convivial, apesar de politicamente dividida. Uma tradição que vinha de trás - houve, sucessivamente, regeneradores e progressistas, monárquicos e republicanos, salazaristas e democratas, germanófilos e anglófilos (como eram os meus Pais). A política estava bem presente, em acesas discussões sem fim, mas nunca ninguém se zangava. Consideravam os outros "gente de bem", por mais extremadas que fossem as suas opiniões. Tendo a atribuir mais a essa experiência vivida do que à idiossincrasia a ausência de preconceitos partidários em relação a quem não pensa.como eu. E, possivelmente, também o gosto pela argumentação, pela entusiástica defesa de pontos de vista, uma sensibilidade a formas de injustiça como as assimetrias regionais, o despertar para um saudável regionalismo nortenho, a par da paixão pelo Porto (e pelo FCP)... Outra forum de "convívio e debate" determinante foi a escola - dois anos na pública, sete anos de Colégio do Sardão (um internato de religiosas Doroteias), dois anos de Liceu. Costumo comparar o colégio a um quartel elegante, onde prestei uma espécie de "serviço militar obrigatório". Não foi, de facto, uma opção voluntária, mas, com a excelência do ensino e, sobretudo, das estruturas desportivas, ginásio, campos de jogos, parques e largos espaços de recreio, posso dizer que lá passei muitos bons momentos. Organizava competições desportivas (incluindo futebol clandestino), dirigia peças de teatro, escrevia crónicas e romances que partilhava com as colegas, dava largas à imaginação e à energia. Uma dessas crónicas, que pretendia fazer humor à custa da instituição, suas regra e poderes constituidos foi apreendida, e quase provocou uma expulsão mesmo nas vésperas do exame do antigo 5º ano. Não seria a primeira da família a passar por isso, mas escapei, suponho que com a interferência do capelão e de algumas das Madres, que me compreendiam e me achavam graça... Mas eu quis mudar para o Liceu Rainha Santa Isabel, no Porto, contra a vontade do Pai, que me vaticinava toda a espécie de retrocessos escolares, que tinham desabado sobre ele, quando depois de 10 anos de Colégio dos Carvalhos se viu "à solta" no Liceu Rodrigues de Freitas. A história não se repetiu, pelo contrário. Bati todos os recordes pessoais no exame de 7º ano e ganhei, pelo bem-amado Liceu, o prémio nacional. De qualquer modo, foi no Sardão que vivi a minha primeira batalha política - ou político-sindical. E um "enclausuramento" que me fazia apreciar mais os fins de semana e as férias de verão em Espinho, como espaço e tempo de liberdade... Frequentava com o Pai o estádio das Antas, com os Pais e o Avô os cinemas e teatros e, também, os cafés do Porto, coisa invulgar na época para o sexo feminino, de qualquer idade... COIMBRA ANOS 60 Em Coimbra, era também à mesa dos café que estudava, que convivia e bradava contra as discriminações em que continuava fértil a sociedade portuguesa de 60. .. No Tropical, no Mandarim, no bar da Faculdade de Letras ou de Farmácia encontrava-me com colegas, com assistentes, pouco mais velhos do que eu, embora bastante mais sábios, como era o caso do Doutor Mota Pinto, que viria a ser o responsável pelo meu tirocínio na política. Eu falava abertamente, contestava leis e costumes. A leitura do Código de Seabra era um pesadelo - a "capitis diminutio" da mulher casada, que era a expressão latina para a escravidão feminina subsistente 2.000 anos depois, só podia alimentar sentimentos de revolta, a revigorar um feminismo que, por oposição à situação portuguesa, ia ganhando base doutrinal na social-democracia sueca. O tema da igualdade de sexos não estava na agenda política de 60 - e ainda hoje não está suficientemente... Em todo o caso, na altura soava mais a radicalismo e excentricidade. Esperava tudo menos que, anos e anos mais tarde, essa faceta pudesse pesar, como creio que pesou, numa