agosto 27, 2015

As duas revoluções de novecentos

1 - À distância de apenas quatro anos é irresistível fazer a comparação entre a celebração das revoluções que marcaram o século XX português: a revolução portadora das ilusões de uma mudança de regime, que se estendeu pelos 16 anos da breve 1ª República e a revolução fundadora da República em que estamos há 40 anos, ainda com a expectativa de a continuar, para além da crise actual, traduzida em involução e empobrecimento geral e em degradante dependência do Estado numa Europa dividida e desigual.
O centenário da I República foi objecto de inúmeras organizações, do mundo científico e político, dos “media”, das instituições da sociedade civil, que o tornaram um excelente exemplo do que pode e deve ser feito, sem tombar no elogio nostálgico e ritual - .a permitir um olhar sobre nós, sobre a luta das mulheres e dos movimentos feministas, sobre a questão colonial e religiosa, sobre o fervilhar de ideias e de querelas, sobre o dilatado interregno da ditadura, sobre o 25 de Abril e o agitado início de milénio… Um percurso secular de memórias renascidas.
No confronto entre festejos, os de 2014, pelo menos a nível oficial, parecem destinadas a ficar muito aquém do que justifica a importância da maior revolução do século, pelas suas consequências imediatas e futuras…Desde logo, porque representou o fim de um longo ciclo de 500 anos de construção e desconstrução de um vasto império colonial e ultramarino, que, ao entrar do último quartel do século, ia do Atlântico ao Pacífico, em estado de guerra e de desagregação, contra o sentir comum dos Povos. Um anacronismo, um impasse fatal, resolvido no fim de um ciclo de 50 anos de ditadura, de "silêncio e de medo”. Palavras de Maria Teresa Horta, há dias, numa rádio, onde, como em outros “media”, em universidades, em programas da sociedade civil, 1974 vem sendo tema de debate e rememoração, em fórmulas interessantes de fazer História e advento de História - a partir desse dia simbólico em que o império de desfez, com o anúncio e o começo da descolonização, e o País de refez, ao entrar no processo de retorno à sua origem geografica– antes de mais, no domínio da política, onde pela força do voto, se sagrou a opção europeia, a par da opção pela democracia representativa, uma das várias alternativas, que se confrontaram nas pulsões contraditórias do PREC... Em qualquer caso, de fora desta estreita fronteira europeia, para sempre ficaria a Diáspora, todo um espaço em expansão de lusofonia e de lusofilia. A melhor de todas as heranças do império finito: a dispersão universal da língua, enraizada em culturas e em afectos...
2 - Duas revoluções com sorte diversa...
A revolução de 1910 morreu antes de envelhecer a geração que lhe deu corpo.
Não assim a de 1974, com os jovens capitães que tinham, então, como Fernando Salgueiro Maia, 29 anos, ou pouco mais, e com os políticos, a quem eles abriram os caminhos da livre expressão e da acção concreta, e que eram, igualmente, na sua maioria, gente nova e idealista.
Ficam, todos, a meu ver, bem, na galeria dos notáveis da Pátria. Entregaram à geração seguinte um país mais livre, mais justo e mais democrático do que jamais fora e, também, há que dizê-lo, melhor do que é...
De facto, se perguntarmos hoje: Este é o Portugal que quisemos? Esta é a Europa em que acreditámos? A resposta é: "não!". Duas vezes “não”...
Vivemos, assim, naturalmente, a urgência de recuperar, em simultâneo, o espírito humanista e fraternal da construção europeia, e o sentido libertário e pluralista da revolução de Abril, tal como se projectou na Constituição, em sucessivas revisões, e na cena política nas últimas décadas de novecentos. Ou seja, aceitando que a democracia exige sempre a alternância, o diálogo e o respeito da alteridade.
Por isso me parece que uma das iniciativas não formalmente enquadrada em qualquer programação das comemorações, mas que lhe
veio acrescentar um sinal de esperança - coisa que tanto nos tem faltado - foi o chamado "manifesto dos 74". E não apenas pelas suas propostas, a meu ver, realistas, sobretudo, na compreensão de que não há boas soluções nacionais, sem boas soluções à escala europeia..Não apenas por essas propostas, mas pela comprovação de que há, entre os Portugueses, na sociedade civil, mais vias de entendimento e de compromisso, do que julgam os políticos “institucionais” , aparentemente limitados no horizonte da sua própria inabilidade de dialogar e alcançar resultados no país e na Europa.
Está em causa o futuro de um tempo começado em 74.
Há que o demandar sem medo das ideias e dos projectos dos outros-n
Por exemplo, sem medo de dar, no hemiciclo de São Bento, no próximo dia 25, voz aos militares de Abril, neles personificando a homenagem merecida desta geração à antecedente. À que fez a grande revolução.

2013 sobre DECO

Maria Manuela Aguiar Todos esses jornais reservam às notícias sobre DECO as duas páginas centrais, mas o conteúdo não é fantástico, não dá a Deco tudo o que Deco merece... Os depoimentos de Scolari e de Figo não são nada de especial (melhor o de Figo!). Mais interessantes os de "A Bola" (Pinto da Costa e José Manuel Freitas) e as "reações" de Fernando Santos e de Derlei. em "O Jogo". Francamente, gostei mais das palavras dos comentadores do programa da RTP Informação "Grande Área", sobretudo do Bruno. Disse que, na história da nossa seleção, só Eusébio, Figo e Ronaldo se podem considerar acima de Deco. Todos o colocam no Top 10 do nosso futebol, em todos os tempos. E falaram de uma seleção que rodava à volta do médio, de "génio" de "qualidade absolutamente excecional".
Ficou, nesse programa, sem resposta a pergunta que muitos fazem: DECO foi o melhor jogador da história do Porto? Só o fazerem a pergunta já significa imenso... Sei que a resposta é difícil - nenhum a quis dar. Mas eu não tenho dúvida: sim, DECO foi o melhor jogador da história do FCP, o melhor de todos quantos vi jogar em mais de 6o anos. E não só o melhor, nas suas qualidades individuais, mas também o mais influente no jogo da equipa. No Porto como na seleção nacional. Nem Figo, nem Ronaldo, nem mesmo Eusébio foram tão decisivos na produção do jogo coletivo!
O mundo de emigração e da Diáspora


