setembro 19, 2017

LEMBRANDO O COMENDADOR ANTÓNIO BRAZ

1 - É um privilégio poder dar um breve testemunho nesta sessão de homenagem ao Comendador António Braz, em Tondela, sua terra natal, no centenário do seu nascimento. A exposição que acabámos de visitar dá-nos bem a ideia do Homem, do emigrante corajoso, que atravessou os mares e andou pelos quatro cantos da terra, do cosmopolita, movido pela alegria de conviver, por uma insaciável curiosidade sobre outras realidades culturais e outras formas de fazer desenvolvimento económico, sempre pronto a partilhar ensinamentos e experiências. Do empreendedor, que aliava inteligência e intuição a energia, capacidade de inovação a um bom gosto inato, com que sabia acrescentar ao rasgo profissional uma componente estética. Do “empresário de sucesso”, na expressão que entrou para ficar no discurso político, ao menos desde que Portugal aderiu à CEE, com a vontade de difundir a imagem moderna do seu povo, e, em especial, da emigração, ao que se anunciava (prematuramente...) no termo dos seus dias. Nenhum dos nossos compatriotas merece mais esse título prestigiante do que o Comendador Braz, mas, como os mais notáveis dos nossos expatriados, não se limitou a ser empresário inovador, foi um mecenas, um patriota, um líder das comunidades portuguesas do sul da África – a qualidade em que o conheci, em que muito o admirava e estimava. 2 - Permitam-me, pois, que o destaque, em particular, como ativo cidadão, colocando o enfoque nas comunidades a que pertenceu (comunidades vistas como instrumento de interculturalismo e engrandecimento nacional, com o seu insubstituível papel em sucessivos ciclos de migrações maciças, em praticamente todos os continentes), assim situando a obra do Comendador Braz num vasto movimento associativo, que ele encarnou, e encarna, exemplarmente. É, sem dúvida, justo, lembrá-lo pelo êxito empresarial e pelo mecenato com que contemplou a terra de origem, não esquecendo, porém, o seu envolvimento comunitário no estrangeiro. Foi, sobretudo, nesta veste que se converteu, como alguns outros ilustres compatriotas, a nível planetário, em agente ou protagonista da História da emigração e das Comunidades Portuguesas, que temos de saber, no futuro, estudar e divulgar como parte da nossa História . 3 - Não as "comunidades" de que comummente se fala como mero sinónimo de "emigração", realidade estatística, número global (aliás, quase sempre, pouco rigoroso, pecando por defeito), e sim as comunidades estruturadas numa multifacetada rede de instituições de cultura, de convívio, de beneficência, que constituíram a mais importante retribuição de um fenómeno migratório multissecular. Mais importante, afinal, do que aquela que se contabilizou, conjunturalmente, nas remessas de montantes astronómicos, de que os governos se mostravam ávidos para minorar os desequilíbrios das contas públicas. Até tempos recentes, prevaleceu esta perspetiva material, e, com ela, se centrava a atenção no quadro quantitativo da expatriação, invariavelmente avaliada em cifras e mais cifras, embora também servissem para dar a expressão dramática da "ausência". De fora, no esquecimento, ficavam as formas de vivência coletiva no estrangeiro, a dinâmica associativa, em que se fundou e se continua um espaço de "presença" portuguesa intemporal e universalista. 4 - As comunidades/realidade orgânica, foram crescendo, sobretudo a partir do primeiro quartel do século XIX, fruto da visão estratégica dos portugueses, em cada sociedade de acolhimento, para dar resposta direta, sistemática, eficiente, às necessidades das pessoas - apoio aos recém-chegados, entreajuda, na doença ou no desemprego, e, também, convívio, pelo qual se conservam costumes e modos de estar. À medida que iam conseguindo uma boa integração na nova sociedade mais procuravam a afirmação da identidade nacional e a sua preservação no encadeamento das gerações, pondo o acento no ensino da língua e da história aos jovens. Nessa aprendizagem de como ser de duas pátrias, os emigrantes têm-se mostrado exímios, talvez porque o nosso nacionalismo é tradicionalmente de abertura aos outros, aos vizinhos e companheiros de trabalho, não sendo, por isso, conflitual, nem agressivo, antes se constituindo em fator de cooperação e de inclusão (sem a fatídica assimilação, que tantos académicos e políticos anteviam). É na malha densa de associações culturais, sociais, recreativas, paróquias católicas, escolas, meios de comunicação social que se vai suprindo a falta de políticas públicas do Estado, por um lado, e, por outro, sedimentando a Diáspora. 