mudança de rumo, que pôs fim a escolhas profissionais assentes (assistente de um Centro de Estudos Sociais, assessora do Provedor de Justiça). Sempre sonhei com uma carreira jurídica. A magistratura estava-me vedada por ser mulher Queria ser advogada, uma espécie de Perry Mason portuguesa. Era no terreno jurídico que queria competir, não no da política. Direito era, então, um curso de perfil masculino, com um corpo docente sem uma única mulher e com mais de 80% de alunos homens. No meu livro de curso, conto 63 homens e 12 mulheres. Entre elas há excelentes advogadas e juristas, mas, das 12, na política só eu, e acidentalmente... Dos 63, foram muitos os que, no pós 25 de Abril, se distinguiram em Governos da República - Daniel Proença de Carvalho, Laborinho Lúcio, António Campos, Luís Fontoura, João Padrão... Ou que são vozes autorizadas no domínio em que se cruza o Direito com a Política, como Gomes Canotilho ou Manuel Porto, ou com as Letras, como Mário Claudio ou José Carlos Vasconcelos... Ao fim de 5 anos felizes, eu trazia de Coimbra apenas um pequeno trauma: na única eleição a que concorri, pelo Conselho de Repúblicas, para uma qualquer comissão, cujo nome nem recordo - só sei que dava acesso à direcção da Associação Académica - perdi num colégio eleitoral que era 100% feminino. Coisa natural, porque a maioria das meninas era conservadora, mas eu assumi pessoalmente a derrota e covenci-me de que não estava mesmo nada vocacionada para tais andanças... 3 - A FORÇA DO IMPREVISTO Na história dos antecedentes da minha relutante ocupação de cargos políticos, estava já a força do imprevisto: primeiro uma proposta para assistente de sociologia na Universidade Católica que veio da parte de um professor que não conhecia, o Doutor Àlvaro Melo e Sousa ( um amigo comum indicou-lhe o meu nome, na altura em que acabava de regressar de Pari, com uns certificados na matéria). Foi preciso ele insistir, mas acabei por dizer o sim - e não me arrependi. Esse facto tornou mais fácil aceitar um segundo desafio lançado pelo Professor Eduardo Correia, para a recém.criada Faculdade de Economia em Coimbra da qual ele era o director. Confesso que nem sabia da abertura efectiva dessa Faculdade... Foi um encontro acidental, num colóquio. Quando me viu achou boa ideia associar-me ao empreendimento. Não houve hesitação da minha parte. Que bom voltar a Coimbra! Tomei posse na véspera do 25 de Abril de 1974. Na semana seguinte, Eduardo Correia era Ministro da Educação do 1ª Governo Provisório e, pouco depois, um novo encontro com outro dos grandes juristas do nosso século XX, o Professor, Ferrar Correia, em pleno pátio da universidade, à sombra da torre, levou-me para a minha própria Faculdade. Ao saber que estava ali ao lado, na Economia, convidou-me, de imediato, a transitar para Direito e eu aceitei tão depressa, que ele até julgou que eu julgava que ele estava a brincar. Não era o caso, era mesmo questão de feitio. Decido assim muitas vezes no que exclusivamente me respeita. E ali e então não havia que pensar duas vezes!... Guardo boas memórias de todas as passagens pelas funções docentes, na Universidade Católica, na Universidade Aberta, (num curso de mestrado cheio de jovens "promessas"), mas aquela tinha um significado muito especial - o convite chegava com atraso, mas chegava... Quando acabei o curso, em 1965, as mulheres estavam barradas do ofício - tinha havido uma, não existia impedimento legal, mas a prática era essa. Entretanto mudara, mas não me lembro de nenhuma colega - só homens e, quase todos, óptimos colegas, como o Fernado Nogueira ou o Cordeiro Tavares. Dez anos mais novos do que eu, o que me ajudou a rejuvenescer. Fui assistente de dois grandes juristas, o Doutor Rui Alarcão e o Doutor Mota Pinto. Os tempos agitados são-me geralmente favoráveis - como estudante dei-me bem em Paris, no