fevereiro 01, 2022

A AVÓ MARIA AGUIAR in Os avós e nós

A AVÓ MARIA

A Avó Maria Aguiar era figura pública proeminente em Gondomar, vila antiga, na fronteira sudeste do Porto. Os seus sete filhos, incluindo minha mãe, e todos os netos eram referidos, falados e considerados em função dela, para sempre umbilicalmente ligados à aura e ao nome da matriarca, quase sem luz própria, por mais brilhantes que fossem. 
Nasci na sua casa, cercada de jardins murados, com um mirante florido na frente de rua e pomares e vinhedos a perder de vista, por detrás da mansão grande de "brasileiro", de cor rosada e venezianas verde escuro. A Vila Maria.  Aí, com ela e meus Pais, fui tão feliz quanto se pode desejar, nos primeiros oito anos de vida. Com ela, aprendi a gostar de histórias, (e mais de narrativas engraçadas sobre si e a família do que de contos infantis), a declamar poemas de Guerra Junqueiro, exercitando a memória em alguns dos que parecem intermináveis ("O melro, eu conheci-o, era preto, brilhante e luzidio... ), a bordar pequenos quadrados de linho a ponto de cruz, com o mínimo possível de habilidade inata. E a comportar-me surpreendentemente bem, tanto em procissões e novenas de Igreja, como nos lanches das confeitarias portuenses, a Villares ou a Ateneia, onde lhe fazia boa companhia. Criança rebelde, com reputação de indomável, várias vezes, emboscada atrás de um móvel, ou de uma porta, ouvi a Avó levantar a voz para me defender, dizendo: "Ninguém compreende esta menina! É preciso explicar-lhe a razão das coisas. Se ela perceber, aceita tudo muito bem". Na verdade, eu gostava de satisfazer expetativas, era sempre  muito capaz de corresponder, na ação imediata, ao pior ou ou melhor que esperavam de mim...
A esta persuasiva pedagoga e querida Avó devo algumas das mais extraordinárias alegrias da infância, entre as quais se contam: a compra de uma carteirinha de verniz vermelho, usada a tiracolo, (a contragosto dos pais, naturalmente...), a oferta de um grande boneco pretinho, por muito tempo mirado e namorado na montra do bazar de Sá da Bandeira, e o traje de anjo amarelo, de grandes asas brancas, com que desfilei pelas ruas de São Cosme, em cortejo procissional, depois de vencida, uma vez mais, pela avó a relutância de mãe e pai em satisfazer tão ardente e desvalorizada ambição infantil. 
Todavia, à Avó devo, igualmente, a remota origem do meu feminismo - o que não era, de todo, resultado que ela desejasse. De uma família de mulheres fortes, as mais heterodoxas das quais pareciam saídas de romances de Agustina, herdeira da sua fibra, era, porém, ela própria, um assumido expoente de conservadorismo e da prática das virtudes consideradas femininas, primeiro durante um casamento de dezasseis  felizes anos, e, depois, ao longo de uma sofrida viuvez de mais de meio século. A sua influência na "res publica", crescera circunscrita ao pequeno círculo bem frequentado e bem visto das obras paroquiais, onde debutou, e extravazou, numa dinâmica natural, para o da comunidade, como um todo, do campo da assitência e do atendimento de casos sociais, ao da cultura, organizando peregrinações, a par de récitas e concertos beneficentes, cujos ensaios, muitas vezes, decorriam na sua sala do piano (piano que era emprestado para os espetáculos, fazendo, entre a Vila Maria e o Cine Teatro Nun' Álvares, uma curta e improvável viagem em carros de bois, necessariamente seguida de intervenção de um afinador). Outras vezes, as arcadas e a espaçosa adega do piso térreo transformavam-se em estaleiros de produção de carros alegóricos, enfeitados de flores de papel, confecionadas, aos milhares, por ruidosos bandos de meninas, a que as netas tinham licença de se juntar. 