A minha primeira palavra é de agradecimento à Prof Doutora Maria Fernanda Rollo pelo convite para participar neste grande congresso sobre a revolução do 25 de Abril, sobre o seu significado para Portugal e para os Portugueses, com a promessa, que viria a ser cumprida, de liberdade e de democracia. Para todos os Portugueses, também para os da emigração e da Diáspora. Deles falarei em breves palavras.
A revolução do 25 de Abril é, neste domínio, uma data maior, a maior de todas, porque veio trazer a liberdade, rompendo com os obstáculos de ordem jurídico- administrativa à decisão individual de emigrar, rompendo com políticas multisseculares de limitação ou proibição das saídas - mais ainda para as mulheres do que para os homens.
Na verdade, o êxodo sem fim dos portugueses pelo mundo, num contínuo encadeamento de ciclos, não fora, nesse passado longo, nunca, inteiramente livre.
E a democracia nascente vinha também restituir aos emigrantes o seu direito de cidadania, de participação política, contra uma tradição de absoluta exclusão da comunidade nacional, uma verdadeira "capitis diminutio", que os atingia mal atravessavam a fronteira terrestre para viver no estrangeiro. Foi, pois, uma revolução de princípios e conceitos, com imediato reflexo a nível dos direitos individuais.
A centralidade dada às questões da emigração revela-se, na cronologia das medidas políticas tomadas nesta área, antes de mais, pela criação, logo em 1974, de uma Secretaria de Estado da Emigração. A nova Secretaria integrava os serviços preexistentes do Secretariado Nacional da Emigração, a partir dos quais se haviam planificado e executado, nas vésperas da Revolução, as primeiras medidas de apoio social e cultural às comunidades do estrangeiro, sobretudo na Europa. Todavia, é com o novo regime que essas políticas embrionárias se vão desenvolver, nomeadamente no que respeita à representação política, à aceitação da dupla nacionalidade, à defesa activa dos direitos dos portugueses, à atenção dada ao associativismo, ao ensino da língua, à informação (alguns anos mais tarde, potenciada com as emissões da RTPI, um privilegiado instrumento ainda hoje subaproveitado), ao apoio ao regresso voluntário ao País, através de um conjunto de benefícios fiscais e de empréstimos a juros bonificados. para aquisição de casa própria ou para lançar empreendimentos - medidas cuja eficácia se viria a comprovar nos anos seguintes. A reinserção de centenas de milhares de portugueses, vindos, sobretudo, de França e de outros países do nosso continente, foi de tal modo por eles planeada neste contexto, que se consumou numa infinidade de regressos "invisíveis”.
Estou já a pensar na década seguinte, antecipando avanços conseguidos: a revolução significou, no imediato, a vontade de consolidar um “estatuto dos expatriados”, mas só depois este foi sendo materializado, em novas configurações de direitos, e em práticas, a um ritmo lento, que é o ritmo a que mudamos preconceitos e mentalidades. Há ainda muito por fazer para uma "cidadania de iguais", fora das fronteiras geográficas, isto é, para corporizar o projecto de representação política e de igualdade de direitos no campo social e cultural, erradicando, de vez, o "paradigma territorialista" dominante até 1974. Até então, a ausência no estrangeiro implicava a perda de todos os direitos políticos e da própria nacionalidade (se os portugueses voluntariamente adoptassem a de outro país e, no caso das mulheres, mesmo contra sua vontade, automaticamente, pelo casamento com estrangeiros) e\ de outros direitos, como o do acesso ao ensino da língua, de que o Estado nacional não curava - as primeiras políticas de intervenção, em meados do século XX, limitavam-se ao acompanhamento da viagem atá ao ponto de chegada, onde os emigrantes ficavam entregues a si próprios. Foi a dinâmica do associativismo, que, nos países de acolhimento, soube, quase sempre e por todo o lado, substituir-se ao Estado.
O trânsito para o" paradigma personalista", na definição de Bacelar de Gouveia, ir-se-á concretizando num estatuto de direitos de cidadania à medida da Nação e não só da terra portuguesa.
Um novo Direito, um "acquis" da Democracia.
O nº 1 do art. 46º da Constituição de 1976 estabelece que : "Todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos políticos do país, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos". Pela primeira vez, os portugueses emigrados são eleitores de representantes na Assembleia da República, mas não ainda com um “voto igual”. De facto, o nº 2 do art. 152º, restringe a aplicação do sistema proporcional aos círculos territoriais e o regime de exceção vai servir para impor, na lei eleitoral, um teto de apenas quatro representantes em dois círculos próprios da emigração, europeia e transoceânica, com menos de 2% do total dos membros da Assembleia, para uma população que se estima em 30% - embora se deva reconhecer que são muito menos de 30% os potenciais recenseados no estrangeiro.
Nos outros actos eleitorais, a Constituição de 1976 exigia a residência no território nacional (art. 124 para o PR) ou na área territorial da autarquia (art. 246º nº1 para as freguesias e art. 252º para os municípios). No que respeita às regiões autónomas, não há dispositivo semelhante, mas a questão não foi equacionada nos respectivos estatutos político administrativos.
O sufrágio na eleição presidencial viria a ser alcançado, entre públicas controvérsias e difíceis negociações inter partidárias, na revisão Constitucional de 1997, com as exigências formuladas no nº2 do art. 121: "A lei regula o exercício do direito de voto dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, devendo ter em conta a existência de laços de efectiva ligação à comunidade nacional".
Mais restritivo é ainda o nº 2 do artº 115, que prevê a sua participação nos "referenda" apenas "quando recaiam sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito". Nos referendos já realizados os emigrantes não foram consultados, por terem sido vencidas as propostas que lhes davam esse direito.
Não poderei alongar-me, aqui, sobre as vicissitudes de processos de legiferação, em que fui interveniente, ao longo de mais de 20 anos, sempre em favor do alargamento do estatuto político dos expatriados, a nível nacional, autonómico e autárquico, com base em exemplos do direito comparado - como o de Espanha que atribui aos seus expatriados o direito de voto a todos os níveis. Direi, apenas, em síntese que, a meu ver, entre nós, os partidos atuaram, regra geral, de acordo com as suas subjectivas expectativas sobre o sentido de voto dos emigrantes. Os que se consideravam por ele prejudicados desenhavam o cenário fatal de uma enorme expansão do eleitorado da diáspora, artificialmente engendrada pelos prosélitos do sufrágio. Ao fim de 40 anos de experiência democrática já não restam dúvidas sobre o irrealismo dos receios: no estrangeiro o universo eleitoral é reduzido e estável, com cerca de 260.000 recenseados e cada vez maiores taxas de abstenção. Na Espanha, só a Galiza tem muito mais eleitores do estrangeiro e, sobretudo, muito mais votantes.
Creio que o clamor sobre a anunciada avalanche de votos "de fora", que, redobrou a partir da aprovação da Lei nº 73/8, popularmente chamada "lei da dupla nacionalidade", se ficou a dever a confusão entre emigrantes recentes - os que, tendo passaporte português, podem recensear-se voluntariamente e, em larga maioria, note-se, não o fazem - e os da Diáspora, cuja ligação ao País passa por laços afectivos e pela intervenção cultural, não pela política. A meu ver, há que deixar aos próprios emigrantes e seus descendentes a escolha da forma de manifestação dos seus sentimentos de pertença, não sendo, pois, legitimo nem desvalorizar nem pretender retirar à minoria de participantes na vida política os seus direitos inalienáveis, em nome de uma maioria que se reconhece em outras formas de "ser português".
Um organismo criado na confluência destas diferentes vertentes de afirmação de pertença foi o Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), nos moldes originalmente propostos pelo DL nº 373/80. Nele tinham assento representantes eleitos das associações, independentemente de serem ou não de nacionalidade portuguesa. Era uma órgão consultivo do Governo, presidido pelo MNE, uma plataforma de encontro e articulação de acções entre comunidades dispersas e praticamente desconhecidas entre si, e de co-participação nas políticas destinadas a um mundo tão plural. Um órgão de consulta pensado para as duas vertentes, para a emigração antiga, com a força das suas aspirações e projectos culturais, e para a mais jovem, com a pressão dos seus problemas e reivindicações sociais. Nem sempre foi fácil o diálogo entre ambas e teria sido talvez preferível, como continua a propugnar Adriano Moreira, a instituição de estruturas específicas para cada uma delas.
No CCP, a última acabou por ter mais visibilidade e mais voz, deixando na sombra os consensos naturais no domínio cultural - que é sempre, por excelência, o lugar de uma solidária partilha das raízes matriciais - e focando, essencialmente, as questões laborais, sociais e políticas do quotidiano, as divergências ideológicas e partidárias, que, fora como dentro do país, se confrontavam na sociedade portuguesa. Foi, assim, o espaço de uma esplêndida vivência democrática, que, porém, desde a primeira hora, marcou o Conselho com uma imagem de conflitualidade mais do que de cooperação e solidariedade, que, por sinal, existiram em muitas matérias. Terá sido essa aparência mediática que, a partir de 1988, levou o governo a suspender as suas convocatórias, a silencia-lo, antes de o substituir por uma estrutura insólita, composta de múltiplos colégios eleitorais, que era patentemente inoperacional.
Em 1997, o CCP ressurgiu em novo figurino, passando a ser eleito por sufrágio directo e universal, ou seja, reservado a emigrantes com nacionalidade portuguesa.
O Conselho teve, assim, várias vidas entrecortadas, um percurso acidentado, em cuja fase inicial pude intervir mais diretamente, como membro do governo, em representação do MNE. Depois, por inerência de funções, como deputada do círculo de “Fora da Europa”, continuei a colaborar nos trabalhos de conjunto, acreditando sempre na sua capacidade de ser o grande "forum" democrático da emigração. Uma espécie de 2ª Câmara consultiva, uma "assembleia" - título que passou a assumir, ultimamente, o antigo "Conséil" francês. Uma instituição que deveria ser consagrada na arquitectura da Constituição, para ficar ao abrigo do poder discricionário dos governos. O tema foi discutido na AR, em 2004, por iniciativa da Sub comissão das Comunidades Portuguesas, a que eu, então, presidia . A ideia persiste, foi ali analisada construtivamente por eminentes constitucionalistas e pode vir a ser lei, um dia, não sabemos se e quando...
No domínio das políticas da emigração e da diáspora avança-se a par e passo. Falar de uma e outra, em conjunto, não significa esquecer que há uma gradação no conhecimento e reconhecimento público, que subvaloriza a realidade da diáspora face à da emigração do presente. Os movimentos migratórios sempre foram vistos, e ainda o são, numa perspectiva principalmente economicista. - envio das remessas, investimentos e benfeitorias locais, o chamado "comércio étnico", tudo o que é materialmente palpável - desvalorizando outros aspectos, como o esforço para expandir o espaço cultural português na densa rede de instituições, de que são feitas as comunidades portuguesas. Na ligação entre movimentos migratórios e diáspora, aqueles surgem como causa (ou concausa) e esta como sua dimanação, graças à enorme propensão associativa, com que nos temos singularizado, em todos os tempos e lugares. Comunidades organizadas, espaços de vivência nacional...
Sabemos que a revolução de 74 veio derrubar uma ditadura, pôr fim ao impasse de uma guerra sem sentido e sem futuro, fechar um ciclo colonial e repor o Estado nas suas fronteiras geográficas europeias. Não veio, antes pelo contrário, pôs fim a essa presença universal dos portugueses, que sempre teve "vida própria" numa espontânea convivialidade, em relações de vizinhança e de cooperação, à margem dos desígnios ou poderes do Estado.
É certo que a nossa tradição migratória começou o seu curso ligado ao projecto do Estado de expansão marítima e de colonização de possessões, mas logo o transcendeu. Um projeto estatal aparentemente desmesurado e para o qual não havia paradigma, não havia lições a aprender... Era enorme o risco de perder o certo pelo incerto, mas nunca faltou gente para servir a incerteza da aventura, indo cada vez mais longe, dominando um todo geográfico cada vez mais vasto, a partir de uma população de somente cerca de um milhão pessoas. Logo no século XVI, o movimento envolve quase um terço da população total – mais de 280.00 homens, segundo Vitorino Magalhães Godinho. Uma impressionante média anual, que sobe no século seguinte para cerca de 8.000, no século XVIII para 40.000 e atinge novos máximos nos séculos XIX e XX. Estamos a falar, globalmente, de números na ordem de milhões. E as partidas assumiam, como disse, cada vez mais, o carácter de aventura individual, privilegiando o imenso Brasil. As políticas que procuravam regular os fluxos migratórios iam inevitavelmente no sentido de os restringir, ou mesmo de os proibir. Movimentos incessantes, uma autêntica cultura de expatriação...
Talvez por isso os historiadores da emigração portuguesa (Joel Serrão, por exemplo) não resistam a olhar as partidas ininterruptas de 500 anos e não apenas de 150 ou 200 anos de migrações, em sentido estrito. De facto, não se consegue traçar, com precisão, os contornos da passagem de um ao outro dos fenómenos – o último a suscitar maior confronto entre vontade do Estado e a do povo, entre uma emigração que os governos não pretendiam naquela dimensão, ou para aquelas paragens. Ou que queriam apenas temporária, mas que os protagonistas converteram em definitiva, sobretudo quando se generalizou a saída de mulheres, de famílias inteiras. O regresso definitivo era a parcela menor e não aumentou após a independência do Brasil, que continuou a atrair vagas (crescentes...) de portugueses.
As duas grandes migrações de retorno aconteceram só na segunda metade do século XX: a da Europa, voluntária, bem preparada, gradual, ano após ano, atingindo o auge nas décadas de oitenta e noventa - e a de Africa, no curto período da descolonização, súbita e dramática, com cerca de 800.000 retornados a Portugal e muitas dezenas de milhares a reemigrar. O Brasil foi, então, único país que abriu as fronteiras a todos os portugueses, sem olhar a idade, formação profissional, saúde ou fortuna. Um gesto de fraternidade muito concreto, a não esquecer!
