setembro 19, 2017

LEMBRANDO O COMENDADOR ANTÓNIO BRAZ

1 - É um privilégio poder dar um breve testemunho nesta sessão de homenagem ao Comendador António Braz, em Tondela, sua terra natal, no centenário do seu nascimento. A exposição que acabámos de visitar dá-nos bem a ideia do Homem, do emigrante corajoso, que atravessou os mares e andou pelos quatro cantos da terra, do cosmopolita, movido pela alegria de conviver, por uma insaciável curiosidade sobre outras realidades culturais e outras formas de fazer desenvolvimento económico, sempre pronto a partilhar ensinamentos e experiências. Do empreendedor, que aliava inteligência e intuição a energia, capacidade de inovação a um bom gosto inato, com que sabia acrescentar ao rasgo profissional uma componente estética. Do “empresário de sucesso”, na expressão que entrou para ficar no discurso político, ao menos desde que Portugal aderiu à CEE, com a vontade de difundir a imagem moderna do seu povo, e, em especial, da emigração, ao que se anunciava (prematuramente...) no termo dos seus dias. Nenhum dos nossos compatriotas merece mais esse título prestigiante do que o Comendador Braz, mas, como os mais notáveis dos nossos expatriados, não se limitou a ser empresário inovador, foi um mecenas, um patriota, um líder das comunidades portuguesas do sul da África – a qualidade em que o conheci, em que muito o admirava e estimava. 2 - Permitam-me, pois, que o destaque, em particular, como ativo cidadão, colocando o enfoque nas comunidades a que pertenceu (comunidades vistas como instrumento de interculturalismo e engrandecimento nacional, com o seu insubstituível papel em sucessivos ciclos de migrações maciças, em praticamente todos os continentes), assim situando a obra do Comendador Braz num vasto movimento associativo, que ele encarnou, e encarna, exemplarmente. É, sem dúvida, justo, lembrá-lo pelo êxito empresarial e pelo mecenato com que contemplou a terra de origem, não esquecendo, porém, o seu envolvimento comunitário no estrangeiro. Foi, sobretudo, nesta veste que se converteu, como alguns outros ilustres compatriotas, a nível planetário, em agente ou protagonista da História da emigração e das Comunidades Portuguesas, que temos de saber, no futuro, estudar e divulgar como parte da nossa História . 3 - Não as "comunidades" de que comummente se fala como mero sinónimo de "emigração", realidade estatística, número global (aliás, quase sempre, pouco rigoroso, pecando por defeito), e sim as comunidades estruturadas numa multifacetada rede de instituições de cultura, de convívio, de beneficência, que constituíram a mais importante retribuição de um fenómeno migratório multissecular. Mais importante, afinal, do que aquela que se contabilizou, conjunturalmente, nas remessas de montantes astronómicos, de que os governos se mostravam ávidos para minorar os desequilíbrios das contas públicas. Até tempos recentes, prevaleceu esta perspetiva material, e, com ela, se centrava a atenção no quadro quantitativo da expatriação, invariavelmente avaliada em cifras e mais cifras, embora também servissem para dar a expressão dramática da "ausência". De fora, no esquecimento, ficavam as formas de vivência coletiva no estrangeiro, a dinâmica associativa, em que se fundou e se continua um espaço de "presença" portuguesa intemporal e universalista. 4 - As comunidades/realidade orgânica, foram crescendo, sobretudo a partir do primeiro quartel do século XIX, fruto da visão estratégica dos portugueses, em cada sociedade de acolhimento, para dar resposta direta, sistemática, eficiente, às necessidades das pessoas - apoio aos recém-chegados, entreajuda, na doença ou no desemprego, e, também, convívio, pelo qual se conservam costumes e modos de estar. À medida que iam conseguindo uma boa integração na nova sociedade mais procuravam a afirmação da identidade nacional e a sua preservação no encadeamento das gerações, pondo o acento no ensino da língua e da história aos jovens. Nessa aprendizagem de como ser de duas pátrias, os emigrantes têm-se mostrado exímios, talvez porque o nosso nacionalismo é tradicionalmente de abertura aos outros, aos vizinhos e companheiros de trabalho, não sendo, por isso, conflitual, nem agressivo, antes se constituindo em fator de cooperação e de inclusão (sem a fatídica assimilação, que tantos académicos e políticos anteviam). É na malha densa de associações culturais, sociais, recreativas, paróquias católicas, escolas, meios de comunicação social que se vai suprindo a falta de políticas públicas do Estado, por um lado, e, por outro, sedimentando a Diáspora. 