pós Maio de 68, e o mesmo posso dizer de Coimbra, no pós 25 de Abril. Há coisas que seriam impensáveis fora de períodos revolucionários, e que fiz, sem oposição de ninguém, como dar aulas "extra muros", aos voluntários do Porto ou aulas práticas, a turmas naturalmente pequenas, no bar de Farmácia, ao ar livre, em dias de sol. Saíamos, em cortejo, dos "Gerais", já a falar das matérias, como os peripatéticos. Esclarecia dúvidas, exactamente como se estivessemos numa daquelas escuras e frias salas de aulas. E, depois, analisávamos o PREC. Os rapazes (ainda em maioria) eram quase todos de outros quadrantes ideológicos, mas isso não obstava ao ambiente de tertúlia. Em 1975/76 dei aulas teóricas de Introdução ao Estudo de Direito a salas cheias de "caloiros" simpáticos. Um dever e um prazer. E refiro tudo isto, porque julgo que foi esta segunda estada em Coimbra que me abriu as portas da política. Antes de mais, porque reatei, naquele preciso momento da nossa História, o relacionamento próximo com amigos que estavam no centro da fundação de partidos (em particular do PPD) e da criação de um regime democrático, E, por outro lado, porque descobri que era capaz de comunicar em público - eu, que me considerava fadada apenas para trabalho de gabinete. Anos mais tarde, ao fazer um levantamento do perfil profissional das mulheres mais activas do PSD, descobri que, sobretudo a nível local, havia um grande número de professoras. A meu ver, não era coincidência, mas a consequência de uma maior auto-confiança do que a que se consegue em outras funções... No meu caso, não tenho dúvida de que me transformou o suficiente para admitir a hipótese de enveredar pela exposição nos palcos da política. Que não para a planear... Na verdade, o convite que o Primeiro Ministro Mota Pinto me dirigiu para a Secretaria de Estado do Trabalho, uma daquelas que eram vistas como coutada masculina, foi um absoluto imprevisto. E o Doutor Mota Pinto usou o argumento decisivo: "se recusar, não haverá mulheres no meu Governo". Depois da mera combatividade verbal, era a hora de agir.... Estávamos em fins de 1978. A ousadia da minha designação valeu ao Professor Mota Pinto um rasgado elogio de Marcelo Rebelo de Sousa num editorial do Expresso, que ainda guardo na pasta de recortes e na memória. Sendo defensora do sistema de quotas, assumi-me como a "quota mínima" daquele Executivo, que veio a integrar outra Secretária de Estado na área mais tradicionalmente feminina da Educação... Sabíamos que a missão era de curto prazo - um governo de independentes de nomeação presidencial, que não cedia nem a pressões de rua nem a influência de máquinas partidárias, algumas já então poderosas. Na minha opinião, foi um governo que se impôs, ganhou credibilidade e, por isso, durou ainda menos do que o esperado... Os partidos trataram de se entender para o derrubar. Foram 9 meses intensos e formidáveis, findos os quais voltei para a Provedoria de Justiça, que, com o Dr José Magalhães Godinho como Provedor, era o melhor lugar de trabalho à face da terral. Para mim, o Dr Godinho representava um conjunto de legendários tios republicanos, com quem nunca tive as conversas que pude ter com ele. Era família - não aquela em que se nasce, mas a que se faz tão raras vezes na vida. Até que novo imprevisto sobreveio: em janeiro de 1980, logo depois da posse do VI Governo Constitucional, um telefone do Primeiro Ministro Sá Carneiro, que não conhecia pessoalmente, mas com quem me identificada, porque, como afirmou numa entrevista a Jaime Gama, e era "social-democrata à sueca".