5 -Os estudiosos da emigração portuguesa apontam o tradicional descaso dos governos com a sorte dos expatriados, desde o momento em que abandonam o território, assim como o caráter repressivo ou limitativo das políticas, com que tentam, regra geral, condicionar fluxos estimados como excessivos, mesmo no período de colonização. É o caso do Brasil, onde os ingressos foram em crescendo, antes como após a independência, com idêntico caráter de espontaneidade. Por isso, se torna, como admitem os historiadores destas matérias, difícil traçar a linha de fronteira entre as partidas enquadradas no projeto estatal de colonização e as que foram assumindo, mais e mais, os contornos de fenómeno puramente migratório. A meu ver, uma tal ambivalência, terá tido, nas diversas possessões da Coroa, de Oriente a Ocidente, os seus reflexos no modo de trato e convívio com as populações locais e com os outros imigrantes, num relacionamento tendencialmente mais próximo, igualitário e cordial, de cujo rasto antigo e difuso emana o universo atual da lusofilia. "Solúvel e insolúvel este povo, na memória dos outros e na sua mesma", segundo Jorge de Sena... 6 - O desregramento dos fluxos de saída acentuou-se, em cada novo ciclo, ao longo de setecentos e oitocentos, e era visto como um risco para a sobrevivência do país no seu berço territorial. Contudo, como hoje sabemos, o declínio demográfico não aconteceu e o excesso terá contribuído, decisivamente, para o definitivo enraizamento da língua e de uma forte componente cultural no Brasil independente (que, sobretudo após a abolição da escravatura, apelava à chegada em massa de migrações europeias e asiáticas), bem como em outras partes do império, e fora delas, na Diáspora. Num balanço realizado à distância de séculos, somos tentados a afirmar que o futuro deu razão a milhões de homens e mulheres, que daqui se foram, movidos por um sonho proibido. Afinal mais efémero foi o império, cujas riquezas, em cada época, se ganharam e se perderam, do que as comunidades que, ainda hoje, estão vivas nas terras onde a saga da Expansão levou o povo, de Leste a Oeste, a nível planetário. Os emigrantes são ou não os autênticos descendentes dos navegadores e dos colonos pioneiros, dos voluntários da aventura quinhentista, os herdeiros da sua audácia e da sua ambição de "correr mundo"? Muitos acham que sim e eu estou com eles. 7 - Estas comunidades sobreviveram às primeiras levas de emigrantes, existem com caraterísticas espantosamente semelhantes, embora sem quaisquer interinfluências, quer as mais antigas, geradas nos movimentos migratórios, desde oitocentos, (quando não anteriores - pensemos, por exemplo, em Malaca), quer as contemporâneas, da Europa às Américas, da África à Oceânia, e podem ser consideradas a nossa última "descoberta". De facto, até meados do século XX, poucos investigadores se deram conta da existência das "colónias" de emigrantes, (designação então consagrada), entre eles se distinguindo os professores Afonso Costa e Emídio da Silva. Contudo, mesmo estes dois notáveis estudiosos não se terão apercebido da sua capacidade de sobrevivência, ou seja da sua conversão em autêntica Diáspora. Diáspora sem exílio,todavia nem por isso com menor apego aos valores matriciais, mantidos como herança preciosa por gerações sucessivas.. A descoberta das comunidades coincide com o fim do império, e não por acaso! Ninguém a enunciou melhor do que o Primeiro-ministro Sá Carneiro, em 1980: "Portugal foi um país de colónias, hoje é um país de comunidades"." Uma Nação populacional". Ou na definição em que acentua, essencialmente, valores próprios da sociedade civil: "Portugal é mais uma Cultura do que uma organização rígida". É nesse ano de 1980 que, consequentemente, surge no organograma do Governo, pela primeira vez, uma Secretaria de Estado da Emigração e das "Comunidades Portuguesas", e se procura desenvolver, articulando-as, mas dotando-as de meios específicos, políticas sociais para a emigração e políticas de dominante cultural para a Diáspora, representada num "Conselho Mundial das Comunidades Portuguesas". Todavia, já anos antes, por iniciativa do General Ramalho Eanes, o primeiro Presidente eleito depois de restaurada a democracia, o substantivo "Comunidades" entrara no léxico político, na denominação oficial do 10 de junho, "Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesa". É o momento em que se anuncia o Portugal moderno, na sua perfeita dimensão humana e cultural - uma cultura viva e em expansão universal. Orador nas comemorações solenes dessa data, Vitorino Magalhães Godinho diz com meridiana clareza : "Portugal é mais do que o império que se fez e desfez, está presente com os Portugueses, onde quer que vivam" (cito de memória). 