5 -Os estudiosos da emigração portuguesa apontam o tradicional descaso dos governos com a sorte dos expatriados, desde o momento em que abandonam o território, assim como o caráter repressivo ou limitativo das políticas, com que tentam, regra geral, condicionar fluxos estimados como excessivos, mesmo no período de colonização. É o caso do Brasil, onde os ingressos foram em crescendo, antes como após a independência, com idêntico caráter de espontaneidade. Por isso, se torna, como admitem os historiadores destas matérias, difícil traçar a linha de fronteira entre as partidas enquadradas no projeto estatal de colonização e as que foram assumindo, mais e mais, os contornos de fenómeno puramente migratório. A meu ver, uma tal ambivalência, terá tido, nas diversas possessões da Coroa, de Oriente a Ocidente, os seus reflexos no modo de trato e convívio com as populações locais e com os outros imigrantes, num relacionamento tendencialmente mais próximo, igualitário e cordial, de cujo rasto antigo e difuso emana o universo atual da lusofilia. "Solúvel e insolúvel este povo, na memória dos outros e na sua mesma", segundo Jorge de Sena... 6 - O desregramento dos fluxos de saída acentuou-se, em cada novo ciclo, ao longo de setecentos e oitocentos, e era visto como um risco para a sobrevivência do país no seu berço territorial. Contudo, como hoje sabemos, o declínio demográfico não aconteceu e o excesso terá contribuído, decisivamente, para o definitivo enraizamento da língua e de uma forte componente cultural no Brasil independente (que, sobretudo após a abolição da escravatura, apelava à chegada em massa de migrações europeias e asiáticas), bem como em outras partes do império, e fora delas, na Diáspora. Num balanço realizado à distância de séculos, somos tentados a afirmar que o futuro deu razão a milhões de homens e mulheres, que daqui se foram, movidos por um sonho proibido. Afinal mais efémero foi o império, cujas riquezas, em cada época, se ganharam e se perderam, do que as comunidades que, ainda hoje, estão vivas nas terras onde a saga da Expansão levou o povo, de Leste a Oeste, a nível planetário. Os emigrantes são ou não os autênticos descendentes dos navegadores e dos colonos pioneiros, dos voluntários da aventura quinhentista, os herdeiros da sua audácia e da sua ambição de "correr mundo"? Muitos acham que sim e eu estou com eles. 7 - Estas comunidades sobreviveram às primeiras levas de emigrantes, existem com caraterísticas espantosamente semelhantes, embora sem quaisquer interinfluências, quer as mais antigas, geradas nos movimentos migratórios, desde oitocentos, (quando não anteriores - pensemos, por exemplo, em Malaca), quer as contemporâneas, da Europa às Américas, da África à Oceânia, e podem ser consideradas a nossa última "descoberta". De facto, até meados do século XX, poucos investigadores se deram conta da existência das "colónias" de emigrantes, (designação então consagrada), entre eles se distinguindo os professores Afonso Costa e Emídio da Silva. Contudo, mesmo estes dois notáveis estudiosos não se terão apercebido da sua capacidade de sobrevivência, ou seja da sua conversão em autêntica Diáspora. Diáspora sem exílio,todavia nem por isso com menor apego aos valores matriciais, mantidos como herança preciosa por gerações sucessivas.. A descoberta das comunidades coincide com o fim do império, e não por acaso! Ninguém a enunciou melhor do que o Primeiro-ministro Sá Carneiro, em 1980: "Portugal foi um país de colónias, hoje é um país de comunidades"." Uma Nação populacional". Ou na definição em que acentua, essencialmente, valores próprios da sociedade civil: "Portugal é mais uma Cultura do que uma organização rígida". É nesse ano de 1980 que, consequentemente, surge no organograma do Governo, pela primeira vez, uma Secretaria de Estado da Emigração e das "Comunidades Portuguesas", e se procura desenvolver, articulando-as, mas dotando-as de meios específicos, políticas sociais para a emigração e políticas de dominante cultural para a Diáspora, representada num "Conselho Mundial das Comunidades Portuguesas". Todavia, já anos antes, por iniciativa do General Ramalho Eanes, o primeiro Presidente eleito depois de restaurada a democracia, o substantivo "Comunidades" entrara no léxico político, na denominação oficial do 10 de junho, "Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesa". É o momento em que se anuncia o Portugal moderno, na sua perfeita dimensão humana e cultural - uma cultura viva e em expansão universal. Orador nas comemorações solenes dessa data, Vitorino Magalhães Godinho diz com meridiana clareza : "Portugal é mais do que o império que se fez e desfez, está presente com os Portugueses, onde quer que vivam" (cito de memória). 