O retorno de África vinha em contra corrente, depois da maior emigração de sempre, que fora a dos anos cinquenta e sessenta, apenas estancada, em setenta, pela crise económica mundial. Saíram então quase 2 milhões (para a Europa mais de 1.200.000, para novos destinos transoceânicos, como a Venezuela, Canadá, RAS, Austrália, mais de 500.000). A chegada, em 74/75, de quase um 1.000.000 de portugueses parecia uma situação impossível de gerir. Não foi. Fica para a nossa história e para exemplo geral, o modo como superaram perdas e mágoas inenarráveis, encontraram lugar no país e contribuíram para o seu desenvolvimento. Sucesso assente em políticas de integração, na solidariedade familiar, mas principalmente nas próprias pessoas, no seu perfil empreendedor, na sua vontade de recomeçar a vida, num meio tão diferente, relativamente tão pequeno. Impressionante foi a sua aceitação local, o seu ascendente, revelado no número dos que foram eleitos para cargos autárquicos, logo nas primeiras eleições livres. Um tema a merecer mais estudo e mais destaque do que o que lhe tem sido dado.
É sobre as causas sociais e económicas da emigração portuguesa que as atenções se têm concentrado. Há as estatísticas das partidas dos homens, a que se juntam as do retorno das remessas. Por trás dessa densa cortina de números, mal se adivinhavam outros feitos, outras verdades. A Diáspora era praticamente ignorada, não só pelos políticos, como pelos tratadistas e investigadores da nossa emigração. Até à convocação dos Congressos das Comunidades de Cultura Portuguesa, em 1964 e 1967, por iniciativa de Adriano Moreira, presidente da Sociedade de Geografia, ninguém dedicara mais do que uns breves parágrafos à existência de comunidades portuguesas, organizadas numa base institucional, que lhes garantia a sobrevivência, para além das primeiras gerações de imigrantes (coisa que ninguém imaginara possível).
Ora, de facto, tudo o que políticos e académicos viam como compensação de um êxodo de tamanha dimensão - as riquezas do comércio, da exploração de recursos de vastas possessões, e, em cada época, as remessas de emigrantes, tiveram o seu tempo e com ele se desvaneceram. O que resiste é a parte que escapou à perceção de todos - a criação pelos Portugueses de um incomensurável espaço de lusofonia e de lusofilia, a língua, as comunidades portuguesas, e para além delas, um mundo de memórias que hibernam, à espera de uma chamada, de uma aproximação, para ressurgir. Citando Jorge de Sena :“solúvel e insolúvel este povo, na memória dos outros e na sua própria”.
Serão estas as maiores das retribuições de um êxodo excessivo - a virtude do excesso…
Em primeiro lugar, a língua. A língua, viva em todos os continentes, é muito mais o resultado desta expatriação voluntária, em massa, e do relacionamento quotidiano entre os portugueses e os seus vizinhos de outras falas, do que do poder soberano exercido num território. O uso da língua não se decreta sem falantes!
Veja-se o caso paradigmático do Brasil, para onde foram tantos portugueses, contrariando leis e ditames dos governos, que procuravam canalizar essa corrente migratória para as colónias de África (onde, aliás, nem sequer estavam criadas as condições efetivas para o seu aproveitamento). Medidas polémicas, contra as quais se insurgiram os que viam nas novas correntes migratórias condição necessária para preservar a herança linguística e afetiva num Brasil independente, aberto ao acolhimento de outros europeus. Afonso Costa foi um dos que tomou partido, claramente: "Não cometamos o crime de lesa pátria de embaraçar a emigração para o Brasil ou de ali nos deixarmos vencer por qualquer outro povo migrante".
Em causa via, certamente, a língua, sobre a qual Joaquim Nabuco, discursando no Gabinete de Leitura do Rio de Janeiro, no 4º centenário de Camões havia proclamado:
“A tua glória não precisa mais dos homens. Portugal pode desaparecer, dentro de séculos, submergido pela vaga europeia, ela terá em 100 milhões de brasileiros a mesma vibração luminosa e sonora ” (100 milhões então, mais de 200 milhões agora!).
António Cândido, no 4º centenário da Descoberta do Brasil, celebrado a 19 de Maio, no Teatro de São João, do Porto, enunciara, por outras palavras, a mesma ideia - força: “Temos uma longa vida nacional. Não nos escasseiam meios de a nutrir, não nos falece a coragem para a defender. Mas, se, por fatalidade acabássemos, se (…) uma terrível catástrofe geológica submergisse esta parte do continente europeu (…) lá ficariam no Brasil para sempre, o seu sangue, a sua alma, a sua língua.
E, noutro passo: “Poderá a história ser esquecida, poderá o interesse volver-se contrário: resistirá a tudo a afinidade espiritual, a aliança pela língua será eterna.”
Língua europeia, americana, africana, asiática, universal. Legado de partilha de vida, de convivência de gente comum, que a força do poder imperial não contaminou…
Uma última referência às comunidades da emigração - comunidades inteiramente construídas pelos cidadãos, perante o absoluto descaso do Estado.
O fim do império coincide com a atenção dada às comunidades, antes apenas se podendo excecionar as realizações de Adriano Moreira, os dois grandes Congressos, dos quais emergiram a “União das Comunidades de Cultura Portuguesas" e a "Academia Internacional de Cultura Portuguesa".
Vitorino Magalhães Godinho afirmou numa celebração oficial do dia 10 de Junho: “Há um Portugal maior do que o Império que se fez e desfez e que é constituído pelos portugueses, onde quer que vivam”
Também Sá Carneiro vê um Portugal maior :“Foi uma Nação de colónias. Hoje não é apenas uma Nação territorial, é uma Nação populacional, uma Nação de povo (...)“uma Nação de Comunidades”. “É uma cultura, mais do que uma organização rígida”.
A existência da nossa Diáspora precedeu, assim, em vários séculos o seu conceito, o seu reconhecimento. Diáspora que soube organizar-se, para sobreviver, através de um poderoso impulso associativo. No Brasil, o primeiro e o máximo paradigma, com os Gabinetes de Leitura, os Liceus e os Grémios Literários, instituições muito prestigiadas, com as Beneficências e os seus hospitais, que estão entre os maiores e melhores do país, com grandes clubes sociais e desportivos. Por todo o lado onde se fixaram, os portugueses deram vida duradoura a organizações centradas naquelas três áreas (cultura, apoio social, tradições de convívio), associações idênticas nos seus propósitos, apesar de se ignorarem entre si. Semelhança que se deverá ao facto de se inspirarem em modelos da terra de origem.
Portugal, o país das migrações sem fim... Assistimos hoje a um dramático recomeço de ciclo , a exigir dos governos o cumprimento dos seus deveres constitucionais em políticas de defesa dos direitos dos emigrantes e de difusão da língua e da cultura.
O êxodo dispersa agora os portugueses por uma multiplicidade de países em todos os continentes, acentuando a que já era uma das características da nossa emigração.
Mais emigrantes, mais mulheres, esperança de mais diáspora futura, mais Portugal no mundo.