8 - Os governantes, os cientistas, os cidadãos em geral, não podem, hoje, ignorar espaço português das comunidades do estrangeiro, a dimensão universalista que confere à Nação Portuguesa, por obra e graça dos cidadãos, não pelo braço armado do Estado. E, porque assim foi e assim é, há que atribuir-lhes todo o mérito na fundação e preservação das comunidades, verdadeira extensão extra-territorial do País. Eles partiram, mas não se perderam na dispersão geográfica, como augurava a sabedoria popular e académica. Não abandonaram Portugal, levaram-no consigo, como tão finamente intuiu Jaime Cortesão. Reuniram-se e recriaram a terra mãe em instituições semelhantes àquelas que nela conheciam. São Diáspora! Não basta, pois, admitir a existência das comunidades, colocando-as no cerne do discurso político sobre a emigração, meramente como seu sinónimo. É um erro em que cai, ainda, uma maioria de portugueses, políticos, jornalistas, funcionários, que delas falam com desenvoltura, mas nunca as visitaram, nem participaram nas suas atividades concretas, nem leram os seus jornais. Podemos, aliás, ir mais longe e dizer que as comunidades mal se conhecem umas às outras, e mal colaboram entre si, fora das fronteiras de um país, ou até só de uma região, de uma cidade... Eu própria, quando por dever de ofício, há quase 40 anos, comecei o meu roteiro de contactos - que não mais terminou - por este Portugal sem território, tive de me entregar a uma fascinante aprendizagem, nas viagens circulares, em que ia e vinha, cruzando oceanos e continentes, sem nunca me sentir no estrangeiro: saíra do país, como se nunca tivesses saído! De princípio, tudo me parecia irreal, até me familiarizar e me apaixonar por essa realidade, que é, verdadeiramente, nossa. 9 - O "Portugal maior", de que falava Vitorino Magalhães Godinho, não é, assim, um tropo de retórica, não é um mito pós colonial e não é um gueto de inadaptados, de mal com a terra que deixaram e com aquela onde se encontram. Este Portugal de uma nova "Expansão" foi sendo impulsionado por Portugueses da estirpe do Comendador António Bras, ao longo dos tempos. Tem, lá longe, a grandeza, o espírito, o fraternalismo de que eles são capazes. É preciso dize-lo, contrariando ideias feitas sobre a imigração - ideias que se insinuam até em organizações ou cimeiras internacionais, como as conferências dos ministros responsáveis pelas migrações no Conselho da Europa, onde sempre procurei contraria-las, invocando o paradigma português para defender o movimento associativo como um poderoso fator de apoio à integração individual, que se revela, em cada fase do ciclo migratório, o espelho do percurso coletivo - muito diverso, como é óbvio, em sociedades que oferecem oportunidades diferentes de enriquecimento e ascensão social. Temos, atualmente, a par de associações que reproduzem a atmosfera de uma pequena aldeia portuguesa tradicional, as mais grandiosas instituições beneficentes, culturais ou desportivas, sobretudo no norte e no sul da América e na África. Contudo, o impulso que as determina é o mesmo - é a vontade de serem, no seu círculo geográfico, à medida das suas possibilidades, presença cultural portuguesa, elo de ligação entre duas sociedades em que os emigrantes/imigrantes se revêem e de que se consideram plenamente parte. 10 - O Comendador António Braz é um rosto inesquecível deste Portugal redimensionado pelas comunidades extra territoriais. Dando o seu exemplo, torna-se mais fácil falar da dimensão que conferem ao País, como ponte, feita de uma infinidade de pontes, a reunificar um povo disperso, pontes lançadas entre um passado e um futuro português.Torna-se mais fácil evidenciar a persistência na nossa gente de todas as virtudes que reconhecemos aos Avós quinhentistas - a sua natural capacidade de aceitar e ser aceite pelos outros, de os envolver num trepidante intercâmbio de produtos, de instrumentos, técnicas e saberes, oriundos de terras distantes. Enquanto empresário do século XX, foi isso mesmo o que Ele conseguiu, levando ao sul da África, designadamente, tradições do quotidiano da América do Norte... Enquanto cidadão, soube ser, como os nossos maiores, portador de uma mensagem de modernidade e humanismo, granjear amizades e alta reputação, que repartiu com a sua comunidade e o País. Lançou e apoiou associações, iniciativas culturais, centros de acolhimentos e integração dos refugiados de Angola e Moçambique e fundou um jornal de superlativa qualidade, "O Século de Joanesburgo" (um dos melhores de todo o universo da lusofonia). Era, em fins do século XX, o patriarca das comunidades portuguesas da África do Sul! Quem mais teria conseguido dar às comemorações da primeira passagem pelo Cabo da Boa Esperança o momento mais simbólico, a dádiva mais perene, com a oferta de um monumento a Bartolomeu Dias, colocado em Pretória, no mais nobre lugar da capital da República, face ao "Union Building"? Uma celebração da História, por alguém que a sabia interpretar e fazer presente. Uma "prova de vida" do Povo que fomos, no início da Expansão, e ainda somos.

setembro 08, 2017

ERA UMA VEZ UMA GATINHA LINDA...

1 - A SETA
Um dia, no verão de 2001, encontrei no pequeno jardim das traseiras da casa da Rua 7, em Espinho uma ninhada de gatinhos lindíssimos, trazidos pela progenitora, também ela muito bonita, preta e branca, sociável, grande. Já minha conhecida, pois, como vários outros gatos vadios, passeava de telhado em telhado, (telhados de anexos térreos, que abundam nesta parte norte da cidade) e descia, facilmente, para o muro baixo, robusto e largo, que separava a vivenda dos meus Pais, o nº 307, da da família do famoso fotógrafo espinhense, Sr Evaristo, o nº 115 (ele morou décadas no prédio onde tinha o estúdio, na Rua 8, e, já reformado, mudara-se-se para aqui). Gente boa, amiga dos animais, que eram igualmente bem recebidos dos dois lados do muro. Em cima dele faziam fila, quando pressentiam que eu estava por perto, disposta a alimenta-los. A dita ninhada foi alojar-se na arrecadação dos fundos do quintal, que, de dia, estava sempre de porta aberta. Contudo, ficaram muito tempo. Quando contei à minha Mãe que tínhamos visitantes ela quis logo ir vê-los, e não só vê-los, mas também agarra-los, todos, de uma só vez, com as mãos. Coisa que eu não teria tentado, porque, é claro, eles assustaram-se e reagiram vigorosamente, apesar da pouca idade, arranhando-a... E gata-mãe tratou logo de os levar consigo para sítio mais tranquilo. Todos menos uma pequenina, cinzenta e branca, magríssima, que decidiu, definitivamente, abandonar. A boa surpresa é que já comia de tudo, com apetite. Ninguém procurava pegar-lhe, porque era esquiva, brava, bufava, escondia-se. Só deixava aproximar-se o nosso gato amarelo, o Mandarim, que manso e amável. Quem lhe levava a paparoca era eu - ou a Olívia, nas minhas ausências de Espinho. A bichana parecia-me muito frágil, pouco saudável. Comecei a desconfiar que a razão do abandono materno podia ser essa. Embora fugisse de mim, eu ficava, de longe a observa-la e falava-lhe, continuamente, em longos monólogos. De dia para dia, fui-me aproximando, mais e mais, até ficar com a mão sobre a sua cabeça, mas sem lhe tocar. Por fim, numa inesquecível manhã, ela mesma se soergueu até à palma da minha mão e eu pude fazer-lhe festas. Momento mágico! Sabia que desse momento em diante éramos amigas, me faria inteira confiança. Peguei-a aos colo e trouxe-a para dentro da casa. A gatinha triste e solitária, de repente, tornou-se alegre e prazenteira, aprendeu a brincar, com bolas de borracha e a correr loucamente, por debaixo de cadeiras, mesas e qualquer móvel que estivesse um palmo acima do chão. Impressionadas com os seus "sprints" e a sua estonteante velocidade, a Mãe e eu decidimos chamar-lhe seta ou flecha. Seta soava melhor, SETA ficou.
2 -UMA GATA TIPO GENTE E OS OUTROS GATOS O ciclo de vida dos felinos é como o nosso, só mais curto. Mas nem todos são como a Seta, que parecia gente - na inteligência, nas emoções, até na sua evolução da infância à idade adulta e à velhice. Os outros de pequenos e brincalhões, tornaram-se simplesmente mais gordos e pachorrentos, mais dados a longas sestas. Ela não. De uma infância que se pode resumir em três "efes" (Formosa, feliz e frágil), tornou-se uma adolescente caprichosa, temperamental, pronta a zangar-se se era contrariada.... Incrível. Os olhos revelavam exatamente o sentimento dominante em cada momento. Eram lindos, verdes, olhos verdadeiramente humanos, por onde perpassava toda a gama de estados de alma, que vai da indignação à complacência ou satisfação. Cada vez mais senhora de si. Um porte imperial. Solitária, afastada de todos os outros gatos da casa, numa relação exclusiva com as pessoas - e poucas. Uma "loner"! Contrariada, fugia e desaparecia até que a fúria passasse. Havia que falar-lhe em tom cordato, sobretudo para a remover do inconveniente lugar onde estivesse. "Parece a reencarnação de uma dama de duvidoso passado, que anda a penar pecados velhos", dizia eu quando a víamos mal-disposta com tudo e todos. Era tão independente e imprevisível connosco, quanto distante com os companheiros. Ignorava-os, nunca tomou a iniciativa de atacar, mas era poderosa a defender-se...
Depois que os filhos cresceram, só condescendia na aproximação do Mandarim, que, desde a primeira hora, a recebeu bem, educando-a "paternalmente", nos seus tempos de menina - gata e, logo que a viu chegada à idade adulta - cedo demais, hélas! - procriou com ela duas formosas ninhadas. Tão cedo que, da primeira vez, ela nem sequer sabia como amamentar o único gatinho que sobreviveu - um preto, todo preto. Mistérios, pois o Mandarim era um de um lindo amarelo e ela de uma cor muito branca, sobre a qual se estendiam, num perfeito design, manchas cinza, irregulares. Escondeu-se para o parto, no fundo do sotão, no canto mais inacessível e inesperado. Só tarde demais nos apercebemos, depois de uma busca em que foi a Olívia que encontrou o tesouro... Estava já a Seta deitada sobre um bébé desastradamente morto (igual a ela, esse!), e sem saber como cuidar do outro. Tínhamos de ser nós (eu, sempre que estava em Espinho) a colocá - lo a jeito para a mamada, colaboração que a Seta aceitava de bom grado.