( É por isso que, sem ter filiação partidária antes de 80, me considerava PPD "avant la lettre", ou seja, Sácarneirista desde 1969). Pelo telefone, Sá Carneiro, foi sintético e breve a marcar um encontro para as 5.00 horas da tarde - audiência para o qual eu parti inquieta, mal penteada e mal vestida, como andava normalmente. E se ele fosse pessoa distante e pouco simpática? Se com isso arrefecesse a minha "condição de incondicional" de tudo o que dizia e fazia? Grande preocupação... Quanto ao que me esperava, isso já não era assim tão misterioso, porque os jornais falavam do meu nome para várias pastas. Sá Carneiro recebeu-me à hora exacta - não cheguei a sentar-me na sala de espera. Com um sorriso luminoso, que começava no seu olhar claro! Assim sempre o recordo, em todos os encontros que se seguiram. Quando a ele me dirigi pelo seu título de chefe do Governo, atalhou: "Não me chame Primeiro Ministro". Ao que eu respondi: "Desculpe, mas é como o vou chamar, porque me dá imensa satisfação que seja Primeiro- Ministro,e esperei anos para o poder tratar assim". Mas, tratamento cerimonioso àparte, a conversa tomou o rumo de uma alegre informalidade. Dei respostas um pouco insólitas, no tom que tantas vezes usei com outros políticos de quem era amiga de longa data. Sá Carneiro fez-me sempre sentir absolutamente à vontade. Parece que havia quem ficasse inibido na sua presença. Eu, pelo visto, ficava eufórica. O Doutor Sá Carneiro, ele próprio, era, assim, uma esplêndida surpresa. A outra surpresa veio do pelouro que me propôs: a emigração, num Ministério onde nunca tinha entrado, o de Negócios Estrangeiros. No governo da AD, em 1980, havia apenas três Secretárias de Estado, uma de cada um dos partidos, a Margarida Borges de Carvalho pelo PPM, a Teresa Costa Macedo pelo CDS e eu pelo PSD (num impulso, filiei-me nessa altura). Ainda a "quota mínima", tripartida... A emigração, ou melhor dizendo, a Diáspora Portuguesa,( porque falo da que tem uma estrutura orgânica, uma vida própria, colectiva, imersa na nossa cultura e um futuro que talha com a preservação da herança cultural) foi uma esplêndida descoberta - andava de comunidade distante em comunidade distante, sempre e reencontrar-me em Portugal - um fenómeno por mim insuspeitado de extra-territorialidade da nação. Um mundo associativo espantoso, embora um mundo de homens. Eu era a primeira mulher que junto deles aparecia, como face do governo da Pátria.Se tinha dúvida quanto à reacção que provocaria, logo os receios se desvaneceram - receberam-me sempre com alegria, com simpatia. Não fiz unanimidade, é claro, mas os afrontamentos que houve foram sempre devidos a questões políticas, não a questões de género. Trataram-me tão bem, que me deram o que mais me faltava: um superávide de confiança. Mesmo nas hostes ideologicamente adversárias encontrei quase sempre boa vontade para trabalho conjunto, até no, por vezes, agitado Conselho das Comunidades, que me coube organizar e presidir, desde1981 (era então um forum associativo, de perfil masculino, politicamente dividido entre uma Europa mais contestatária e uma Diáspora transoceânica mais próxima das posições do governo´). Na verdade, acredito que ser mulher tornou bem mais fácil a minha missão. Logo em 82, quem me fez ver isso, de uma forma bem divertida, foi um jornalista de S Diego, o Paulo Goulart. No fim de uma entrevista, ao almoço, disse-me: "Sabe, aqui só há dois políticos de quem gostámos: é de si e do João Lima". ( João Lima, antigo Secretário de Estado da Emigração era, então, deputado pelo PS). Fez uma pausa, como quem avalia e compara os seus dois eleitos e acrescentou: "Pensando bem, o João Lima até tem mais valor, porque é homem e socialista". Achei muita graça à sua franqueza. Na América ser socialista, de facto, assusta e não dá votos... E também é verdade que, em certas situações, mesmo na vida política ,mesmo em ambientes dominados pelo poder masculino, é uma vantagem ser Mulher... Porque é a "exótica" excepção? Porque há no fundo, um reconhecimento de que as mulheres fazem falta? Muitas hipóteses, para uma só certeza: no meu caso, senti simpatia, adesão