8 - Os governantes, os cientistas, os cidadãos em geral, não podem, hoje, ignorar espaço português das comunidades do estrangeiro, a dimensão universalista que confere à Nação Portuguesa, por obra e graça dos cidadãos, não pelo braço armado do Estado. E, porque assim foi e assim é, há que atribuir-lhes todo o mérito na fundação e preservação das comunidades, verdadeira extensão extra-territorial do País. Eles partiram, mas não se perderam na dispersão geográfica, como augurava a sabedoria popular e académica. Não abandonaram Portugal, levaram-no consigo, como tão finamente intuiu Jaime Cortesão. Reuniram-se e recriaram a terra mãe em instituições semelhantes àquelas que nela conheciam. São Diáspora! Não basta, pois, admitir a existência das comunidades, colocando-as no cerne do discurso político sobre a emigração, meramente como seu sinónimo. É um erro em que cai, ainda, uma maioria de portugueses, políticos, jornalistas, funcionários, que delas falam com desenvoltura, mas nunca as visitaram, nem participaram nas suas atividades concretas, nem leram os seus jornais. Podemos, aliás, ir mais longe e dizer que as comunidades mal se conhecem umas às outras, e mal colaboram entre si, fora das fronteiras de um país, ou até só de uma região, de uma cidade... Eu própria, quando por dever de ofício, há quase 40 anos, comecei o meu roteiro de contactos - que não mais terminou - por este Portugal sem território, tive de me entregar a uma fascinante aprendizagem, nas viagens circulares, em que ia e vinha, cruzando oceanos e continentes, sem nunca me sentir no estrangeiro: saíra do país, como se nunca tivesses saído! De princípio, tudo me parecia irreal, até me familiarizar e me apaixonar por essa realidade, que é, verdadeiramente, nossa. 9 - O "Portugal maior", de que falava Vitorino Magalhães Godinho, não é, assim, um tropo de retórica, não é um mito pós colonial e não é um gueto de inadaptados, de mal com a terra que deixaram e com aquela onde se encontram. Este Portugal de uma nova "Expansão" foi sendo impulsionado por Portugueses da estirpe do Comendador António Bras, ao longo dos tempos. Tem, lá longe, a grandeza, o espírito, o fraternalismo de que eles são capazes. É preciso dize-lo, contrariando ideias feitas sobre a imigração - ideias que se insinuam até em organizações ou cimeiras internacionais, como as conferências dos ministros responsáveis pelas migrações no Conselho da Europa, onde sempre procurei contraria-las, invocando o paradigma português para defender o movimento associativo como um poderoso fator de apoio à integração individual, que se revela, em cada fase do ciclo migratório, o espelho do percurso coletivo - muito diverso, como é óbvio, em sociedades que oferecem oportunidades diferentes de enriquecimento e ascensão social. Temos, atualmente, a par de associações que reproduzem a atmosfera de uma pequena aldeia portuguesa tradicional, as mais grandiosas instituições beneficentes, culturais ou desportivas, sobretudo no norte e no sul da América e na África. Contudo, o impulso que as determina é o mesmo - é a vontade de serem, no seu círculo geográfico, à medida das suas possibilidades, presença cultural portuguesa, elo de ligação entre duas sociedades em que os emigrantes/imigrantes se revêem e de que se consideram plenamente parte. 10 - O Comendador António Braz é um rosto inesquecível deste Portugal redimensionado pelas comunidades extra territoriais. Dando o seu exemplo, torna-se mais fácil falar da dimensão que conferem ao País, como ponte, feita de uma infinidade de pontes, a reunificar um povo disperso, pontes lançadas entre um passado e um futuro português.Torna-se mais fácil evidenciar a persistência na nossa gente de todas as virtudes que reconhecemos aos Avós quinhentistas - a sua natural capacidade de aceitar e ser aceite pelos outros, de os envolver num trepidante intercâmbio de produtos, de instrumentos, técnicas e saberes, oriundos de terras distantes. Enquanto empresário do século XX, foi isso mesmo o que Ele conseguiu, levando ao sul da África, designadamente, tradições do quotidiano da América do Norte... Enquanto cidadão, soube ser, como os nossos maiores, portador de uma mensagem de modernidade e humanismo, granjear amizades e alta reputação, que repartiu com a sua comunidade e o País. Lançou e apoiou associações, iniciativas culturais, centros de acolhimentos e integração dos refugiados de Angola e Moçambique e fundou um jornal de superlativa qualidade, "O Século de Joanesburgo" (um dos melhores de todo o universo da lusofonia). Era, em fins do século XX, o patriarca das comunidades portuguesas da África do Sul! Quem mais teria conseguido dar às comemorações da primeira passagem pelo Cabo da Boa Esperança o momento mais simbólico, a dádiva mais perene, com a oferta de um monumento a Bartolomeu Dias, colocado em Pretória, no mais nobre lugar da capital da República, face ao "Union Building"? Uma celebração da História, por alguém que a sabia interpretar e fazer presente. Uma "prova de vida" do Povo que fomos, no início da Expansão, e ainda somos.

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