Não me surpreende nada que esse seja, ainda hoje, já velhinho, com o seu focinho negro matizado de pelos branco, a criatura mais chegada a mim... Chamo-lhe o meu gato "tipo cão". Segue-me para onde quer que vá. Responde ao chamamento que os demais ignoram, olimpicamente. Seu nome, Guilherme (como o Guilherme Gayoso): Willy- Willy, no dia a dia.
No ano seguinte, nos fins de primavera de 2003, a família aumentou: um menino gordo, cinza e branco, muito mais branco do que ela, o Deco (homenagem ao "Mágico" do futebol), e um tigrado, ágil e magro, com um desenho perfeito de estrias escuras, o Jão-Jão. Nasceram a 31 de maio, dia de anos do João Miguel, que, em criança recebeu dos irmãos esse diminutivo. Duo encantador!
Distintos de temperamento e atitude perante a vida, o Jão-Jão, dócil e manso, como nenhum dos outros, mas um vadio, sempre pronto a desaparecer nos telhados, de onde só voltava, cansado das guerras, à noite, depois de a Olívia berrar por ele, durante uma hora. O Deco era caseiro, sociável, sempre pronto a dialogar através de sons imaginativos e estranhos, que pareciam de outros animais (um poliglota?). Uma equipa da RTP, que veio, por duas vezes, fazer uns apontamentos filmados no jardim e o ouviu, sem o ver, da segunda vez, insistia que eu tinha ali, para além dos gatos, um papagaio. Eu dizia que não e eles respondiam-me que o som se ouvia na gravação. De facto, ouvia-se, mas era o Deco...
Entretanto, uma gata branca, selvagem, refugiara-se no quintal, com a cumplicidade dos animais da casa e recusava-se a sair. E nunca mais saiu. E outra, delicada, elegante, muito pequenina (nunca haveria de crescer, é quase anã) também veio para ficar. Tal como a Seta, de pelo branco, com manchas cinza sobre o dorso, e os olhos rasgados, com traços quase orientais. Enigmática, insinuante. A Tita, como a famosa Tita da Avó Olívia, uma majestosa gata francesa. Esta de majestoso não tem nada. Dá uns passinhos curtos e, se for surpreendida a fugir, deixa uma pata no ar, hesitando no passo seguinte. É muito esperta, embora desastrada. parte coisas na passagem e, quando escapa para os telhados, há que ir tirá-la de lá, porque, aparentemente, tem medo de descer. Pede festinhas, procura colo, e, se a deixarem, mama, disfarçadamente, nos tecidos das camisolas, calças ou saias (a Maria do Carmo deixava-a sempre, à noite, lamber o seu roupão azul - gostava tanto dela que a queria levar para Olhão). No dia em que aqui se refugiou, debalde a Olívia a tentou expulsar, colocando-a, de 5 em 5 minutos, em cima do muro, de onde proviera. Ela reaparecia, de imediato, miando de inspirar dó. Ganhou um teto. Meses depois, encheu a casa com mais mais um gato residente, o super-inteligente e beligerante Dragão Derlei (honra o nome, mesmo sendo mais conhecido apenas por Dragão).
3 - O FIM DA ERA DOS NAMORADOS... A conselho do Paulo foram todos "neutralizados", menos a selvagem em que nunca mão humana assentou. Foi melhor assim, para evitar dar a pílula às meninas e numa tentativa de tornar os meninos mais sedentários. Resultou com todos menos com o Jão Jão, gato manso, que apanhava sovas terríveis dos gangsters dos telhados, que lhe apareciam na disputa do território. Não creio que a Seta tenha apreciado o povoamento excessivo do espaço que partilhava com o patriarca amarelo, antes pelo contrário. Nem com os filhos era compatível, depois que eles cresciam. Só mesmo com o Mandarim, amável com todos e, em particular, com a selvagem. A Branquinha era, como viemos a descobrir, uma albina, de olhos azuis, uma perfeição! Acabaria por morrer, ao fim de uns anos, de cancro da pele. Domesticada, protegida do sol, dentro de casa, teria sobrevivido, mas para tanto nunca confiou na raça humana e era impossível te-la presa numa loja, o dia inteiro. Como não pode ser castrada, e nem sempre tomava a pílula, teve descendência de gatos de fora, que atravessavam o muro para namorar a beldade. Nenhum sobreviveu, porque ela não sabia cuidar deles- er a louca, mesmo! A Seta, embora não apreciasse muito a maternidade, melhorou muito da primeira para a segunda vez. No extremo oposto, a Tita era uma excelente progenitora, por pura vocação. Que bem tratava o seu filho lindo, todo preto, salvo por umas manchas brancas nas patinhas dianteiras, que pareciam luvas, e por um um triângulo branco no peito. Dir-se-ia que anda sempre de "smoking". Não sei se isso tem a ver com o processo educativo, a verdade é que continuam a manter uma relação excelente de proximidade. Sempre juntos, de preferência, noite e dia. Depois da morte do Mandarim, o Dragão disputava o cetro do comando com a Seta e o Willy. Uma inquietação! Havia que mantê-los sempre separados, de contrário o Dragão atacava, ainda que acabasse sempre a perder. O Willy tem o dobro da seu peso e a Seta era, quando provocada, uma guerreira poderosa. Num último confronto, antes do seu definitivo declínio, o ano passado, deixou-o quase cego de um olho - tão expressivamente verde!. A pálpebra fechou, sobre um globo ocular raiado de sangue. (Um susto...). A paz entre os dois só foi estabelecida quando ela já cambaleava pelos corredores. 