e apoio desde o 1º momento, de um sem número de homens influentes e de algumas raras mulheres, que já se faziam ouvir. Quando deixei o governo, depois de cinco sucessivas experiências - sendo a última aquela em que os Secretrários de Estado passaram a ser considerdos "adjuntos de ministro"... - o imprevisto estava, de novo, à minha espera na AR, onde tinha o meu lugar pelo círculo do Porto. Um convite para ser candidata à 1ª Vice-Presidência da Assembleia. Aceitei, como aconteceu anteriormente, não muito segura de me sair bem na responsabilidade da representação feminina... Fui, assim, a 1ª Mulher a presidir às sessões plenárias do parlamento, à Conferência de líderes, a Delegações parlamentares - ao Japão, para começar... Após 4 anos nesse cargo que, enquanto não assumido por uma mulher, tinha sido sempre mais discreto, apesar da sua importância protocolar (2ª figura na linha da sucessão do Presidente da República, "en cas de malheur"...) sucedeu-me Leonor Beleza. Mas o País teria ainda de esperar um quarto de século por uma Presidente da AR, escolhida pelo mesmo partido, que é contra as quotas mas aposta na alternativa do pioneirismo na abertura de oportunidades ao que eu chamo "mulheres de excepçã"o... Só em 1991, me propus, eu própria, como voluntária, para um lugar que verdadeiramente queria: representante da AR na APCE (Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa). Aí, me mantive até abandonar o Parlamento nacional em 2005. Fui bem mais feliz e bem sucedida fora do que dentro de fronteiras (tanto na emigração como nas organizações internacionais, a APCE. e a AUEO...). Aí havia menos jogos políticos de bastidores, não se sabia o que era disciplina partidária, era larga a margem de iniciativa pessoal, para intervir, para propor recomendações... Presidi à Comissão das Migrações à Subcomissão da Igualdade e a outras, fui relatora em inúmeras propostas. Defendi a dupla nacinalidade, o estatuto dos expatriados, a não expulsão de imigrantes, o reagrupamento familiar, insurgi-me contra a guerra do Iraque, denunciei a discriminação de género no desporto... Acabei a presidir, entre 2002 e 2005, à própria delegação Portuguesa à APCE e á Assembleia da UEO. Um outro inesperado e insistente convite me levou, depois, à vereação da Câmara da cidade onde vivo, Espinho... Fui vereadora da Cultura no ano do centenário da República e isso permitiu fazer coisas diferentes e por o enfoque no movimento feminista e republicano. Não que eu seja republicana hoje, mas tenho a ecrteza que o teria sido em 1910, na companhia da Carolina Beatriz Àngelo, Ana de Castro Osório ou Adelaide Cabete. E feminista sou-o no sentido preciso que lhe davam as nossas sufragistas. Também nunca tive complexos de inferioridade por prenche, eventualmente,r um espaço aberto pela "quota" , mais ou menos larvada. No meu caso, nunca explicita, nem mesmo no cargo de VP da AR e sempre rejeitada como tal pelos opositores das quotas do meu partido. Quando eu dizia: "escolheram-me para Vice-Presidente da AR, porque queriam uma Mulher" (o que para mim era evidente, estava certo e só pecava por ser decisão tardia), respondiam-me: "Manuela, não diga isso! Está nas funções pelo seu mérito" O meu mérito não era coisa que eu fosse discutir!... Discutia, sim, o mérito do sistema de quotas, que em nada contende com o valor ou capacidade pessoal, antes pelo contrário o pressupõe, mesmo quando, porventura, errando. Mas erros de "casting" não faltam também, e são muito mais comuns, no caso de políticos promovidos pelas máquinas partidárias, à maneira tradicional. PELA PARIDADE, PELAS QUOTAS Com este tema recorrente, vou terminar a minha intervenção longa.... Quando há avaliações objectivas dos candidatos, o sistema de quotas é gritantemente inaceitável! No acesso às universidades, por exemplo, são escolhidos os melhores