Para tudo havia regras, naquele mundo que se movia, sob o impulso de Maria Aguiar, a intransigente defensora do recato e das "boas maneiras" feminis, ao serviço das quais, tantas vezes, brandamente, me repreendia: "as meninas não fazem isso!".
 Isso sendo o que era permitido aos primos da minha idade, como subir às árvores do jardim, ou até aos telhados, saltar de carros eléctricos em andamento, jogar à bola com os garotos da rua...  Enfeitar altares ou colar florinhas de papel colorido em painés, ao som de canções populares, sim, eram tarefas de  meninas... O plural "as meninas" intrigava-me... A argumentação da Avó, neste capítulo, não me soava convincentemente, não respondia aos meus "porquês"... Achei por bem provar, a mim mesma e aos outros, pela "praxis", que "as meninas" podiam tornar-se, com o continuado exercitar, tão aptas como os rapazes a cumprir objetivos nosmuitos domínios interditos. E assim me converti, a partir dos seis ou sete anos, ainda que sem consciência clara da existência das questões de género, em feminista praticante... Por sinal, os homens da família, o pai e o avô paterno, o inequecível Avô Manuel, cedo me iniciaram na paixão pelo cinema, pelo teatro e pelo futebol, não mostrando partilhar as preocupações da avós, ambas a Avó Maria e a Avó Olívia, em completa sintonia nas suas teses sobre a construção cultural do feminino... .
Numa altura em que tanto já ressentia, em causa própria, as discriminações de sexo, não me ocorreu, nunca, indagar o porquê da posição singular que a Avó Maria ocupava na sociedade local, a tal ponto a via como decorrente de uma autoridade natural, de um estatuto seu, inquestionável. Só muito mais tarde me apercebi de que o ganhara num trabalho incansável, e interminável, que, mais do que vocação, fora destino, fatalidade de se ver mulher só, ter de encontrar os modos de se realizar numa outra vida. Ela e a “sua circunstância”…
Maria da Conceição Barboza Ramos era a mais nova de oito filhos de Carolina Ferreira Ramos, (de uma família enraizada, há séculos, em Gondomar) e de Joaquim Mendes Barboza, o tabelião, que viera do norte (Bitarães, Paredes), para nunca mais deixar a terra de adoção. Em tudo fora  menina do seu tempo e condição social. Depois da escola primária, recebeu, em casa, os ensinamentos dos pais e professores, à espera de encontrar noivo. Das três raparigas, só uma, Glória, se formou na Escola do Magistério, no Porto, e nunca exerceu. A tuberculose levou-as aos 21 anos. O curso, pela raridade, bastou para que fosse uma das poucas mulheres biografadas na monografia “O Concelho de Gondomar”, ao lado do pai, irmãos e vários parentes masculinos, com largo “curriculum” de intervenção cívica e política.
A Maria, jovem inteligente, prendada, e lindíssima, não faltaram pretendentes. A sua escolha recaíu num conterrâneo emigrado no Brasil. António Carlos Pereira de Aguiar, nas suas próprias palavras, pessoa “muito ilustrada”, homem bonito, com enormes e expressivos olhos verdes, como nunca vira outros. O Avô António partira para o Rio de Janeiro em 1996, com 16 anos, levado por um dos seus quinze irmãos,  João, bastante mais velho, quase com idade para ser seu pai, e, por essa altura, já um muito próspero joalheiro. O jovem António Carlos, revelando-se exemplar discípulo do melhor mestre, numa época aurea de desenvolvimento do país, como foi, para o Brasil, o início de novecentos, fez fortuna rápida e honesta, e era, então, o dono de uma joalharia da moda, na rua do Ouvidor. Sendo a Avó Maria uma incondicional entusiasta de viagens e excursões, de muita movimentação e convívio social, até aos seus últimos dias dos seus mais de noventa anos, é possível que a perspetiva de viver, por uns anos, no mundo novo brasileiro, com frequentes visitas à sua terra, a bordo de esplêndidos paquetes,  tenha sido fator de peso na aceitação daquele pedido de namoro, logo depois convertido em pedido de casamento. Da parte do Avô Aguiar, fora o "coup de foudre", "amor à primeira vista" e até que a morte os separou... No mais clássico modelo de papeis conjugais, com rígida divisão de tarefas, uma união perfeita! Dos oito filhos, só três nasceram no Rio. Maria preferia ter os meninos em São Cosme, no conforto da casa materna... Vinha o marido, de bom grado, trazê-la e buscá-la e, durante o tempo de separação, escrevia-lhe extensas cartas de amor, em tudo idênticas às dos tempos idos de noivado...O noivado durou dois anos e está documentado por uma preciosa sucessão de postais ilustrados, com breves mensagens, que diríamos uma espécie de “twits” do início do século passado, que serviam para troca de saudações amorosas e anuncio do próximo envio de longas cartas,infelizmente, quase todas desaparecidas....
A Gondomar regressaram em 1920, e viveram, por breves anos, na terra e na casa dos seus sonhos. A morte súbita do Avô António, aos 46 anos, deixou a viúva num estado de depressão profunda, que ameaçava eternizar-se. A senhora elegante e mundana das salas de festas transformou-se em vulto negro e austero (não menos elegante) dos salões paroquiais... Os retratos contam, sem necessidade de palavras, a tragédia da sua vida, pela forma e colorido dos chapéus, das abas imensas das "capelines" floridas da senhora casada aos pequenos chapéus de viúva, rentes à testa, enfeitados por uma simples "aigrette" (a que chamávamos, na sua ausência, "os quicos da Avó"). O momento da grande mutação foi o da perda do papel de esposa perfeita, em que teve de se assumir como mãe e o pai de sete crianças (difícéis e desafiantes...), com idades entre os dois meses e os catorze anos. Do torpor de muitos, muitos meses saiu, buscando orientação na fé, nas crenças e práticas religiosas, fonte inesgotável de novas energias, e razão de viver, intensamento, para a família e para os outros..   
Fora a mulher do empresário António Aguiar, que o seu caráter extrovertido e generoso, tornara tão estimado e popular no Rio de janeiro, como em Gondomar. Enquanto a sua memória permanecia entre os daquela geração, foi a sua respeitabilíssima sua  viúva. E, por fim, ela própria, Maria Aguiar, líder no feminino, universalmente querida e  admirada. Protetora dos pobres, confidente e conselheira nas horas difíceis. Do seu apostolado de leiga, da organização de peditórios, peregrinações, festividades religiosas, passara aos domínios adjacentes da animação cultural, organização de récitas e concertos beneficentes, deixando, vir, de novo, à superfície o seu gosto pela música, poesia e teatro, num mesmo quadro de voluntariado socialmente aprovado para as senhoras. Latente, sempre, o culto do marido, simbolizado na sobriedade dos trajes escuros (em que se permitia o roxo e o cinza), ou no cuidado com que podava, por suas mãos, as rosas, com as quais ele se apresentava em exposições,  (nunca filhos, netos nem os criados saídos das cadeias lhes puderam tocar). E no uso do seu apelido Aguiar. . O nome que, hoje, descendentes de quarta e quinta geração continuam a usar, preterindo outros, do ramo materno e paterno, apenas por ser o dela. 
E não só por ter sido essa notável cidadã. Mais ainda, por ter sido a nossa Avô, a prodigiosa contadora de histórias, a grande matriarca, a força que reunia à volta da mesa na casa, que, sendo dela, era de todos, a família inteira, uma família enorme, na intimidade das ceias de Natal ou nas festivas visitas do compasso pascal, em casamento e batizados e em todas as festas que se inventavam para estarmos juntos. Na mais completa fragmentação familiar, que se seguiu ao seu tempo, é ainda, afinal, a memória da Avó Maria Aguiar, que nos reune, à volta do seu nome, numa árvore genealógica de afetos.