4 - A VIDA POR UM FIO O estranho abandono da gatinha por uma mãe que tão bem cuidava do resto da ninhada, tinha que ter alguma explicação. Depressa havíamos de descobrir o porquê, quando a vimos acabrunhada, a fungar, com dificuldade respiratória e cheia de tosse. Ficou assim durante uns dia em que fui a Lisboa. A minha mãe mandou a Olívia por-lhe a cama na lavandaria, que é o compartimento mais frio de todos. Sabe-se lá porquê, toma decisões muito bizarras. De tempos a tempos, clama que os gatos são para estar à solta, fora de casa, dando os exemplos da sua infância na Villa Maria. Não era um grande exemplo, porque toda uma geração de gatos persas desapareceu assim - o último foi roubado durante as festas da Senhora do Rosário, os outros tambem terão tido o mesmo destino. Não sendo de raça, não era este o risco que corriam os nossos, mas a lista de outros perigos não tem fim. Apercebi-me da gravidade do estado da Seta quando a levei para a minha cama e ela não saltou em cima da protuberância que os meu pés formavam sobre a coberta branca, quando eu os movia, em ar de desafio... Falei a uns amigos, a Andreia e o Fernando, a perguntar o nome de um veterinário, Deram.me o número do Paulo, que atendeu a chamada prontamente, Examinou-a e não deu grandes esperanças. Se fosse a pneumonia típica dos gatos vadios não tinha salvação. Se fosse coisa menor, talvez... Foi um mês de batalha. Vinha todos os dias dar-lhe antibióticos injetáveis e soro. Salvou-lhe a vida e, em seguida, os olhos, que estavam encovados, e cobertos por uma membrana. O primeiro filhote teve problemas semelhantes, constipação e um olho sumido por detrás da membrana. A certa altura, houve que o operar. Mais um sucesso. Idem, com as castrações. E com a gravíssima pneumonia do Deco, que lhe afetou um dos pulmões. Tinha, então, pouco mais de um ano e, ainda hoje, quando piora, ouve-se ao longe a sua ruidosa respiração. Todavia, é um bem disposto, sempre de cauda no ar, e pronto para o diálogo , com os sons heterodoxos, que inventa criativamente, para chamar a atenção. Como era dado a travessuras e desastres, ao contrário do seu gémeo, sempre mais bem comportado eu coloquei-lhes alcunhas condizentes: Jão-Jão "o gato todo bom", e Deco- Deco o "gato todo mau". Exagerando... Um dia a Docas observou: "Não é bem assim, o Jão-Jão também faz muita asneira. Sim, e o Deco, por seu lado, é simpático, cordial e engraçado. Mas o JJ tinha um outro porte e era de uma suavidade sem igual. Escondia-se para saltar sobre as pernas das pessoas, enlaçando-as com as patas dianteiras. E, com a patinha direita dava sapatadas inesperadas na minha cara, contudo, sempre de unhas encolhidas, para não arranhar. Um querido! Não era assim com todo o mundo, só com a dona. Já o Deco andava atrás de qualquer um. Quando tive de reconstruir a casa do lado, a do Sr Evaristo que, por pressão da Mãe, fui praticamente obrigada a comprar logo que se soube estar à venda, (porque ela não queria vizinhos desconhecidos), o meu medo era que os oito gatos fossem molestados. Não houve incidentes nem acidentes, porque todos os trabalhadores estavam avisados que se tratava de animais de altíssima estimação. Aliás, nenhum deles se aproximava das obras, enquanto decorriam, salvo o Deco, que passava lá o dia, em confraternização. Um verdadeiro "gato operário". Sobre a saúde de todos velava o Paulo - gripes, vacinas, faltas de apetite, parasitas, lesões (o Willy rasgou a cauda num espeto qualquer num telhado, a Tita, durante uma fuga, quase sofreu uma perfuração de intestinos, numa outra saliência de metal, depois o Willy apareceu a mancar, com uma pata inchada...).
Entre eles, o Paulo não era, como é óbvio, muito popular, mas passou a pertencer, definitivamente, ao círculo da família Aguiar. 5- ESPLENDOR NA RELVA Nada a ver com o filme, que tinha esse título e que vi, há uma eternidade. A Seta era mesmo esplendorosa e adorava o seu jardim, de onde nunca quis fugir, e onde tinha a sua árvore favorita, a primeira das japoneiras (quatro) que ocupam todo um quintal demasiado exíguo para tantos ramos e folhagem.
Pedia companhia para brincadeiras, para os exercícios de salto em altura, junto ao tronco dessa japoneira: um pauzinho ou uma fita colorida, colocada nos ramos se cima, que ela procurava alcançar, em escalada vertiginosa, ou pulando. Ai de nós, se não retirássemos a mão a tempo, largando pau ou fita! Nunca se cansava. Pedia mais e mais, ainda que poucas vezes atingisse o alvo.. Dentro de casa, bolas de borracha ou de papel serviam o mesmo propósito. Era a viva imagem da felicidade.! Depois, mudou (com a maternidade, a traumática cirurgia?), mostrava o mau feitio, a má disposição, o desagrado connosco, na intensidade do olhar - como nunca vi em gato algum. Mas se não fosse contrariada ( e até a minha mãe fazia muita cerimónia com ela), socializava amavelmente, sentava-se ao colo, ou em cima das nossas camas, onde dormia as sestas. Quando nos apanhava a jeito, nos sofás, vinha sorrateira por detrás, junto á parede, e mordia-nos os cabelos. Nova metamorfose na velhice: mais de bem com a vida, mais meiga, até também com as visitas, que selecionava (a Xana, a Docas, a Zé). Teimosa e obstinada era muitíssimo. Ia para onde lhe apetecesse, e até portas abria, saltando com as patas dianteiras fechadas, em arco, sobre os puxadores - só mesmo os redondos lhe escapavam. 6- O PRAZER DA SUA COMPANHIA
Foram 16 anos cheios de boas recordações, de boa companhia. Tinha personalidade e beleza! Era ainda pequena, quando a mâe viu num jornal uma notícia sobre "a gata mais bonita do mundo". Recortou e mostrou à Olívia, perguntando: "Sabes quem é?" Resposta pronta: "É a Seta!" Não era, mas parecia. Não há fotos da sua infância, talvez porque foi breve e logo marcada pela doença, mas, depois,desabrochou, fez-se uma beldade, e conservou o aspeto quase até ao seu desaparecimento. O princípio do fim, os últimos onze meses, foi desencadeado por súbitos ataques e convulsões. O Paulo veio logo e levou-a à clínica veterinária onde dá colaboração. Fez análises - tudo bem. Com a idade que já tinha, optei por não a submeter a um TAC, com a inevitável anastesia. Ou era epilepsia, doença bem mais rara nos gatos do que nos cães, ou um tumor cerebral. Nunca saberemos, mas eu inclino-me para o tumor fatal. Tomou "luminal" (metade menos um terço de pastilha, de manhã à noite, que lhe dei pontualmente, durante onze meses, disfarçado na pasta da suas latinhas preferidas) e, de começo, melhorou. Os ataques desapareceram, até data muito recente. No mês passado, ainda ninguém diria que lhe restava tão pouca vida. A sua paixão pelo jardim manteve-se até ao último dia, quando deixou de se alimentar, mas não deixou de se arrastar para perto das roseiras. Mal abria a porta da sala, era a primeira a sair. De tarde, tentei dar-lhe soro, a desafia-la para uma 7ª vida. Adormeceu no meu quarto. Está agora no jardim sob uma japoneira, junto ao Mandarim. Não longe do Jão- Jão e da Branquinha. Restam quatro, todos, em boa verdade, já velhotes. Até o Dragão, que será sempre "o pequenino" anda nos 13 anos. Quando o solto no jardim, não manifesta grande vontade de arejar nos telhados. Mas eu vigio, porque em gatinhos "nunca fiando"... A imprevisibilidade é parte do encanto desta espécie. O facto da Seta ser menos imprevisível do que todos os outros, mais tranquila e estável, nos seus hábitos e manifestações, no seu trato muito "civilizado" (nada de pular para cima das mesas, ou de assaltar os pratos de comida alheios, ou até de disputar os dos companheiros, ou de fugir do seu sítio, à falsa fé) era parte da sua quase humanidade. Uma de nós...

EDUCAÇÃO PARA A DESIGUALDADE

1 - Inesperadamente, irrompeu, em pleno verão de 2017, a polémica sobre os cadernos de exercícios escolares diferenciados segundo o sexo, com capa rosa para elas e azul para eles. Perfeito e anacrónico exemplo de uma forma de "educação para a desigualdade"... Estou bem acompanhada nesta abordagem da questão de género em tenra idade, começando pelos intervenientes de programas que vejo invariavelmente, como o "Governo Sombra" e o "Eixo do Mal", continuando por um sem número de outros "opinion makers" de todos os meios de comunicação e terminando - os últimos serão os primeiros...- pela Comissão para a Igualdade de Género e pelo Governo da República. Discussão inédita em tão negligenciado domínio, porque foi efetivamente a primeira vez que a alegação (ou, se preferirem, a evidência) de secundarização de alunas do ensino primário alcançou dimensão nacional, com foros de escândalo. Surpreendida pelo fúria mediática que atingiu obra tão rentável (um sucesso de vendas, ao que consta), a editora apressou-se a retirar os caderninhos do mercado, pelo que não tive a oportunidade de os comprar para aturada leitura e falo pelo que ouvi dizer a quem leu - e a quem não leu... Sabemos o "porquê" da perplexidade da Porto Editora. O mercado está inundado de literatura infantil rosa para meninas delicadas (futuro sexo fraco) e azul para meninos aguerridos (futuro sexo forte), sem que alguma voz suficientemente audível jamais se tivesse antes levantado contra a imposição de modelos de comportamento "de género", que, por esta via, se leva a cabo, contando com a colaboração, consciente ou inconsciente, da família e da escola - salvo as honrosas exceções que sempre existem em relação a qualquer regra. Em vão, já nos alvores do século XX, Ana de Castro Osório bradara contra este estado de coisas. Vale a pena reler que escreveu como pedagoga. O mesmo se diga dos seus contos para crianças, que são verdadeiras obras primas da língua portuguesa. 2 - O que mudou desde então foi, essencialmente, o facto das teses daquela famosa Mulher da 1ª República terem passado do campo da heterodoxia para o do politicamente correto. Mas, na prática, há ainda condicionamentos de toda a ordem à livre expressão da natureza feminina e masculina. Diferenças entre os sexos existem, evidentemente, mas o peso da educação, segundo preconceitos ancestrais de uma sociedade patriarcal, não nos permite distinguir a parte que é da natureza (um bem!), da parte resultante da (des)educação, matriz de preconceitos infundados, de depreciação e discriminação do feminino (um mal!). Na expressão de Simone de Beauvoir, mil vezes citada: "on ne nait pas femme, on le devient" .Na verdade, era a rígida divisão de trabalho, a formação imposta para papéis predeterminados (e não a natureza) que rebaixava a Mulher para o estatuto de "segundo sexo". Assim era mantida pela impossibilidade de acesso ao conhecimento, à aprendizagem de Ciências e Letras e pelas barreiras colocadas ao exercício de uma carreira e a toda e qualquer participação relevante na "res publica". Não é coisa do passado remoto, mas do tempo bem próximo das nossas avós, quando não das nossas mães - na minha própria família, pertenço à primeira geração de mulheres que tirou um curso universitário e teve uma vida profissional, isto é, cujo objetivo de futuro, desde a infância, não foi apenas o casamento. Desde fins do século XIX, o movimento de emancipação feminina centrou-se, inteligentemente, nos campos da educação e da autonomia económica, alcançada por uma remuneração de trabalho fora de casa. (Não menos importante, mas, não o esqueçamos, bem menos consensual, pelo menos entre as republicanas portuguesas, foi a luta pela igualdade de direitos políticos, o sufragismo). As mulheres souberam fazer caminho e mostrar o que valem, em todos os domínios do saber e da intervenção societal Ora uma política de segregação de conteúdos ou de suportes pedagógicos, em função do género, significa um retrocesso às profundezas de oitocentos, quando se considerava permitir o ensino público para as raparigas, desde que simplificado, ajustado às menores aptidões e necessidades a que se julgava corresponder. Nos dias de hoje, isto é simplesmente ridículo e indefensável e foi uma grande insensibilidade para o significado de uma tal opção (em primeira linha comercial) que "tramou" a Porto Editora. Aquilo que nos contos infantis passa sem crítica, não se admite, quando detetado, em material de aprendizagem escolar... Esperemos que o passo seguinte seja a firme denúncia do "sexismo" persistente neste ramo da literatura, não só por parte da Comissão da Igualdade, como por parte dos cidadãos, porque a desigualdade "contra natura" começa no berço e no jardim de infância e não nos bancos da universidade ou nos concursos de admissão a empregos. Como diz, prosaica mas sabiamente, o povo "de pequenino se torce o pepino"... E, se liberdade de expressão dos autores não pode ser posta em causa, pode e deve ser criticada, exposta, ridicularizada ( o ridículo é, afinal, uma das armas mais eficazes!). 3- Voltando à controvérsia dos caderninhos: não sei se, nos trabalhos especificamente colocados às alunas e aos alunos, há, como alguns argumentam, graus equivalentes de dificuldade. Em qualquer caso, a ideia de criar testes autónomos, para um e outro sexo, é bizarra, é absurda, como o seria diferenciar exercícios de matemática ou de história, em função da cor da pele, da religião, da nacionalidade. Mas, para além desta questão, outra há que não oferece dúvida: a dos estereótipos da rapariga que dança "ballet", enquanto o rapaz joga futebol. porque vai influenciar atitudes e escolhas e, não vai contribuir para as afastar, a elas, dos campos de jogos, onde é tão saudável correr e competir, como os afastar,a eles, por muito talentosos que sejam, dos palcos dessa maravilhosa arte, que é o "ballet". Pode ser que haja, mas eu nunca vi, em manual ou em livro infantil, imagens de meninas a jogar à bola ao lado de imagens de meninos em pose de dança... Quem sabe se surgirão, no rasto desta controvérsia? Se sim, acabou sendo benéfica a infeliz iniciativa da tal editora. Será altura para invocar mais um aforismo: "Deus escreve direito por linhas tortas". Em "A DEFESA DE ESPINHO" 7 setembro