agosto 27, 2015

1 - O movimento feminista português, e o seu paradigma de intervenção cívica pela via do "congressismo", tem sido, no âmbito das iniciativas da AEMM, por várias vezes, alvo de especial atenção. O mesmo se pode dizer do
associativismo feminino nas comunidades da emigração. Todavia o obetivo principal de tais reflexões não foi o de avaliar a projeção do feminismo português na nossa diáspora, o maior ou menor relacionamento entre diferentes formas de organização para a defesa dos direitos e interesses das mulheres dentro e fora do país, e as
suas similitudes e diferenças. Propomos esta abordagem, numa visão comparatista de realidades não necessariamente coincidentes no tempo,na procura dos traços persistentes da ação das mulheres portuguesas,
em diversas épocas e espaços geográficos.
Sabemos que o movimento feminista e republicano do começo de novecentos não teve um impacto direto e imediato nas comunidades do estrangeiro, nem mesmo generalizadamente nas colónias de África e do Oriente - embora em algumas cidades, caso de Luanda, haja registo de atividades da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas.
Julgo que as singularidades daquele movimento, de que falaremos, sempre o tornariam irrepetivel no estrangeiro. E, como é evidente, não se poderia esperar uma aproximação entre portuguesas separadas não só pela distância, como pelas condições de luta cívica e política, quando praticamente não existia conhecimento das formas de organização das comunidades, sendo esta, aliás um mundo masculino fechado - mais fechado do que o própria sociedade portuguesa .

2 - O movimento feminista surgiu tardiamente em Portugal, nas vésperas da revolução republicana, embora as suas raízes se possam encontrar em muitas e notáveis precursoras de oitocentos - senhoras de grande cultura, que se afirmavam em salões literários, nas suas próprias casas, ou na escrita, nas artes plásticas, no jornalismo... Ou seja, no que de algum modo poderemos considerar o "espaço privado", ou círculos restritos de vanguardismo, à margem do pensamento comum, do "mainstream" (vd Ana Costa Lopes).
O que é inteiramente novo no início de novecentos é precisamente a travessia da fronteira entre o espaço privado e o público. O movimento feminista nasce da invasão de um domínio proibido, e surge de forma súbita e , fruto de uma aliança, que o singulariza face a todos os outras na Europa, entre homens políticos republicanos e mulheres igualmente republicanas e feministas.
É um fenómeno fundamentalmente urbano, envolvendo uma elite cultural e uma mesma família ideológica Desenvolve-se num especial contexto social e cívico, que é o da luta aberta ou clandestina pela mudança de
regime, portadora de esperanças de grandes transformações - de igualdade para todos, sem excluir o sexo feminino. Curiosamente, e ao invés do que aconteceu nos outros países, por todo o lado, a institucionalização do movimento ficou a dever-se a uma solicitação dos líderes do PR no sentido de criarem a que viria a ser da Liga das Mulheres, em 1908. Uma histórica reunião entre Magalhães Lima, Bernardino Machado, António José de Almeida e um restrito núcleo de republicanas (ficando por averiguar o papel de bastidores que teria sido o de Elzira Machado, a mulher de Bernardino, uma indefetível sufragista, cujo nome rem sido injustamente esquecido entre as líderes mais importantes ). No ano seguinte, a "Liga", presidida por Ana de Castro Osório, seria formalmente integrada nas estruturas do PR..
Se a ligação familiar é um factor da maior importância no abrir da cena política a mulheres ´cuja luta vinha de trás, isso é ainda mais evidente na organização que a "Liga" vai impulsionando de norte a sul do país, entre as recém-chegadas à militância. É dentro das famílias dos republicanos que elas surgem, apoiadas e incentivadas e revelam as suas capacidades até então contidas no interior dos lares. São as mulheres, as irmãs, as filhas dos líderes locais. É uma constante ver os mesmos apelidos, que são as dos chefes políticos locais, nas listas da direção dos núcleos da Liga, ou em atividades relevantes, como secretariar comícios e reuniões públicas, ou mesmo tomar a palavra nessas sessões de propaganda. A preciosa informação recolhida por Fina d' Armada na sua publicação sobre "Republicanas quase desconhecidas" não deixa margem para dúvidas. Entre incontáveis exemplos, cito os
de Maria Clementina de Moura Portugal e das suas três filhas, Maia Adelaide, Maria josé e An´tonia (de Moura Portugal). No seu solar da Beira interior, acolheram escolas para meninas, reuniões republicanas e até um memorável banquete a homenagem a Afonso Costa. Outro caso, entre centenas, é o das três irmãs de Èvora, Ana Laura, Cristina e Maria Chaveiro Calhau Aos 16 anos, Ana tornou-se, em 1908, a primeira mulher do sul do país a falar num comício - entusiasticamente aplaudida, como sempre foram todas as que ousaram a exposição pública em manifestações republicanas. No centro do país, em Cantanhede poderemos lembrar as feministas da família Cortesão, que constam da lista de cidadãos que assinaram a ata da proclamação da República nessa vila:
Maria Ester, presidente do núcleo da "Liga", irmã de Jaime Cortesão e Maria Cortesão Paes, também dirigente da "Liga", que casou com o ativista republicano Avelino de Faria e foi a mãe do cientista António Lima de Faria...
Raro é encontrar, dentro do movimento feminista desta época, mulheres que estejam contra a tradição da família ou que sejam monárquicas convictas. Mas há alguns raros exemplos, como Olga Moraes Sarmento, amiga e admiradora da Rainha Dona Amélia.. Assim como há as que se envolveram no movimento sem apoios de um clã de parentes, como Maria Veleda. Mas até nas principais líderes sufragistas - Ana de Castro Osório, Adelaide Cabete, Elzira Machado - encontrámos em regra, a sue lado, um companheiro e correlegionário .
Esta constatação em nada diminui os feitos das mulheres, nem a independência e originalidade do seu pensamento - elas, não eles, foram as grandes teorizadoras do feminismo e as grandes protagonistas
da sua defesa concreta dos seus princípios, mas sem duvida, na fase inicial, a parceria de líderes partidários contribuiu poderosamente para as projetar nos palcos da política, que, até então, lhes estavam vedados e
permitiu reforçar a consciência da importância da luta das mulheres como parte de um todo, de um universo, em que queriam ser iguais, solidariamente. Uma consciência muito clara de que a libertação das mulheres é também a libertação dos homens, e que por isso,devem unir-se contra o obscurantismo, contra as ideologias e os regimes que lhes negam a sua dignidade - e não confrontar-se numa guerra de géneros. Mulheres e homens devem ser feministas - o feminismo assim entendido, é, pura e simplesmente, um humanismo.
Uma das caraterísticas do feminismo português é a sua moderação, a sua ausência de radicalismo. Um feminismo muito feminino, em que todas assumem o seu papel específico de mães, de esposas. Não querem disputar o lugar
dos homens, querem reclamar o seu, num estatuto de deveres e direitos da cidadania. Anima-as uma ideia
que é verdadeiramente moderna no seu tempo, e até no nosso, - a da paridade, da igualdade na diferença. Não querem imitar os homens, querem impor - se com a sua maneira de ser, de agir e de influir nos destinos comuns.
O relacionamento entre géneros começa por ser, neste movimento, de respeito mútuo e de cumplicidade -até porque são a regra os casos em que às afinidades ideológicas se juntam os laços de família. O apoio de maridos, pais, irmãos é comum. A causa do feminismo é uma das vertentes da transformação societal que o republicanismo anuncia.
Uma outra marca que distingue o sufragismo em Portuga, para além da recusa do radicalismo e de qualquer forma
de violência, é não ser propriamente um fenómeno de massas, embora de Lisboa se tenha estendido a todo o país. Fica, porém, limitado a grupos de mulheres instruídas, de classes médias ou de alta burguesia. Muitas são as que se impõem pelo elevado nível intelectual - doutrinadoras, jornalistas, escritoras, profissionais que abrem caminho em especializações até então vedadas ao sexo feminino.
As preocupações sociais, a luta contra todas as injustiças que afetam a vida dos portugueses, nas quais se engloba a discriminação de género, é uma constante do seu pensamento.. Muito em especial o combate contra o analfabetismo e pela generalização do acesso ao ensino, em particular para as raparigas.
A República não trouxe consigo o admirável mundo novo que as feministas republicanas sonhavam, regido pela trilogia " liberdade,igualdade, fraternidade".
Rapidamente se tornou evidente que alguns avanços se iriam alcançar - nas leis de família, na educação feminina, na abertura ao trabalho profissional, ainda que não no grau e dimensão idealizados - mas que o sufrágio seria inviabilizado pela maioria dos líderes do PR...
Foi, por isso um tempo de desilusão e de cisões dentro do movimento, antes de mais entre as que eram mais republicanas do que feministas e aceitavam o passo que o regime impunha ao progresso nas questões de
género e as que eram mais feministas do que republicanas e manifestavam abertamente o seu inconformismo, abandonado a Liga e o PR