MM Aguiar

questionário

Bom dia, Senhora Dona Brigitte

Respondo com todo o gosto e tão sinteticamente quanto possível

1 - O êxodo atual, na dimensão assustadora que atinge tem patentemente origem na crise económica e nas políticas de austeridade, no desemprego, na total falta de esperança e de confiança dos portugueses no futuro do país - ao menos no imediato. Há quem saia por outras razões, como sempre houve, mas serão casos raros, sem significado especial

2 - Os números que conhecemos nestes últimos anos colocam estes fluxos acima da média dos anos 60 (embora fiquem ainda aquém dos registados a partir de 68, incluindo a emigração indocumentada, que chegou a superar a legal). Cito de memória estes dados antigos, para responder rapidamente.
A diferença é que agora os portugueses podem sair livremente e só não são mais a sair porque não encontram trabalho em outros países também em crise ou estagnação económica, sobretudo na Europa (enquanto em 60 e até 73 não lhes faltavam oportunidades, em França, sobretudo) , Tenho tomado conhecimento de casos
lamentáveis, em países da UE (e há certamente muitos mais de que não há conhecimento...)
Não há melhoria económica nem clima psicológico que justifique, a meu ver, uma diminuição destes números tremendos. De 2012 para 2013, as saídas aumentaram e vão, muito provavelmente, continuar em crescimento em 2014 e 2015...

3 - Nos anos 60 eram sobretudo portugueses das zonas rurais que migravam - ou para fora ou para o litoral. Trabalhadores pouco qualificados. Em 74 e 75 regressaram ao país vindos de África mais de 800.000 portugueses e encontraram o seu lugar na economia portuguesa, ajudando ao seu desenvolvimento num período em que quase cessara a emigração. Porquê? Julgo que por terem outro perfil, outra experiência de vida
Agora, desde a emigração não é apenas rural é geral. Não é apenas provocada pelas assimetrias internas, mas por uma crise nacional (e, na minha perspetiva, uma crise europeia, uma crise do euro, com o fosso norte/sul , que as medidas de austeridade e a moeda única acentuam dramaticamente).
A maioria doe emigrantes são temporários, maioritariamente homens com pouca qualificações académicas - ou seja, o perfil tradicional, Sendo uma emigração temporária é relativamente menos preocupante.
Mas há, pela 1ª vez, uma emigração nova, altamente qualificada, de mulheres e homens, cientistas, médicos, engenheiros, enfermeiros. Há a perceção de que muitos não voltarão mais. São uma perda irreparável... É, por um lado a compreensão deste fenómeno, da sua diferença, da sua crescente dimensão e, por outro lado, a sua absoluta novidade para nós (o brain drain) que lhe dá um lugar cimeiro, maior do que o que tem como parte da estatística global. São os médicos e enfermeiros recrutados em massa para UK, os engenheiros para a Alemanha, ou para Angola (Angola, um dos grandes polos de atração de quadros portugueses...

4 - Comparando com 60, hoje a dispersão é muito maior, tornando a emigração portuguesa um caso singular em termos europeus (os irlandeses emigram para os EUA, os espanhóis para a América Latina, etc, etc enquanto nós nos espalhamos por todos os continentes) Em 60 fala-se quase exclusivamente de "emigração para a Europa. Também isso não é exato... A maioria foi, de facto, para França (quase um milhão?),e, em muito menor número, para a RFA, Inglaterra, Lux e outros países da Europa. Mas também houve centenas de milhares que procuraram os chamados novos destinos transoceânicos, a partir de 50 (Canadá, Venezuela, África do Su,l Austrália...)
Havia correntes que se orientavam, de preferência, para junto de núcleos de portugueses. Hoje acredito que isso também aconteça, mas outros há que vão individualmente, para destinos como os Emiratos, o Equador. o Extremo Oriente...

Partem todos os que conseguem partir - em qualquer idade, com uma incidência grande nos jovens. Sempre foram sobretudo os jovens que emigraram.... Mas agora eles são os mais atingidos pelo desemprego - incluindo os mais altamente qualificados. Por isso, não têm alternativa...
1 - Retorno é um substantivo que tomou para nós, desde 1974, um
sentido particular, que o confina a uma determinada migração: a que se
seguiu ao fim das guerras de independência na Africa lusófona,
determinada pela força das circunstâncias, cheia de dramas individuais
dentro do drama coletivo da descolonização. Uma imensa vaga
migratória, única e irrepetível no quadro de séculos de expatriação,
em que o regresso a casa fazia parte do projeto inicial, mas não se
concretizava as mais das vezes. Não houve nunca efeito demográfico
comparável após a perda de outras colónias, no ocaso de outros
impérios portugueses - o do Oriente, que se desagregou, devagar, na
era Filipina, o do Brasil, para onde, depois da independência, os
fluxos de saída se mantiveram imparáveis, ou, em fins do século XX, o
fenómeno especialíssimo de Macau, território logo depois convertido
numa das "sedes" culturais e económicas da CPLP, a instituição cujo
alcance a China parece compreender melhor do que Portugal ou qualquer
outro Estado...
De tudo isto se falou num debate que a Associação de Estudos Mulher
Migrante promoveu, em parceria com a Câmara de Gaia, no Arquivo
Municipal Sophia de Mello Breyner, a 3 de julho. A iniciativa
integrou-se num ciclo de colóquios sobre a revolução de Abril e quatro
décadas de migrações portuguesas e teve como principal orador o Dr
Amândio de Azevedo, antigo Secretário de Estado para os Retornados a
partir de Janeiro de 1976, quando substituiu nessa pasta Vasco Graça
Moura..
Amândio de Azevedo, que começou a sua militância cívica nos anos 60,
no grupo de católicos portuenses ideologicamente próximos do Bispo do
Porto, viria a ser um dos "pais " da democracia nascente em 1974. Os
altos cargos que desempenhou ao longo de mais de 30 anos (entre
outros, Deputado da Constituinte, Vice Presidente da AR, Ministro,
Embaixador da CEE no Brasil), terão deixado na sombra essa primeira
missão governamental que durou um semestre, o tempo certo para pensar
e executar uma estratégia nova, que mudou o destino de dezenas e
dezenas de milhares de famílias e o ritmo de desenvolvimento de muitas
terras, sobretudo em zonas do interior, contrariando o que seria
expectável em período de tão grande turbulência e incerteza. O seu
mandato breve foi o momento de viragem de uma política generosa, mas
puramente assistencialista e centrada em Lisboa, para uma dinâmica de
inclusão social e económica, pela criação de oportunidades de
empreendimento e emprego nas diversas regiões do país

.Diz-se que o modelo português de integração de quase um milhão de
pessoas, que nada traziam consigo, para além da sua vida para viver, é
exemplar. E, de facto, é-o, a nível europeu e universal. Uma boa razão
para analisar a forma como foi implementado…
2 -– O modo como os governos se moveram face à grande vaga do
retorno , mesmo no quadro das comemorações do 25 de Abril não tem, a
meu ver, tido a centralidade que justifica.

A primeira observação: independentemente das críticas que possam
fazer-se à descolonização, - que é neste domínio o aspeto mais vezes
abordado - há que reconhecer o empenho dos executivos, que se
sucediam, na tarefa ciclópica de acolher todos os nacionais que
chegavam em turbilhão, num vai-vém de pontes aéreas … Aqueles eram
tempos em que havia um capital de solidariedade humana, que hoje
parece andar perdido nos corredores do poder…
Nos primeiros meses de 1976 não se alterou a dominante solidária, mas
deu -se uma rápida e muito bem planeada transição para uma política de
mobilidade geográfica e motivação empresarial ou mais latamente
ocupacional Fora do campo de ação destas medidas estavam muitos com as
suas situações já resolvidas - funcionários públicos reintegrados
nos serviços do Estado e aqueles que se haviam espalhado pelo país,
encontrando, sem recorrer a apoios estatais, o seu caminho. Em Lisboa
concentravam-se, então, os outros, os sem emprego, os que ocupavam
quartos de hotéis e faziam as refeições quotidianas com vouchers para
restaurantes a cargo dos governos. Mês após mês. Um guetto dourado,
muitísimo dispendioso para o erário público – que nem por isso
deixava de ser um guetto…

O abandono deste esquema foi feito rapidamente, em diálogo com os
cidadãos, e com ganhos para eles e para o Estado

Terminou com a ocupação hoteleira, com um realojamento mais precário,
mas em condições dignas, em edifícios públicos (como antigos quartéis,
antigos sanatórios) ou em casas pré-fabricadas, como as que a Noruega
oferecera para o efeito.

Foi atribuído subsídio de desemprego, que cada um geria conforme
entendesse, em qualquer ponto do país. (Creio que a descentralização
da assistência, completada por ajudas das autarquias locais foi parte
fundamental do sucesso, tão glosado depois)... Foi, ao mesmo tempo,
criado um Fundo financeiro, inicialmente composto por um donativo de
um milhão de contos do governo dos EUA, destinado a constituir o
“capital próprio”, com que estes portugueses se podiam candidatar a
empréstimos bancários para projetos de investimento.
Foram inúmeros os que resultaram. Souberam, na sua maioria, viver a
viragem das políticas. Saíram do guetto, da situação de dependência:
Um retorno dentro do
retorno…O primeiro foi um mero exílio, o segundo uma escolha livre e
cidadã de pertença, de participação, de retoma do lugar que era seu em
Portugal
1 - O movimento feminista português, e o seu paradigma de intervenção cívica pela via do "congressismo", tem sido, no âmbito das iniciativas da AEMM, por várias vezes, alvo de especial atenção. O mesmo se pode dizer do
associativismo feminino nas comunidades da emigração. Todavia o obetivo principal de tais reflexões não foi o de avaliar a projeção do feminismo português na nossa diáspora, o maior ou menor relacionamento entre diferentes formas de organização para a defesa dos direitos e interesses das mulheres dentro e fora do país, e as
suas similitudes e diferenças. Propomos esta abordagem, numa visão comparatista de realidades não necessariamente coincidentes no tempo,na procura dos traços persistentes da ação das mulheres portuguesas,
em diversas épocas e espaços geográficos.
Sabemos que o movimento feminista e republicano do começo de novecentos não teve um impacto direto e imediato nas comunidades do estrangeiro, nem mesmo generalizadamente nas colónias de África e do Oriente - embora em algumas cidades, caso de Luanda, haja registo de atividades da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas.
Julgo que as singularidades daquele movimento, de que falaremos, sempre o tornariam irrepetivel no estrangeiro. E, como é evidente, não se poderia esperar uma aproximação entre portuguesas separadas não só pela distância, como pelas condições de luta cívica e política, quando praticamente não existia conhecimento das formas de organização das comunidades, sendo esta, aliás um mundo masculino fechado - mais fechado do que o própria sociedade portuguesa .

2 - O movimento feminista surgiu tardiamente em Portugal, nas vésperas da revolução republicana, embora as suas raízes se possam encontrar em muitas e notáveis precursoras de oitocentos - senhoras de grande cultura, que se afirmavam em salões literários, nas suas próprias casas, ou na escrita, nas artes plásticas, no jornalismo... Ou seja, no que de algum modo poderemos considerar o "espaço privado", ou círculos restritos de vanguardismo, à margem do pensamento comum, do "mainstream" (vd Ana Costa Lopes).
O que é inteiramente novo no início de novecentos é precisamente a travessia da fronteira entre o espaço privado e o público. O movimento feminista nasce da invasão de um domínio proibido, e surge de forma súbita e , fruto de uma aliança, que o singulariza face a todos os outras na Europa, entre homens políticos republicanos e mulheres igualmente republicanas e feministas.
É um fenómeno fundamentalmente urbano, envolvendo uma elite cultural e uma mesma família ideológica Desenvolve-se num especial contexto social e cívico, que é o da luta aberta ou clandestina pela mudança de
regime, portadora de esperanças de grandes transformações - de igualdade para todos, sem excluir o sexo feminino. Curiosamente, e ao invés do que aconteceu nos outros países, por todo o lado, a institucionalização do movimento ficou a dever-se a uma solicitação dos líderes do PR no sentido de criarem a que viria a ser da Liga das Mulheres, em 1908. Uma histórica reunião entre Magalhães Lima, Bernardino Machado, António José de Almeida e um restrito núcleo de republicanas (ficando por averiguar o papel de bastidores que teria sido o de Elzira Machado, a mulher de Bernardino, uma indefetível sufragista, cujo nome rem sido injustamente esquecido entre as líderes mais importantes ). No ano seguinte, a "Liga", presidida por Ana de Castro Osório, seria formalmente integrada nas estruturas do PR..
Se a ligação familiar é um factor da maior importância no abrir da cena política a mulheres ´cuja luta vinha de trás, isso é ainda mais evidente na organização que a "Liga" vai impulsionando de norte a sul do país, entre as recém-chegadas à militância. É dentro das famílias dos republicanos que elas surgem, apoiadas e incentivadas e revelam as suas capacidades até então contidas no interior dos lares. São as mulheres, as irmãs, as filhas dos líderes locais. É uma constante ver os mesmos apelidos, que são as dos chefes políticos locais, nas listas da direção dos núcleos da Liga, ou em atividades relevantes, como secretariar comícios e reuniões públicas, ou mesmo tomar a palavra nessas sessões de propaganda. A preciosa informação recolhida por Fina d' Armada na sua publicação sobre "Republicanas quase desconhecidas" não deixa margem para dúvidas. Entre incontáveis exemplos, cito os
de Maria Clementina de Moura Portugal e das suas três filhas, Maia Adelaide, Maria josé e An´tonia (de Moura Portugal). No seu solar da Beira interior, acolheram escolas para meninas, reuniões republicanas e até um memorável banquete a homenagem a Afonso Costa. Outro caso, entre centenas, é o das três irmãs de Èvora, Ana Laura, Cristina e Maria Chaveiro Calhau Aos 16 anos, Ana tornou-se, em 1908, a primeira mulher do sul do país a falar num comício - entusiasticamente aplaudida, como sempre foram todas as que ousaram a exposição pública em manifestações republicanas. No centro do país, em Cantanhede poderemos lembrar as feministas da família Cortesão, que constam da lista de cidadãos que assinaram a ata da proclamação da República nessa vila:
Maria Ester, presidente do núcleo da "Liga", irmã de Jaime Cortesão e Maria Cortesão Paes, também dirigente da "Liga", que casou com o ativista republicano Avelino de Faria e foi a mãe do cientista António Lima de Faria...
Raro é encontrar, dentro do movimento feminista desta época, mulheres que estejam contra a tradição da família ou que sejam monárquicas convictas. Mas há alguns raros exemplos, como Olga Moraes Sarmento, amiga e admiradora da Rainha Dona Amélia.. Assim como há as que se envolveram no movimento sem apoios de um clã de parentes, como Maria Veleda. Mas até nas principais líderes sufragistas - Ana de Castro Osório, Adelaide Cabete, Elzira Machado - encontrámos em regra, a sue lado, um companheiro e correlegionário .
Esta constatação em nada diminui os feitos das mulheres, nem a independência e originalidade do seu pensamento - elas, não eles, foram as grandes teorizadoras do feminismo e as grandes protagonistas
da sua defesa concreta dos seus princípios, mas sem duvida, na fase inicial, a parceria de líderes partidários contribuiu poderosamente para as projetar nos palcos da política, que, até então, lhes estavam vedados e
permitiu reforçar a consciência da importância da luta das mulheres como parte de um todo, de um universo, em que queriam ser iguais, solidariamente. Uma consciência muito clara de que a libertação das mulheres é também a libertação dos homens, e que por isso,devem unir-se contra o obscurantismo, contra as ideologias e os regimes que lhes negam a sua dignidade - e não confrontar-se numa guerra de géneros. Mulheres e homens devem ser feministas - o feminismo assim entendido, é, pura e simplesmente, um humanismo.
Uma das caraterísticas do feminismo português é a sua moderação, a sua ausência de radicalismo. Um feminismo muito feminino, em que todas assumem o seu papel específico de mães, de esposas. Não querem disputar o lugar
dos homens, querem reclamar o seu, num estatuto de deveres e direitos da cidadania. Anima-as uma ideia
que é verdadeiramente moderna no seu tempo, e até no nosso, - a da paridade, da igualdade na diferença. Não querem imitar os homens, querem impor - se com a sua maneira de ser, de agir e de influir nos destinos comuns.
O relacionamento entre géneros começa por ser, neste movimento, de respeito mútuo e de cumplicidade -até porque são a regra os casos em que às afinidades ideológicas se juntam os laços de família. O apoio de maridos, pais, irmãos é comum. A causa do feminismo é uma das vertentes da transformação societal que o republicanismo anuncia.
Uma outra marca que distingue o sufragismo em Portuga, para além da recusa do radicalismo e de qualquer forma
de violência, é não ser propriamente um fenómeno de massas, embora de Lisboa se tenha estendido a todo o país. Fica, porém, limitado a grupos de mulheres instruídas, de classes médias ou de alta burguesia. Muitas são as que se impõem pelo elevado nível intelectual - doutrinadoras, jornalistas, escritoras, profissionais que abrem caminho em especializações até então vedadas ao sexo feminino.
As preocupações sociais, a luta contra todas as injustiças que afetam a vida dos portugueses, nas quais se engloba a discriminação de género, é uma constante do seu pensamento.. Muito em especial o combate contra o analfabetismo e pela generalização do acesso ao ensino, em particular para as raparigas.
A República não trouxe consigo o admirável mundo novo que as feministas republicanas sonhavam, regido pela trilogia " liberdade,igualdade, fraternidade".
Rapidamente se tornou evidente que alguns avanços se iriam alcançar - nas leis de família, na educação feminina, na abertura ao trabalho profissional, ainda que não no grau e dimensão idealizados - mas que o sufrágio seria inviabilizado pela maioria dos líderes do PR...
Foi, por isso um tempo de desilusão e de cisões dentro do movimento, antes de mais entre as que eram mais republicanas do que feministas e aceitavam o passo que o regime impunha ao progresso nas questões de
género e as que eram mais feministas do que republicanas e manifestavam abertamente o seu inconformismo, abandonado a Liga e o PR

3 - A revolução, preparada num ambiente tenso de conspiração, nos bastidores, mas também à luz do dia, no combate cívico pelo acesso ao ensino e à justiça social, à modernidade, centra-se muito no país, na capital e,
por isso, não tem, como regra, ramificações nas comunidades da diáspora.
Embora no período que se seguiu à revolução, nos anos de 2012/13, o êxodo migratório fosse o maior de sempre, e levasse para fora uma proporção crescente de mulheres (Emygdio da Silva, eminente professor e especialista destas matérias fala de "emigração delirante") não alterou este panorama. Era uma emigração de massas, fugindo à pobreza do mundo rural, do que um exílio de aristocratas, fugindo aos ditames do novo regime... Não quero com isto dizer que a revolução não teve eco e não despertou contraditórias reações no interior das comunidades das Américas, destino largamente preponderante dos que abandonavam o País. A conflitualidade entre monárquicos e republicanos existiu e refletiu-se, em certa medida, transitoriamente, no associativismo, mas não no que em particular concerne a parte feminina. Antes de mais, porque eram raras as organizações de mulheres, assim como a sua presença em centros culturais, clubes, beneficências. Todas estas associações, quaisquer que fossem os seus fins, as discriminavam abertamente. As respetivas lideranças, notáveis a muitos títulos, não se distinguiram nunca pela tomada de consciência dos direitos do outro sexo e pela defesa da sua participação igualitária. Não houve, que se saiba, nessa época, de norte a sul do continente americano, nenhum verdadeiro "feminista" à maneira de Magalhães Lima ou de António José de Alemida, mesmo entre os que partilhavam o ideal republicano.
E também não houve ativistas como Ana de Castro Osório ou Adelaide Cabete (para citar duas das líderes feministas, que temporariamente viveram noutros continentes - Ana no Brasil, Adelaide em Angola - mas que apesar do seu proselitismo constante, não deixaram aí marcas históricas).
Uma primeira diferença entre o associativismo feminino, dentro e fora do País, foi, sem dúvida, a componente política - absolutamente ausente no único movimento feminino ( não declaradamente feminista) que foi contemporâneo do aparecimento das portuguesas na vida pública e da criação da Liga Portuguesa das Mulheres Republicanas: sociedades fraternais e mutualistas da Califórnia