alunos, os que têm melhores notas. Por sinal, são mulheres, mas aí, se não fossem, não seria justo nem legítimo intervir . A falta de educação, de formação seria, de resto, o único fundamento de uma desigual participação feminina na vida pública. Onde a situação é de igualdade ou supremacia, a ausência das mulheres num domínio como o da intervenção cívica, da política, impõe uma presunção de discriminação. A Lei da Paridade torna essa presunção inilidível e, a meu ver, é com base nela que determina uma quota mínima em função do género. A igualdade de mérito presume-se e a realidade tem vindo a comprovar a presunção onde quer que o sistema seja praticado de boa fé e com honestidade: no norte da Europa, onde o sistema nasceu, ou no sul, onde chegou com atraso. E Portugal não é excepção. As quotas vieram garantir novos patamares de equilíbrio de género, com aparente valorização do todo! Mas é da maior importância que a aplicação da Lei da Paridade seja objecto de avaliação, como a própria Lei impõe, ao fim de cinco anos (artº 8º) . Estranho que 7 anos depois da entrada em vigor da lei, a obrigação de cumprir o preceituado no artº 8º ande esquecida. Onde estão os estudos sobre a progressão das mulheres, a nível do parlamento e das autarquias locais? Sobre a sua actuação concreta? Estranho, ou talvez não... porque as questões de género continuam descentradas da agenda política em Portugal. Aqui fica uma chamada de atenção ao Governo (à Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, que terá condições ideais para o levar a cabo um estudo conclusivo) e ao Parlamento, seja para eventualmente poder o legislador pensar alterações à lei nº 3/2006, com vista a "mais paridade", ou a dar mais visibilidade ao percurso que as mulheres vêm fazendo no caminho aberto pela Lei, contra regras não escritas e práticas discriminatórias vigentes nos aparelhos partidários. E quanto à frase com que comecei para me definir como feminista, devo dizer que não a li num livro, nem a ouvi num congresso - vi-a, há muitos anos, inscrita numa placa de um automóvel que atravessava o centro de Boston, num dia de sol: FEMINISM IS THE RADICAL NOTION THAT WOMEN ARE PEOPLE
MAUS COSTUMES (a propósito da praxe académica) A minha opinião sobre a "praxe" é, devo dizê-lo, influenciada pela experiência vivida na Universidade de Coimbra (1960/65), há mais de meio século. Como as regras vinham dos tempos em que a Academia era integralmente masculina, quando as primeiras mulheres ingressaram nas Faculdades houve que as integrar - embora tão marginalmente quanto possível. Antes do mais, trataram da feminização do traje. O equivalente encontrado à capa e batina foi a capa e um sóbrio mas feminino fato de saia e casaco. A única sanção a que as estudantes estavam sujeitas, na prática, tinha a ver com o uso incorreto desse traje - por exemplo, ousar uma blusa às riscas, ou uns sapatos brancos, coisa que não lembrava a ninguém. Uma outra significativa adaptação se impunha no dia da formatura: à saída do último exame, o novo doutor era cercado pelos amigos que, no meio de festiva algazarra, lhe rasgavam a batina. À nova doutora, se estivesse trajada a preceito, apenas cortavam, gentilmente, a gravata preta. Galantes formas de sexismo! A menos amável de que me recordo aconteceu no ano em que pus fitas. A pasta com as fitas só podia usar-se com capa e batina (ou fato). Contudo, sempre se abrira uma exceção para o baile de gala da "Queima", permitindo às (quase) doutoras comparecerem de vestido comprido e a pasta na mão. Nesse ano, porém, o todo poderoso "Conselho de veteranos" decidiu acabar com o privilégio e as estudantes tiveram de ir à gala sem as insígnias... Todas, menos uma: eu. Fui ao baile com a capa e o fato de todos os dias, e a pasta com as fitas vermelhas. A trupe de veteranos, que vigiava a porta principal (qual "polícia de costumes" do Irão ou da Arábia Saudita), quis, em vão barrar-me a entrada, assim evidenciando que estava em curso uma golpada misógina, mais do que a pura defesa da ortodoxia do traje. Não esperavam que uma só colega teimasse em aparecer com o fato praxisticamente certo, embora socialmente incorreto. Claro que eu destoava no salão de festas, entre as sedas e as rendas das minhas amigas, mas sentia-me bem na veste da feminista que resistira ao "diktat" dos "veteranos". Globalmente, aliás, nem tudo era mau na vivência das tradições coimbrãs: gostava do fado, das serenatas, das "latadas", dos cortejos da "Queima", do sobe e desce das ruelas mediavais da cidade. E divertia-me com os rituais que via como essencialmente lúdicos, com a irreverência, a graça e o entusiasmo de viver os anos de juventude, em alegre companhia, na senda dos feitos que Trindade Coelho registou na melhor crónica que jamais se escreveu sobre Coimbra ( "In illo tempore"). Gostava da minha capa (tão confortável, salvo num salão de dança) como símbolo de pertença a um universo de sã camaradagem e amizade. E, para tanto, não precisei de percorrer a via iniciática de praxes, contra as quais me revoltava - mesmo contra aquelas que teriam um sentido pedagógico - caso da proibição dos caloiros andaram sozinhos, à noite, pela cidade, que, supostamente, visava protegê-los da boémia e obrigá-los a estudar. A partir do sol posto, começava a caça aos caloiros... As "trupes" escondiam-se nas sombras das vielas e, de repente, cercavam as vítimas, num círculo de vultos negros do qual não escapavam sem tesouradas fatais nas cabeleiras (a única solução era irem, depois, ao barbeiro rapar o cabelo, uniformemente...) . Escapavam, porém, se tivessem "proteção" de uma senhora, com quem andassem de braço dado. A senhora podia, curiosamente, ser uma caloira! Eu própria "salvei" muitos colegas, dando-lhes, momentaneamente, o braço, mal pressentia a movimentação das sinistras trupes ... 2 - Voltei a Coimbra, para dar aulas na Faculdade de Direito, na década seguinte, em 1974, nas vésperas do 25 de abril, e lá fiquei durante dois anos de boa memória. Agitação havia bastante, no interior e exterior da universidade, mas não relacionada com a praxe, que fora totalmente abolida pelos ventos da Revolução, como vestígio do fascismo. Sei que o epíteto de "fascista" foi, então, utilizado a torto e a direito, mas neste domínio, por sinal, com alguma propriedade, porque há, nas hierarquias em que a praxe se organiza como corporação, nos ritos de obediência que impõe, cegamente, afinidades com o "ancien régime". O pós revolução era a altura ideal para repensar a praxe antiga, para separar o que ela continha de trigo e de joio. Infelizmente, veio a ser reinstalada com facetas incomparavelmente mais malignas, um pouco por todo o lado, em universidades sem passado, sem tradições próprias, onde constituem meros jogos de imitação - e jogos perigosos, reinventados com uma brutalidade sádica que fazem mortos e feridos. Se a prática continuada os converte em costumes, são certamente, maus costumes, quando não crimes. A proibição das praxes violentas é, a meu ver, um imperativo numa sociedade democrática. Muito bem anda o Ministro do Ensino Superior ao tomar posição neste sentido. 3 - A dificuldade maior, no que respeita à proibição, é traçar a fronteira entre ações livremente consentidas e lícitas, de caráter lúdico e o que é "bullying", comportamento degradante, indigno, criminoso. Por isso, para além da corajosa e lúcida intervenção do Ministro, uma outra boa notícia é o anúncio de uma investigação científica sobre a realidade atual do universo das praxes , no seio de uma universidade, em Lisboa. Espero que uma tal análise interdisciplinar, ampla e rigorosa, possa lançar nova luz sobre as sombras que envolvem a evolução do fenómeno. Maria Manuela Aguiar