3 - A revolução, preparada num ambiente tenso de conspiração, nos bastidores, mas também à luz do dia, no combate cívico pelo acesso ao ensino e à justiça social, à modernidade, centra-se muito no país, na capital e,
por isso, não tem, como regra, ramificações nas comunidades da diáspora.
Embora no período que se seguiu à revolução, nos anos de 2012/13, o êxodo migratório fosse o maior de sempre, e levasse para fora uma proporção crescente de mulheres (Emygdio da Silva, eminente professor e especialista destas matérias fala de "emigração delirante") não alterou este panorama. Era uma emigração de massas, fugindo à pobreza do mundo rural, do que um exílio de aristocratas, fugindo aos ditames do novo regime... Não quero com isto dizer que a revolução não teve eco e não despertou contraditórias reações no interior das comunidades das Américas, destino largamente preponderante dos que abandonavam o País. A conflitualidade entre monárquicos e republicanos existiu e refletiu-se, em certa medida, transitoriamente, no associativismo, mas não no que em particular concerne a parte feminina. Antes de mais, porque eram raras as organizações de mulheres, assim como a sua presença em centros culturais, clubes, beneficências. Todas estas associações, quaisquer que fossem os seus fins, as discriminavam abertamente. As respetivas lideranças, notáveis a muitos títulos, não se distinguiram nunca pela tomada de consciência dos direitos do outro sexo e pela defesa da sua participação igualitária. Não houve, que se saiba, nessa época, de norte a sul do continente americano, nenhum verdadeiro "feminista" à maneira de Magalhães Lima ou de António José de Alemida, mesmo entre os que partilhavam o ideal republicano.
E também não houve ativistas como Ana de Castro Osório ou Adelaide Cabete (para citar duas das líderes feministas, que temporariamente viveram noutros continentes - Ana no Brasil, Adelaide em Angola - mas que apesar do seu proselitismo constante, não deixaram aí marcas históricas).
Uma primeira diferença entre o associativismo feminino, dentro e fora do País, foi, sem dúvida, a componente política - absolutamente ausente no único movimento feminino ( não declaradamente feminista) que foi contemporâneo do aparecimento das portuguesas na vida pública e da criação da Liga Portuguesa das Mulheres Republicanas: sociedades fraternais e mutualistas da Califórnia

Sem comentários: