abril 29, 2019


 Grande entrevista - Maria Manuela Aguiar OBSERVA Magazine 2

Quem é Manuela Aguiar? Uma Senhora ainda recordada como exemplo de vida na notoriedade que conferiu à Diáspora portuguesa. Assumiu a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, no VII Governo Constitucional liderado por Pinto Balsemão, em 1981. Encontrava-se a assumir a pasta do Ministério dos negócios estrangeiros, André Gonçalves Pereira.
OM:  Muito agradecidos por nos conceder a honra desta entrevista

M A: Eu é que tenho de agradecer a possibilidade de partilhar com todos os leitores de Observa Magazine recordações de tempos e acontecimentos que vivi, há tantos anos!.

Assumi a SEECP, a convite do Dr Francisco Sá Carneiro, nos primeiros dias de janeiro de 1980. Era Ministro dos Negócios Estrangeiros o Prof Freitas do Amaral. Não os conhecia pessoalmente até esse dia, em que que reuni com eles, na Rua Gomes Teixeira, na altura em que preparavam a formação do VI Governo Constitucional. Conversámos como amigos de longa data, de um modo informal e descontraído. Foi o início de uma caminhada vertiginosa, em que Sá Carneiro impunha o ritmo e todos dávamos o máximo, num ambiente de coesão e de solidariedade, que nunca mais reencontrei na vida pública. Até 4 de dezembro, 1980 seria o meu melhor ano de sempre, até hoje!
 Intervir na política, não estava no meu horizonte. Sentia-me bem em trabalho de gabinete, como assessora do Provedor de Justiça. Antes tinha sido assistente de um Centro de Estudo Sociais e de várias Universidades. E fizera, em 1978/79, uma passagem por um breve governo de independentes presidido pelo Prof Mota Pinto - na pasta do Trabalho. Tinha quadrante ideológico - era "social-democrata à sueca" - mas não filiação partidária. Não fui pressionada a inscrever-me no partido, mas fi-lo, impulsivamente, devido à minha perfeita sintonia com as posições de Sá Carneiro . E com isso, me tornei a primeira mulher do PSD a ocupar um cargo governamental. Depois, acabei por perfazer o total de 5 governos, e por ficar na Assembleia da República quase duas décadas e na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa por cerca de 14 anos.

OM: Estando interessados em tentar escrever a história e as histórias desta importante e nobre função de quem assume uma secretaria que permite e fomenta o contacto com as comunidades portuguesas espalhadas pela Diáspora portuguesa, conte-nos qual o primeiro impacto com essa realidade.

M A - Foi, antes de mais, a verdadeira descoberta de um "outro Portugal", que os portugueses recriam no estrangeiro e que é largamente ignorado, dentro do País. Tive, a preocupação de fazer viagens em que circulava, de cidade em cidade, entre comunidades, com o objetivo de conseguir, mais depressa e melhor, uma perspetiva ampla do universo da emigração, estabelecendo comparações, e podendo transmitir experiências de umas para as outras. Queria estabelecer as singularidades e as constantes, no que respeitava a realizações, problemas  carências, para definição de prioridades, e procura de formas de articulação e parcerias viáveis,  .

 Na primeira visita, em 20 dias, corri os EUA e o Canadá, de costa a costa. Na segunda, o Brasil - da Amazónia, do Pará e de Pernambuco ao Rio Grande do Sul. E, depois, os muitos países onde está a nossa emigração. Como os programa de visitas se centravam nas associações, igrejas, escolas portuguesas, clubes, no pujante movimento associativo, quase não via as cidades, as paisagens circundantes, e voltava com a espantosa sensação de não ter saído da minha terra, apesar de ter feito tantos milhares de quilómetros. Era como se Portugal fosse imenso! E, de facto, é,  se olharmos a sua gente para al+em do seu território..

O M : o que mais a comoveu nesse contacto direto?

 M A: O genuíno portuguesismo das pessoas! A paixão por manter tudo o que consideravam identitário, que lhes permitia unirem-se e criarem espaços culturais de presença nacional, com os seus modos de estar, as suas tradições de convivialidade. Encantou-me, desde esses primeiros contactos, a hospitalidade com que era recebida, tanto em salas modestas, como em grandiosos salões, que pareciam  transplantados das várias regiões de Portugal, com o seu ambiente de tertúlia, a sua gastronomia, dança, música, celebrações religiosas... Ver isto com os meus próprios olhos foi uma revelação poderosa, inspiradora. Afinal, o que eles faziam pelo país era infinitamente mais do que o que País jamais fizera por eles, como exigiaJF Ken nedy. Assim pensei e, décadas depois, continuo a pensar.
 OM:   Como definiria um traço ou uma característica inerente (de todas as comunidades espalhadas por todos os continentes) à vontade/ necessidade de emigrar no período em que exerceu funções?
 MA: Julgo que mais a necessidade do que a vontade. O êxodo migratório do século XX deveu-se, sobretudo, à pobreza, ao desemprego, aos baixos salários. Foi, em percentagens muito elevadas, clandestino - sobretudo na segunda metade do século, quando de dirigiu, sobretudo para a Europa (a emigração "ilegal" passou a média de um terço, que vinha de épocas recuadas e chegou a ultrapassar os 50%). A melhoria das condições de vida dos que haviam partido contribuía enormemente para familiares e vizinhos verem na fuga para o estrangeiro a única solução de futuro. Como hoje, os que atravessam o mediterrâneo, arriscando a vida! A situação não é tão diferente como poderá parecer. É apenas ainda pior, mais difícil, porque, no pós guerra mundial, o ciclo de desenvolvimento económico permitia uma rápida legalização e integração. Os Portugueses, depois de um início difícil, ganharam, quase todos, a aposta na aventura da emigração. Eduardo Lourenço disse dos protagonistas do "salto", nas décadas de 50 e 60, que foram "uma geração de triunfadores". É uma citação que uso, muitas vezes, porque é, globalmente, verdadeira e, além disso, expressa a homenagem, que o país se esquece, tantas vezes, de lhes prestar. .
OM: Qual a faixa etária que emigrava? Quais as suas qualificações académicas e profissionais?
M A: Jovens do sexo masculino, pouco qualificados. Era esse o perfil da nossa emigração tradicional. Mas não a dos governos a que pertenci. Quando, a partir de 1974, as leis e a Constituição Portuguesas vieram, por fim, consagrar plenamente o direito à emigrar, os outros países fecharam as fronteiras, após a crise petrolífera.... Na década de oitenta, registámos os mais baixos números de saídas de todo o século XX. (e deste começo de Século XXI). Os países desenvolvidos praticamente só permitiam a entrada para reunificação familiar às mulheres e filhos dos trabalhadores. Falava-se, e bem, de "feminização da emigração". Foi, por sinal, um movimento da maior importância, porque quase todas as portuguesas conseguiram aceder ao mercado de trabalho, ganharam uma autonomia profissional, que não tinham nos meios rurais de onde provinham, e deram um impulso fundamental aos projetos migratórios, do ponto de vista económico (pois contribuíam com um segundo salário) e social, (porque se converteram, de facto, com inesperado êxito, em mediadoras da inserção do núcleo familiar). Estavam, maioritariamente, inseridas no setor dos serviços, com contactos mais próximos na sociedade local e isso deu-lhes a compreensão das suas especificidades, tal como da necessidade de proporcionarem aos filhos as vantagens da educação e formação, que eles não tinham. A emigração feminina influenciou, assim, decisivamente,a reconversão cultural e o sucesso económico dos projetos migratórios de 50 e 60. Na altura, ninguém o podia prever. Hoje essa avaliação está cientificamente demonstrada (vejam-se os trabalhos pioneiros da Profª Engrácia Leandro, na década de noventa, na região de Paris).

OM :  quais eram os países eleitos pelos portugueses para se emigrar?

MA: A Suiça foi, a partir de 80/81, uma exceção no panorama europeu. Nesses e nos anos seguintes, recrutou dezenas de milhares de trabalhadores portugueses ,maioritariamente, homens, para a agricultura, construção civil, a hotelaria... Novos destinos, que geraram expetativas, (depois não confirmadas), foram alguns países do sul do Mediterrâneo e do Médio Oriente. Os números nunca viriam a ser elevados e corresponderam a contratos bem remunerados, mas temporários.
Outra situação nova, com que me vi confrontada foi o enorme afluxo de regressos, em média 30.000 a 40.000 por ano. O retorno dramático dos portugueses de Angola e de outras colónias estava ainda bem presente na memória coletiva e este segundo retorno provocava nos "media",na opinião pública, e até na classe política uma inquietação indisfarçável. Vi-me muitas vezes isolada, e mal compreendida, ao explicar que se tratava de um processo radicalmente diferente, um movimento voluntário, planeado pelos próprios emigrantes, dirigido, sobretudo, para as regiões de origem e, por isso, desejável, essencial mesmo, para o repovoamento e progresso do interior (desertificado pelo êxodo migratório das décadas anteriores). Os apoios à reinserção, (medidas fiscais, isenções, empréstimos a juro bonificado). foram utilizados habilmente, e o País ganhou muito com os que vieram (mais de meio milhão só nessa década de que tratámos) sem perder os que se que fixaram lá fora, formando as comunidades extra-territoriais, que corporizam a nossa "Diáspora".
 O M:  No seu entender quais foram os países que mais se esforçaram por justamente atribuírem a lusodescendentes cargos decisores, nomeadamente de responsabilidade política
 MA: O Brasil, sem dúvida. É um país tão próximo, que os portugueses na sociedade brasileira tendem a ser tratados como nacionais. Desde 1971, o Tratado de Igualdade de Direitos e Deveres entre Portuguese e Brasileiros concedeu direitos políticos aos imigrantes do outro País. a nível nacional, enquanto, por exemplo, o estatuto de cidadania europeia, ainda hoje, limita a capacidade eleitora e ativa e passiva, ao nível local. Em 1989, os Constituintes brasileiros foram ainda mais longe, atribuindo aos portugueses, sob condição de reciprocidade, todos os direitos da nacionalidade brasileira, equiparando-os a brasileiros por naturalização. A luta pela dação da reciprocidade por parte de Portugal foi a minha " causa maior", enquanto deputada e prolongou-se por cerca de 13 anos. Foi conseguida numa revisão extraordinária da Constituição em 2001 - e graças ao apoio de Políticos sensíveis às particularidades do universo da lusofonia - caso  de Durão Barroso e de Mário Soares, que foi absolutamente decisivo. Desde essa data, o estatuto de cidadania luso-brasileira consolidou-se como o mais avançado nível universal, atualmentel! E, se, entre nós, ainda não vemos os imigrantes brasileiros em lugares de destaque, no Brasil são muitos os Portugueses que ocupam altos cargos na Magistratura judicial e na política, a todos os níveis, local, estadual e nacional. Uma ascensão que vem de trás e em que as mulheres fizeram história. No século XX, a médica Manuela Santos foi a primeira Secretária de Estado no Rio de Janeiro e a atriz Ruth Escobar a primeira mulher eleita à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e a primeira representante do Brasil nas Nações Unidas para o acompanhamento de Convenção contra todas as formas de discriminação das Mulheres. Uma e outra, eleitas ou nomeadas ao abrigo do "Tratado", isto é, apenas com a nacionalidade portuguesa. Hoje , na Europa, com a França  em destaque, e também no Canadá, EUA e outros países, a participação política vem crescendo, gradualmente.
OM:  Que actividades económicas e que tipos de trabalho procuravam os portugueses que emigravam? Com o mesmo (baixo) nível de formação, os portugueses que emigravam para países economicamente desenvolvidos encontravam trabalho não qualificado nos setores que referi (construção civil, a agricultura, os serviços, nomeadamente, no caso das mulheres), enquanto nos países "em desenvolvimento" muitos se transformavam, rapidamente, em pequenos empresários, quando não, no fim do percurso, em investidores de topo. No século XX, são inúmeros os que atingiram esse estatuto- no Brasil, obviamente, mas também na Venezuela ou em diversos países de África.Um exemplo histórico: nos EUA, no começo do século passado, foi muito mais rápido o enriquecimento dos nossos imigrantes no Hawai ou na Califórnia do que na costa leste, então com índices de industrialização mais elevados. É um contexto em que a ascensão é sempre mais lenta, mas não impossível. Veja-se o que aconteceu na França, onde a partir da adesão de Portugal à CCE, com o direito de estabelecimento, se multiplicou, de forma impressionante, o acesso dos nossos compatriotas a segmento do pequeno comércio e da restauração. E, em casos mais invulgares, a grandes negócios e lendárias fortunas, semelhantes às do Brasil ou África..

 MA: eram defraudadas relativamente ao que esperavam do país de acolhimento?
M A: De início, em muitos casos, sim. Eram enganados por redes de engajadores, explorados como trabalhadores indocumentados. moravam nos tristemente célebres bairros de lata dos arredores de Paris. Um quadro assustador!. Mas, progressivamente, a sua situação foi mudando. A legalização era facilitada (penso em primeira linha na França, que representava mais de 80% do total), e empregos não faltavam. Eduardo Lourenço, testemunha presencial desse período negro fez, como disse, lapidarmente, o balanço final. Nenhuma outra imigração foi aí tão bem sucedida como a nossa.
Desde a crise de 2008 e, mais ainda, nos anos de intervenção externa (da "troyka") , a emigração em massa não só recomeçou, como bateu todos os recordes. Nesses quatro anos, cerca de meio milhão abandonou o País... Fala-se de uma "nova emigração", de jovens altamente qualificados, quadros, cientistas, mulheres e homens. Nunca tal acontecera no passado, em números significativos, em massa, mas, na verdade, no total, são ainda uma minoria (nem por isso a situação de "braindrain" imparável deixa de ser uma constatação tremenda!). Contudo, a maioria da nossa emigração continua a ser predominantemente masculina, pouco qualificada e envolvida em contratos temporários.. Uma questão que agora se coloca é a de saber se haverá mais riscos de insucesso (relativo) para a "nova emigração". Creio que em algumas profissões - engenheiros, médicos, enfermeiros - o êxito estará, quase sempre, garantido, em termos de promoção na carreira, de vencimentos. O risco, a meu ver, é o de não regressarem. Porém, em outros setores, por falta de reconhecimento e aproveitamento dos seus títulos académicos, poderão acabar acantonados a empregos precários ou insatisfatórios. Face a expetativas mais ambiciosas, podem ver-se num percurso descendente - ao contrário da geração de 50/60. Esperemos que sejam poucos os perdedores!. E esperemos, também que sejam muitos os que decidam voltar. Isso vai depender muito do País, das condições que saiba reunir para o seu regresso e para pôr fim às partidas maciças. Até hoje, como tenho dito muitas vezes, Portugal já conseguiu garantir aos cidadãos o direito de emigrar, mas não ainda o "direito de não emigrar"...
 OM:   Qual a sua experiência no contacto com associações ou outro tipo de organizações em que os portugueses se uniam e reuniam?
 MA: Há pouco, ao referir primeiro contacto com emigrantes, logo o centrei nas associações, porque foi aí que encontrei, desde o primeiro momento, os portugueses. Quer se chamem assim, ou não, são verdadeiras "Casas de Portugal". Foram criadas, algumas há mais de 150 anos, para preservação da língua e da cultura e para defesa e proteção dos compatriotas, que se viam completamente abandonados pelo Estado, mal transpunham as fronteiras do país. A nossa única política de emigração, ao longo de séculos, foi a regulação dos fluxos de saída, quase sempre no sentido de os limitar! Os próprios emigrantes colmataram as omissões do Estado, um pouco por todo o lado, unindo-se em coletividades para a entreajuda (sociedades fraternais, caixas de socorros mútuos, hospitais), para a valorização cultural (Gabinetes de Leitura, grémios literários, centros culturais) e para o convívio (clubes recreativos e desportivos). Até aos fins do século passado, em todos os ciclos migratórios, em todas as latitudes, deparámos com formas de organização semelhantes para atingir os mesmos objetivos (a tipologia "beneficência, cultura, recreio"). Com notável eficácia, diga-se, em diferentes contextos e com meios maiores ou menores. O governo de 1980 não foi, certamente, o primeiro a ter em atenção os méritos do associativismo, mas foi pioneiro no enfoque que deu ao desenvolvimento sistemático de formas de parceria, de co-participação na definição e execução de medidas e programas para a emigração e as comunidades. O Estado não pode alhear-se dos problemas deste Portugal fora de fronteiras, mas tem de respeitar a autonomia da "sociedade civil", que se soube substituir à sua antiga e costumeira inércia. É um equilíbrio que é fundamental conseguir nas políticas públicas neste domínio!.
Nos governos a que pertenci, o principal instrumento dessas políticas foi uma assembleia consultiva, formada por representantes eleitos no universo associativo, o Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP). Entre 1981 e 1987 (data em que deixei definitivamente o governo), o Conselho funcionava a nível de cada país e em reuniões mundiais e regionais. Procurava ser  um grande "forum" do movimento associativo português, que era muito forte dentro de cada sociedade de acolhimento, mas não tinha uma estrutura internacional, ao contrário de todos os outros países europeus de emigração. E ainda hoje não tem! O CCP é atualmente eleito por sufrágio direto, tendo perdido, assim, a sua essencial faceta interassociativa..

A minha ligação afetiva ao associativismo que dá corpo e alma às comunidades, enquanto comunidades orgânicas, vem dum tempo em que estava no auge. Sempre vi nele a generosa marca do "percurso coletivo" dos portugueses, tão importante para o País como o sucesso individual, a que costuma dar muito mais atenção. E por isso me preocupa o seu futuro num mundo em espantosa mudança, com as novas tecnologias, a economia e a cultura digitais, formas de relacionamento, de trabalho e de diversão inimagináveis há apenas algumas décadas. Como resistirá o associativismo tradicional e o seu património às infinitas transformações a que assistimos ? .
 OM: Existe um número, ainda que aproximado, que nos possa adiantar de portugueses emigrados em 1981?
 M A: As médias de saídas eram baixíssimas, em comparação com as do passado recente e com as do presente. Talvez, uns 8000, (não sei exatamente os números, mas são dessa ordem de grandeza). Atualmente estão acima dos 100.000. Uma diferença abissal.Vivemos, atualmente, um recomeço de ciclo, de èxodo.
 OM: A Língua portuguesa significava um entrave à integração dos portugueses nas diferentes comunidades?

MA: O conhecimento de um idioma, nunca é entrave à aprendizagem de outro. Pelo contrário! Esse é um erro em que caíram alguns pais portugueses, que consideravam necessário que os filhos falassem apenas a língua local, que eles tinham dificuldade em aprender. Não compreendiam que o bilinguismo, para além de manter os laços à cultura pátria é sempre um enriquecimento, e mais ainda numa das línguas mais ricas e mais espalhadas no mundo. Mas esta visão nunca foi predominante. Mesmo pessoas com baixa escolarização, souberam, em regra, valorizar a preservação da língua-mãe, ensiná-la em casa, na escola pública, ou a partir do movimento associativo..
 OM: Quais as medidas que foram implementadas para que os emigrantes e os lusodescendentes, nomeadamente de segunda geração tivessem acesso em contexto escolar ao idioma de Camões?

 MA: Perante a multi-secular indiferença do Estado Português foram as associações e as paróquias católicas que criarem escolas ou cursos de português, com os seus´próprios meios, como disse. De facto, a preocupação dos governos com a aprendizagem do português só se manifestou, quando a emigração passou a dirigir.se para o nosso continente. Por largas décadas, manteve-se a dualidade, com uma rede oficial de professores na Europa, articulada, ou não, com os governos dos países europeus, em contraste com a não concessão de apoios às escolas comunitárias da emigração transoceânica. Nunca aceitei esta discriminação, mas tive dificuldade em a combater, porque, nessa altura a política do ensino para as comunidades estava sediada no Ministério da Educação e não no Ministério dos Negócios Estrangeiros 8MNE). Durante os governo a que pertenci. só na África do Sul foi possível estender, de algum modo, a rede oficial, com aulas extra-curriculares, gratuitas e dadas por professores do nooso ensino oficial nas escolas sul-africanas
 A transição do Instituto Camões para o MNE é coisa relativamente recente. Hoje há mais equilíbrio, mais rateio de meios entre as comunidades, de "àquém e além mar", mas a situação está longe do ideal e as escolas associativas continuam a desempenhar, em muitas comunidades., um papel de primeiro plano. Dar cursos de língua e cultura, continua a ser o obetivo de um sem número de organizações - e o que mais atrai as mulheres à intervenção na vida coletiva! É de realçar que em muitos casos tem resultado o esforço do nosso governo junto de outros, para conseguir a integração curricular do português. A meu ver, a multiplicação e a conjugação de várias ofertas de ensino é de incentivar. Nunca será demais.....

OM:  Quais as dificuldades da Lei eleitoral à data se refletiam no voto por parte das comunidades, nas diversas eleições portuguesas?

M A: Tudo hoje é mais fácil e mais consensual entre partidos da direita à esquerda. Em 80, não. Até a dilatação do período de recenseamento de um para dois meses foi polémica e inviabilizada no parlamento! A votação era limitada à eleição de 4 deputados para a Assembleia da República e o voto por correspondência perdia-se, frequentemente, sobretudo em países onde os correios eram lentos e pouco fiáveis, ao contrário dos nossos. Infelizmente o número de deputados não se alterou, mas o voto alargou-se às eleições presidencial e europeias e a alguns "referenda". E o universo eleitoral, independentemente de recenseamento, passou a abranger todos os emigrantes que possuem cartão de eleitor.
OM: Tem algum episódio que nos queira contar do contacto com alguma «Mãe ou Pai da Saudade"

M A: São tantos os que já partiram, deixando saudades... O mundo das comunidades era, então, a nível de dirigentes, de interlocutores, quase 100% masculino, e, por isso, o meu círculo dos amigos e aliados homens era imenso, tornando a escolha complicada, ao contrário do que acontece com as raríssimas mulheres, que lideravam associações, "media", ou grandes movimentos cívicos. Matriarcas como a mítica Dona Benvinda Maria, diretora do jornal "Portugal em Foco" do Rio de Janeiro, Maria Alice Ribeiro, fundadora e diretora do "Correio Português" de Toronto (aí, o mais antigo jornal na nossa língua), Mary Giglitto, presidente do Festival Cabrilho em São Diego (Festival de homenagem ao descobridor da Califórnia, que sem nossa Mary seria, provavelmente, considerado castelhano...), a Fernanda Ramos, de Minas Gerais, empresária e primeira presidente do Elos Clube Internacional, a Manuela da Luz Chaplin, advogada dos indefesos, em Newark...  Todas foram vozes fortes, arrebatadoras, que mobilizaram os compatriotas e engrandeceram as suas comunidades. Contar episódios passados com elas ou com eles, dava outra grande entrevista! Mas há um, que acaba de me ocorrer agora mesmo, talvez por ter trazido à conversa a desigualdade de género na emigração dessa altura. Estava, um dia, a almoçar com um jornalista de rádio de San Diego, Paulo Goulart, e ele disse-me que, entre os muitos políticos que visitavam a Califórnia, só dois tinham a simpatia da comunidade, o Dr João Lima e eu (assim se vê que ele era meu amigo - nem todos seriam dessa opinião.é claro...). Fez uma pausa, com ar de quem está a refletir e acrescentou: "Pensando bem o João Lima até tem mais valor, porque para ele é muito mais difícil, por ser homem e socialista". De facto, a América tinha, então, fortes preconceitos anti-socialistas. Essa parte era óbvia. Não assim o facto de ter vantagem como mulher! A frase, a que achei imensa graça, dita com evidente franqueza e sinceridade, constituiu a pista que me faltava para compreender o enigma de me ver bem aceite em comunidades, no seu conjunto, tão conservadoras. Creio que Paulo Goulart me terá convencido de que é mais difícil a uma mulher chegar ao cargo, do que, depois, exercê-lo. Aqui deixo a hipótese, para futuro estudo  

; OM:   Deseja fazer alguma saudação especial dirigida aos milhões que a vão ler?

 MA: Sim, com muito prazer, aproveito para mandar um abraço a todos os emigrantes que deixaram o seu país , mas o levaram consigo, em espírito e , assim, apesar da ausência física, são uma presença cultural.~

OM: A OBSERVA Magazine agradece-lhe novamente a honra desta entrevista

VIAGENS DA CHINA


VISITAS DA CHINA

1 - A auspiciosa visita do PR Marcelo Rebelo de Sousa à China (todas as suas viagens vêm sendo auspiciosas), trouxe-me à memória o meu primeiro contacto com altos dignitários chineses.
Aconteceu em 1988, estava eu há pouco tempo no exercício de  funções de Vice- Presidente da Assembleia da República. A minha primeira tarefa protocolar consistiu em acompanhar o programa da visita oficial, ao nosso País, de uma Delegação da Assembleia Popular da China. Visita pioneira na história multissecular das relações sino-portuguesas (em 2017, o "Público" noticiava a chegada a Portugal, numa visita "inédita", do  Presidente da mesma Assembleia, a convite do Presidente da AR  Ferro Rodrigues - a  iniciativa teve, com certeza, aspetos inéditos, sobretudo um acento "inédito" mas questões económicas, que hoje comandam o relacionamento dos dois Países, ainda que, como convite de um Presidente da AR ao homólogo chinês. fosse, de facto, o segundo, depois do de Victor Crespo, mais de 30 anos antes). Imprecisões históricas, a que já estamos habituados, num patamar diferente das "fake news", porque se devem exclusivamente a ignorância..
Voltemos, pois, a 1988 e a esses três dias intensos de conversações, passeios por Lisboa, Sintra e Porto, receções não só na Assembleia e na Embaixada da China, como  nos municípios, e," last but not least", de audiências com o Primeiro Ministro (Cavaco Silva) e o Presidente da República (Mário Soares).
À época,  a Assembleia Nacional Popular era não só o maior parlamento do planeta, como tinha, certamente, os mais velhos dirigentes  de entre todos os parlamento do mundo. O Chefe da Delegação, um Vice.Presidente, andaria pelos 80 anos e a média de idade do restantes  membros não estaria muito longe dessa idade ("grosso modo", o dobro da minha e da dos deputados portugueses, que me acompanhavam). Não obstante a diferença geracional e as especificidades culturais, estabelecemos fácil convívio a conversas fluia naturalmente. As paisagens e monumentos, a gastronomia ou a música, agradavam visivelmente aos nossos hóspedes. De qualquer modo, tudo era feito "by the book" segundo os canônes da diplomacia parlamentar.

2 - O imprevisto estava, porém, para acontecer onde menos se esperava - no Palácio de Belém..Para compreender o sucedido, é preciso dizer que o conjunto das delegações chinesa e portuguesa constituía um grupo alargado, uma vintena de pessoas,  somando intérpretes e secretários. Por isso, em São Bento, com o Primeiro Ministro, estivemos presentes nas conversações, os visitantes e, pela parte portuguesa, apenas eu. Os demais ficaram na sala de espera. O Prof Cavaco Silva, tinha vindo da China meses antes, e falou longamente dessa sua inesquecível experiência, sempre formal, não só porque esse é o seu estilo, mas também porque julgava que assim o exigia a etiqueta oriental. Notei que usava uma curiosa super abundância de adjetivos - possivelmente porque os considerava do agrado dos interlocutores, Em suma, esforçou-se bastante para ser o perfeito anfitrião, e, a meu ver, saiu-se bem.
Dali, o cortejo seguiu diretamente para Belém. Tal como na reunião anterior, atendendo a que o salão presidencial, em condições normais, não dispõe de assentos para tanta gente, os mesmos deputados aceitaram continuar de fora. Contudo, o Presidente Soares, especialista como era em praxes parlamentares, estranhou ver-me desacompanhada de colegas e perguntou : "Veio sozinha?"  Ao que tive de dizer: "Não, Senhor Presidente", explicando que os outros estavam na antecâmara, porque os serviços do protocolo entenderam ser impossível acomodá-los ali dentro. O Doutor Mário Soares, indignado, levantou-se, de imediato, exclamando que era um parlamentarista e não podia permitir que os nossos deputados não fossem recebidos na audiência. Mandou chamar os deputados, mandou vir mais cadeiras, começou ele próprio a trazer as que estavam arrumadas em recantos da sala. Uma incrível movimentação, um reboliço, homens transportando cadeiras, reorganização da ordem de precedências, coisa rápida, à portuguesa... E só depois de todos estarmos devidamente enquadrados naquele salão elegante, mas relativamente pequeno, se iniciou uma conversa que o Presidente conduziu com a mestria e a cordialidade costumeira, com o seu espontâneo à vontade, querendo saber as impressões dos visitantes sobre o que tinham visto até então. Eu só queria adivinhar a impressão que o extraordinário episódio suscitara neles, cerimoniosos orientais, segundo estereótipos aceites!..  

3 - Para o saber, não tive. afinal, de aguardar muito. À saída, esperava-nos um coletivo de jornalistas, uma multidão de microfones e câmaras de televisão para entrevistar o Chefe da Delegação chinesa. Ele, habitualmente calmo e pausado, fez uma intervenção viva e empolgante, para felicitar Portugal por ter um Presidente que era uma figura admirável, um grande humanista, etc etc. O  elogio  continuou por vários minutos! Por fim, um dos interlocutores lembrou que também fora recebido pelo Primeiro Ministro e perguntou-lhe como correra esse encontro. Ao que ele respondeu, em duas sonoras e breves palavras: "Correu bem".~
 Fiquei elucidada...  Moral da história: qualquer que seja o público, a idade, a mentalidade, a etnia, o quadrante partidário ou quaisquer outras particularidades, o que é genuíno tem muita força, muito impacte. O Presidente  Marcelo é, como o Presidente Soares era, capaz de gerar uma grande proximidade  não só com o seu próprio povo, mas com todos os povos, em todos os pontos cardeais. Mário Soares  conseguia projetar Portugal com esse seu dom de simpatia e compreensão universais. Marcelo, ao que parece, também possui o dom! Ei-lo na China a somar resultados.

abril 14, 2019

Emigração e Diáspora nas Vésperas da REVOLUÇÃO

EMIGRAÇÃO E DIÁSPORA NAS VÉSPERAS DA REVOLUÇÃO
Em 1973/74  terminava, com o impacto do chamado "choque petrolífero" na economia europeia e mundial,  o que fora o maior êxodo da história da nossa emigração. A Revolução, que abria, finalmente, as fronteiras à saída e retorno dos Portugueses, acontecia quando a Europa nos fechava as portas de entrada. A Europa, novo destino das nossas migrações na segunda metade do século XX, a par de outros ?novos destinos? transoceânicos, que não só a opinião pública, mas também, estranhamente, reputados académicos costumam subvalorizar . Na verdade, o Canadá, a Venezuela , e, numa escala menor, mas significativa,  vários países de África  - sobretudo a África do Sul, mas também outros -  e a Austrália acolheram um número  de emigrantes equivalente ao da Europa inteira.
As causas, essas, foram as de sempre -. puramente económicas para a grande massa anónima, para alguns outros a atracção do estrangeiro, a valorização pessoal, ou  razões ideológicas e políticas, em tempo de guerra colonial.  
A emigração,como aventura, a emigração como protesto...
"No proteste, emigre" diz-se, com humor,  numa pequena placa que me ofereceram há anos em Caracas. Uma boa síntese de muitas tomadas de decisão, em que formas de conformismo e inconformismo se confundíam?
Mas, quaisquer que fossem as motivações da itinerância dos portugueses,  no ponto de chegada era sempre enorme a sua   propensão associativa, superior à que existia no país, e, igualmente, superior à que se registava em outros grupos étnicos, que com eles conviviam, por esse mundo fora.
Solidariedade e companheirismo levavam à proliferação de organizações, que se substituiamm ao Estado na missão de dar informação e apoio, de ensinar a língua, de manter as tradições - clubes, centros culturais, sociedades beneficentes... O associativismo esteve presente desde a primeira hora, sozinho no terreno. A atitude de completo descaso dos governos de Portugal face aos emigrantes e a essas organizações apenas começou a mudar, depois que se radicaram, em massa, em países próximos. O esboço das primeiras políticas de apoio social (na Europa, quase exclusivamente...) pouco antecede a revolução de Abril.
 Foi da sociedade civil, de dentro do próprio País, que veio a primeira exigência de uma política cultural para toda a Diáspora, para o imenso património material e imaterial que as migrações haviam criado e que os governos teimavam em ignorar.
Falo dos dois Congressos das Comunidades de Cultura Portuguesa realizados em Setembro de 1964 e em Julho de 1967, uma iniciativa do Prof Adriano Moreira, que foi quem, na qualidade de Presidente da Sociedade de Geografia, convocou para os encontros os representantes das maiores instituições das comunidades, os especialistas e os participantes de múltiplas formas de ser português, lusófono, lusófilo...As actas dos Congressos, em seis densos volumes, são um precioso repositório de informação, dão nos um retrato de época, tanto dos movimentos migratórios (objecto de atenção generalizada), como da Diáspora (a que raros faziam alusão). São um retrato de Portugal em corpo inteiro, que permanece, em larga medida, actual (ou não fosse a Diáspora essencialmente permanência, sob pena de deixar ser Diáspora...).
A União das Comunidades de Cultura Portuguesa e a Academia Internacional de Cultura Portuguesa foram os instrumentos saídos dos Congressos para a institucionalização de um forte e pioneiro movimento de vivência da cultura portuguesa no seu "habitat" universal -  movimento  interrompido, oportunidade perdida nos meandros da pequena política, durante o "marcelismo".
Depois do 25 de Abril, surgiria o Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP) que era, na sua primeira fase, um órgão consultivo do Governo, de origem associativa. No preâmbulo da lei que  institui o CCP  não se faz referência expressa à "União" da década de 60, mas está lá, na mesma linha de pensamento, o apelo a uma intervenção  da sociedade civil, capaz de chamar o Governo ao diálogo, liderando o processo... Isso tem sido, de vez em quando, anunciado mas não cumprido com vocação de grandeza, à dimensão da  Diáspora .
. O paradigma de Adriano Moreira, o grande precursor, continua, assim,  à espera de protagonistas.

2 revoluções no sec XX

1 - À distância de apenas quatro anos é irresistível fazer a comparação entre a celebração das revoluções que marcaram o século XX português: a revolução portadora das ilusões de uma mudança de regime, que se estendeu pelos 16 anos da breve 1ª República e a revolução fundadora da República em que estamos há 40 anos, ainda com a expectativa de a continuar, para além da crise actual, traduzida em involução e empobrecimento geral e em degradante dependência do Estado numa Europa dividida e desigual.
O centenário da I República foi objecto de inúmeras organizações, do mundo científico e político, dos “media”, das instituições da sociedade civil, que o tornaram um excelente exemplo do que pode e deve ser feito, sem tombar no elogio nostálgico e ritual - .a permitir um olhar sobre nós, sobre a luta das mulheres e dos movimentos feministas, sobre a questão colonial e religiosa, sobre o fervilhar de ideias e de querelas, sobre o dilatado interregno da ditadura, sobre o 25 de Abril e o agitado início de milénio… Um percurso secular de memórias renascidas.
No confronto entre festejos, os de 2014, pelo menos a nível oficial, parecem destinadas a ficar muito aquém do que justifica a importância da maior revolução do século, pelas suas consequências imediatas e futuras…Desde logo, porque representou o fim de um longo ciclo de 500 anos de construção e desconstrução de um vasto império colonial e ultramarino, que, ao entrar do último quartel do século, ia do Atlântico ao Pacífico, em estado de guerra e de desagregação, contra o sentir comum dos Povos. Um anacronismo, um impasse fatal, resolvido no fim de um ciclo de 50 anos de ditadura, de "silêncio e de medo”. Palavras de Maria Teresa Horta, há dias,  numa rádio, onde, como em outros “media”, em universidades, em programas da sociedade civil, 1974 vem sendo tema de debate e rememoração, em fórmulas interessantes de fazer História e advento de História - a partir desse dia simbólico em que o império de desfez, com o anúncio e o começo da descolonização,  e o País de refez, ao entrar no processo de retorno à sua origem geografica– antes de mais, no domínio da política, onde pela força do voto, se sagrou a opção europeia, a par da opção pela democracia representativa, uma das várias alternativas, que se confrontaram nas pulsões contraditórias do PREC... Em qualquer caso, de fora desta estreita fronteira europeia, para sempre ficaria a Diáspora, todo um espaço em expansão de lusofonia e de lusofilia. A melhor de todas as heranças do império finito: a dispersão universal da língua, enraizada em culturas e em afectos...
2 - Duas revoluções com sorte diversa...
 A revolução de 1910 morreu antes de envelhecer a geração que lhe deu corpo.
 Não assim a de 1974, com os jovens capitães que tinham, então, como Fernando Salgueiro Maia, 29 anos, ou pouco mais, e com os políticos, a quem eles abriram os caminhos da livre expressão e da acção concreta, e que eram, igualmente, na sua maioria, gente nova e idealista.
Ficam, todos, a meu ver, bem, na galeria dos notáveis da Pátria. Entregaram à geração seguinte um país mais livre, mais justo e mais democrático do que jamais fora e, também, há que dizê-lo, melhor do que é...
De facto, se perguntarmos hoje: Este é o Portugal que quisemos? Esta é a Europa em que acreditámos? A resposta é: "não!". Duas vezes “não”...
Vivemos, assim, naturalmente, a urgência de recuperar, em simultâneo, o espírito humanista e fraternal da construção europeia, e o sentido libertário e pluralista da revolução de Abril, tal como se projectou na Constituição, em sucessivas revisões, e na cena política nas últimas décadas de novecentos. Ou seja, aceitando que a democracia exige sempre a alternância, o diálogo e o respeito da alteridade.
Por isso me parece que uma das iniciativas não formalmente enquadrada em qualquer programação das comemorações, mas que lhe
 veio acrescentar um sinal de esperança - coisa que tanto nos tem faltado - foi o chamado "manifesto dos 74".  E não apenas pelas suas propostas, a meu ver, realistas, sobretudo, na compreensão de que não há boas soluções nacionais, sem boas soluções à escala europeia..Não apenas por essas propostas, mas pela comprovação de que há, entre os Portugueses, na sociedade civil, mais vias de entendimento e de compromisso, do que julgam os políticos “institucionais” , aparentemente limitados no horizonte da sua própria inabilidade de dialogar e alcançar resultados no país e na Europa.
Está em causa o futuro de um tempo começado em 74.
 Há que o demandar sem medo das ideias e dos projectos dos outros-n
Por exemplo, sem medo de dar, no hemiciclo de São Bento, no próximo dia 25, voz aos militares de Abril, neles personificando a homenagem merecida desta geração à antecedente. À que fez a grande revolução.

OS OUTROS PORTUGUESES

Falar de comunidades portuguesas tornou-se, entre nós, uma outra maneira de dizer emigração, num mero sentido estatístico - a comunidade portuguesa de França ronda um milhão de portugueses, a do Canadá meio milhão, etc. etc.. Assim se vão somando milhões, por alto, porque ninguém sabe, com inteiro rigor, quantos deixaram o país. Os cerca de cinco milhões dos registos oficiais ficam, certamente, aquém da realidade e poucos são os responsáveis políticos que resistem à tentação de subvalorizar o êxodo, quando este ultrapassa o limite do razoável. Neste aspeto, o atual Secretário de Estado é uma exceção, pois não hesita em apontar para 120.000 novos emigrantes, ano após ano, desde o início da "Crise" (com letra grande…).
Todavia, para a avaliação do fenómeno migratório na sua inteira dimensão, mais importante do que as cifras, é a perceção de um universo cultural em expansão, através de segundas e terceiras gerações. O mais importante é, pois, tomar consciência das infinitas possibilidades de alargar este universo, pelo reforço das ligações a Portugal de novos portugueses, que não saem do país por uma fronteira geográfica, mas entram nas nossas comunidades pela via sua ascendência assumida afetivamente. As famílias, as associações têm tido, neste domínio, o papel essencial, como se constata no paradigma da emigração mais antiga: a da Califórnia, onde, há décadas cessaram significativos surtos migratórios, mas onde mais de um milhão de cidadãos se reconhecem como portugueses ou de origem portuguesa; a do Brasil, em tudo singular, desafiando qualquer tentativa de contabilização, antes de mais, porque muitos dos recém chegados não se registavam nos consulados e, por isso, nas nossas estatísticas nunca existiram….Emigração antiga, imersa numa nação que partilha uma mesma língua e em cuja sociedade se move com à vontade, torna praticamente impossível determinar onde se quebra a cadeia geracional. Podemos contar milhões… Todavia, a superfície bem visível desse "iceberg" lusitano é formada, por aqueles que se integram na vida das instituições portuguesas.
Razão bastante para reafirmarmos que a incerteza dos números não é preocupante quando pensamos a presença no mundo, porque esta se deve muito mais a factores qualitativos do que os quantitativos.As comunidades” (não “a comunidade portuguesa”, quadro estatístico, massa anónima, mas as comunidades muito concretas) existem, como a expressão dessa mais valia qualitativa, que é a organização, a rede de instituições culturais e sociais, que criam e animam um verdadeiro espaço português extra territorial. O que possamos ter lido e ouvido de terceiros não nos prepara nunca, para o encontro com este outro Portugal, mais emotivo e mais consciente de si, que é, nas palavras do Prof Adriano Moreira, a "Nação dos afetos". Tudo se deve não às correntes migratórias – em si mesmas, agentes de dispersão – mas sim a um poderoso movimento associativo, que se converteu em força de agregação..
Se a existência deste imenso património tivesse dependido do mais pequeno gesto do Estado Português, nem uma só dessas estruturas, algumas monumentais, teria conseguido erguer-se. Bem poderemos parafrasear o Presidente Kennedy, usando o tempo pretérito: “não perguntem o que o País fez por eles, perguntem o que eles fizeram pelo País”.
2 - A obra está por todo o lado, como os próprios portugueses. Deve – se, em grande parte, à reconversão de um tradicional êxodo de homens sós em emigração familiar, com a sua metade feminina – ainda pouco visível na direção das maiores instituições, mas determinante no que respeita tanto à integração na sociedade estrangeira, como à corporização das comunidades, neste sentido orgânico, em que as consideramos. Essas instituições foram sempre encontrando lideranças à altura das expetativas, contudo, de há alguns anos a esta parte, vem-se questionando, o seu futuro, pelo envelhecimento dos seus dirigentes, num quadro de “fim dos tempos" da emigração – fim esse muito propagandeado pelos nossos políticos desde à adesão à CEE , como símbolo de desenvolvimento. A pobreza,  profetizavam, era coisa do passado...
Ora a pobreza está, agora, de volta a Portugal. O Governo não hesita em levar a cabo, um programa de austeridade seletiva, que pesa, essencialmente, sobre as classes médias, destruindo-as. No generalizado empobrecimento e, sobretudo, no desânimo e na revolta se gera  outro ciclo de emigração, descomunal, tremendo, como aquele que há precisamente um século, o Prof. Emygdio da Silva denunciava, falando em “emigração delirante”.
Abalam todos os que podem... qualificados ou não, mais e menos jovens, homens e mulheres (ainda uma minoria, é certo, mas, pela primeira vez, autonomamente, com ambições profissionais).
Serão elas e eles a solução para a segunda vida do associativismo e das comunidades da Diáspora, num maior equilíbrio de género e geração, inovando, modernizando? É a grande questão, para a qual não há que esperar resposta: há que busca-la! Este é o tempo ideal para equacionar políticas e tomar medidas que possam influenciar respostas afirmativas.
Ao longo de séculos, o direito a emigrar - ou, pelo menos, a atravessar fronteiras, com um projecto próprio, ainda que de curto prazo  - foi fortemente condicionado e, em certas épocas, e, em muitos casos, mesmo proibido. E mais ainda para as mulheres, que, até para acompanharem os maridos, por muito altos que fossem os cargos por eles ocupados na Administração das possessões do Império, só raramente conseguiam a necessária autorização régia...
As primeiras políticas de emigração foram, assim, como reconhecem os especialistas neste domínio, simples medidas restritivas de um êxodo quase sempre visto como desmesurado. Das Ordenações Filipinas à Constituição de 1976,  podemos dizer que não houve, nunca, autêntica liberdade de circulação. Colocava-se á saída do cidadão toda a espécie de obstáculos (vigilância policial, licenças, custo exorbitante de passaportes...) ou facilitava-se mais, ou menos, de acordo com as conveniências do Estado. Eram os interesses colectivos, tal como os viam os poderes legislativo  e executivo, que prevaleciam sempre.  O direito individual à emigração (e, por maioria de razão, ao agrupamento familiar) não existia, era mesmo doutrinalmente inconcebível, salvo na visão de alguns raros precursores da modernidade. 
Todavia, dois problemas maiores se foram pondo a sucessivos governantes: um derivado da sua própria incapacidade de proceder a uma avaliação de todas as consequências positivas e negativas  da expatriação em massa,  o outro da capacidade de desobediência dos portugueses na sua determinação de partir, a bem ou a mal (isto é, clandestinamente). 

Reportando-se a tempos recentes, aos da emigração em sentido estrito, findo o ciclo (ou ciclos) de colonização, Miriam Halpern Pereira fala  em "ambiguidade" das políticas repressivas - uma palavra que é possivelmente a mais ajustada à compreensão do que foi uma aparente incapacidade estatal de dar cumprimento a uma tão longa lista de leis e regulamentos restritivos da expatriação. É realmente de admitir, como hipótese mais provável, que o laxismo na aplicação da lei  se deva, essencialmente, à indecisão entre conter excessos  - porventura até no não saber precisamente onde começavam os excessos -  e a sofreguidão em aproveitar aa benesses em que eles sempre se traduziam a breve trecho - as remessas que equilibravam as contas externas! Uma espécie de debate íntimo sobre os "prós" e "contras". do fenómenos, que redundava numa solução de compromisso à portuguesa - mantém-se a lei, mas não a força da lei... Não admira que a emigração clandestina representasse, cronicamente, cerca de um terço do total, assim largamente  consentida, como que ignorada, sem o ser.
Este lusco fusco de ambiguidade falta, porém, a  fracassos rotundos de politicas pensadas e gizadas com um claro escopo. Penso na tentativa de desviar as correntes migratórias do Brasil, para as colónias de África, sobretudo para Angola, logo que o Reino Unido se desuniu  de Lisboa, e, independente, se converteu em Império e, depois, em República. Foi uma primeira tentativa falhada de fazer de Angola “um novo Brasil” - frase que se havia de popularizar no século seguinte, na primavera marcelista, a propósito de uma segunda tentativa de colonização e desenvolvimento, que apelaria aos que em números que rivalizam com os de hoje se dirigiam para França e outros países estrangeiros .
Tentativas utópicas, porque não estavam nos horizontes dos Portugueses (o que estava era mesmo o Brasil em oitocentos ou a França, na segunda metade de novecentos). E, como a história mostra, em matéria de emigração o povo ganha sempre a partida…
O 25 de Abril e a Constituição de 1976 vieram, finalmente, consagrar o seu direito de livre circulação, de sair e de regressar livremente à terra de origem


(publicado no jornal "As artes entre as Letras")

Em As Artes entre as Letras - Longe e perto de 1910

UM OLHAR (subjectivo) SOBRE FEMINISMO E DIÁSPORA
Longe e perto de 1910


1- O movimento feminista e republicano do começo de novecentos não teve um grande impacto nas comunidades do estrangeiro, nem mesmo globalmente nas colónias portuguesas - embora em algumas cidades ,como é o caso de Luanda ou de São Paulo,  haja registo de actividades da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas ou da Associação de Propaganda Feminista  (a Liga com estreitas relações partidárias, a
APF aberta a todos os credos e autenticamente sufragista, criada quando se tornou evidente o incumprimento pelo Partido Republicano das promessas de voto para as mulheres, em 1911. As conhecidas ligações da
APF ao Brasil devem-se  à presença nesse país, entre 1911 e 1914, de Ana de Castro Osório, a grande impulsionadora e ideóloga da Associação, que, todavia,logo depois da sua constituição, rumou a São
Paulo, onde deixaria  o seu nome na memória e na toponímia da cidade.
 Mas a regra foi, naturalmente, a oposta… As singularidades daquele movimento, a sua matriz republicana, maçónica, revolucionária, anti-clerical, tornavam-no irrepetível na emigração. Não se poderia esperar uma
aproximação entre mulheres separadas não só pela distância, como pelas condições de luta cívica e política, numa época em que não existia trradição de diálogo com as instituições das comunidades -  aliás, círculos masculinos t,anto ou mais fechados do que a sociedade local.
 À absoluta exclusão do movimento associativo, responderam as mulheres com organizações próprias. A primeira terá sido uma sociedade fraternal na Califórnia, em fins do século XIX – a Sociedade Portuguesa Rainha Santa Isabel, nascida no interior de uma igreja católica, logo seguida da União Portuguesa Protectora do Estado da Califórnia. Ambas cresceram espantosamente, desenvolvendo, a par da sua vocação
mutualista, um  papel cimeiro na comunidade portuguesa, sobretudo na área cultural e beneficente. Há registo de mútuas femininas oitocentistas em Portugal, mas sem atingirem a mesma grandiosa
dimensão e longevidade...
 No domínio social se centram outras grandes organizações da segunda
metade do século, como a Sociedade Beneficente das Damas Portuguesas
de Caracas, a Liga da Mulher da África do Sul ou, já no alvorecer do
século XXI, a Associação Mulher Migrante Portuguesa da Argentina.

 2 - À  primeira vista, são mais evidentes as diferenças do que as sintonias
entre estas organizações que queremos comparar. Falta no nosso
associativismo da Diáspora uma forte  reivindicação pública da
igualdade no dirigismo  –  o equivalente ao sufragismo de então....De
facto,  a sua
expressão nos "fora" do “congressismo” vem sendo suscitada mais do
exterior do que de dentro das comunidades: o 1º Encontro Mundial de
Mulheres no Associativismo e no Jornalismo, foi convocado pelo
Governo, em 1985. Já neste século, os “Encontros para a Cidadania”
(2005-2009) e os congressos mundiais de 2011 e 2013 foram iniciativas
de ONG's, como a Mulher Migrante, com sede no País, em parceria com
a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas.
 As conferências periódicas sobre “A vez e a voz da Mulher”, cuja principal
dinamizadora é Manuela Marujo, professora da Universidade de Toronto,
são uma das excepções que confirmam a regra..
 Todavia, há também convergências no associativismo das mulheres
portuguesas em diferentes épocas e regiões do mundo.
 Movem-se por um feminismo muito feminino ("feminismo" no preciso
sentido em que Ana de Castro Osório falava de "verdadeiro feminismo" -
um humanismo partilhado com o outro sexo, em companheirismo e
cumplicidade ). Um activismo que  nasceu, frequentemente,  dantes como
nos novos tempos, dentro da família, numa cooperação  entre cônjuges,
mães e gerações - realidade que se adivinha nos apelidos comuns de
republicanos de ambos os sexos e que é bem visível no
associativismo da emigração – são as mulheres de dirigentes que, nos
bastidores, com eles colaboram, discretamente. E, quando elas decidem
militar nas suas próprias organizações, são eles, em muitos casos, os
seus primeiros apoiantes.
 Mulheres desenquadradas do grupo familiar activo, também existem,
evidentemente, mas são, sobretudo professoras primárias, jornalistas,
escritoras… – tanto na República portuguesa de 1910 , como  nessass
“pequenas repúblicas de homens”, que são os clubes e centros
comunitários no estrangeiro.
 Proporcionar o ensino da língua, a vivência cultural portuguesa aos
mais jovens, são as prioridades que mais atraiem as mulheres à liderança
associativa, ainda hoje - a relembrar a luta pela educação e instrução
feminina, o máximo denominador comum, dentro do movimento
feminista e republicano, que a reivindicação do sufrágio dividiria
irremediavelmente.
De um século ao outro, e mesma mundivisão, a mesma crença de que a
mulher se emancipa pelo trabalho, ao lado do homem, e que quer
direitos de cidadania para melhor servir a comunidade e o País..
Sobra essa busca da paridade em harmonia, onde falta o afrontamento de
sexos. Até a APF, a mais sufragista de todas, se envolveu enormemente
na vertente humanitária e beneficente do associativismo. Foi assim . É
assim... Se mais resultados teria obtido uma postura mais radical é
coisa que não saberemos nunca...

CONGRESSO PORTUGAL E A REVOLUÇÃO PAINEL PORTUGAL NO MUNDO

O mundo de emigração e da Diáspora
A minha primeira palavra é de agradecimento à Prof Doutora Maria Fernanda Rollo pelo convite para participar neste grande congresso sobre a revolução do 25 de Abril, sobre o seu significado para Portugal e para os Portugueses, com a promessa, que viria a ser cumprida, de liberdade e de democracia. Para todos os Portugueses, também para os da emigração e da Diáspora. Deles falarei em breves palavras.
A revolução do 25 de Abril é, neste domínio, uma data maior, a maior de todas, porque veio trazer a liberdade, rompendo com os obstáculos de ordem jurídico- administrativa à decisão individual de emigrar, rompendo com políticas multisseculares de limitação ou proibição das saídas - mais ainda para as mulheres do que para os homens.
 Na verdade, o êxodo sem fim dos portugueses pelo mundo, num contínuo encadeamento de ciclos, não fora, nesse passado longo, nunca, inteiramente livre.
E a democracia nascente vinha também restituir aos emigrantes o seu direito de cidadania, de participação política, contra uma tradição de absoluta exclusão da comunidade nacional, uma verdadeira "capitis diminutio", que os atingia mal atravessavam a fronteira terrestre para viver no estrangeiro. Foi, pois, uma revolução de princípios e conceitos, com imediato reflexo a nível dos direitos individuais.
A centralidade dada às questões da emigração revela-se, na cronologia das medidas políticas tomadas nesta área, antes de mais, pela criação, logo em 1974, de uma Secretaria de Estado da Emigração. A nova Secretaria integrava os serviços preexistentes do Secretariado Nacional da Emigração, a partir dos quais se haviam planificado e executado, nas vésperas da Revolução, as primeiras medidas de apoio social e cultural às comunidades do estrangeiro, sobretudo na Europa. Todavia, é com o novo regime que essas políticas embrionárias se vão desenvolver, nomeadamente no que respeita à representação política, à aceitação da dupla nacionalidade, à defesa activa dos direitos dos portugueses, à atenção dada ao associativismo, ao ensino da língua, à informação (alguns anos mais tarde, potenciada com as emissões da RTPI, um privilegiado instrumento ainda hoje subaproveitado),  ao apoio ao regresso voluntário ao País, através de um conjunto de benefícios fiscais e de empréstimos a juros bonificados. para aquisição de casa própria ou para lançar empreendimentos - medidas cuja eficácia se viria a comprovar nos anos seguintes. A reinserção de centenas de milhares de portugueses, vindos, sobretudo, de França e de outros países do nosso continente, foi de tal modo por eles planeada neste contexto, que se consumou numa infinidade de regressos "invisíveis”.
Estou já a pensar na década seguinte, antecipando  avanços  conseguidos: a revolução significou, no imediato, a vontade de consolidar um  “estatuto dos expatriados”, mas só depois este foi sendo materializado, em novas configurações de direitos, e em práticas, a um ritmo lento, que é o ritmo a que mudamos preconceitos e mentalidades. Há ainda muito por fazer para uma "cidadania de iguais",  fora das fronteiras geográficas, isto é, para corporizar o projecto de representação política e de igualdade de direitos no campo social e cultural, erradicando, de vez, o "paradigma territorialista" dominante até 1974. Até então, a ausência no estrangeiro implicava a perda de todos os direitos políticos e da própria nacionalidade (se os portugueses voluntariamente adoptassem a de outro país e, no caso das mulheres, mesmo contra sua vontade, automaticamente, pelo casamento com estrangeiros) e\ de outros direitos, como o do acesso ao ensino da língua, de que o Estado nacional não curava - as primeiras políticas de intervenção, em meados do século XX,  limitavam-se ao acompanhamento da viagem atá ao ponto de chegada, onde os emigrantes ficavam entregues a si próprios. Foi a dinâmica do associativismo, que, nos países de acolhimento, soube, quase sempre e por todo o lado, substituir-se ao Estado.
O trânsito para o" paradigma personalista", na definição de Bacelar de Gouveia, ir-se-á concretizando num estatuto de direitos de cidadania à medida da Nação e não só da terra portuguesa.
Um novo Direito, um "acquis" da Democracia.
 O nº 1 do art. 46º da Constituição de 1976 estabelece que : "Todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos políticos do país, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos". Pela primeira vez, os portugueses emigrados são eleitores de representantes na Assembleia da República, mas não ainda com um “voto igual”. De facto, o nº 2 do art. 152º, restringe a aplicação do sistema proporcional aos círculos territoriais e o regime de exceção vai servir para impor, na lei eleitoral, um teto de apenas quatro representantes em dois círculos próprios da emigração, europeia e transoceânica, com menos de 2% do total dos membros da Assembleia, para uma população que se estima em 30% - embora se deva reconhecer que são muito menos de 30% os potenciais recenseados no estrangeiro.
Nos outros actos eleitorais, a Constituição de 1976 exigia a residência no território nacional (art. 124 para o PR) ou na área territorial da autarquia (art. 246º nº1 para as freguesias e art. 252º para os municípios). No que respeita às regiões autónomas, não há dispositivo semelhante, mas a questão não foi  equacionada nos respectivos estatutos político administrativos.
O sufrágio na eleição presidencial viria a ser alcançado, entre públicas controvérsias e difíceis negociações inter partidárias, na revisão Constitucional de 1997,  com as exigências formuladas no nº2 do art. 121: "A lei regula o exercício do direito de voto dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, devendo ter em conta a existência de laços de efectiva ligação à comunidade nacional".
 Mais restritivo é ainda o nº 2 do artº 115, que prevê a sua participação nos "referenda" apenas "quando recaiam sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito". Nos referendos já realizados os emigrantes não foram consultados, por terem sido vencidas as propostas que lhes davam esse direito.
 Não poderei alongar-me, aqui, sobre as vicissitudes de processos de legiferação, em que fui interveniente, ao longo de mais de 20 anos, sempre em favor do alargamento do estatuto político dos expatriados, a nível nacional, autonómico e autárquico, com base em exemplos do direito comparado -  como o de Espanha que atribui aos seus expatriados o direito de voto a todos os níveis. Direi, apenas, em síntese que, a meu ver, entre nós, os partidos atuaram, regra geral, de acordo com as suas subjectivas expectativas sobre o sentido de voto dos emigrantes. Os que se consideravam por ele prejudicados desenhavam o cenário fatal de uma enorme expansão do eleitorado da diáspora, artificialmente engendrada pelos prosélitos do sufrágio. Ao fim de 40 anos de experiência democrática já não restam dúvidas sobre o irrealismo dos receios: no estrangeiro o universo eleitoral é reduzido e estável, com cerca de 260.000 recenseados e cada vez maiores taxas de abstenção.  Na Espanha, só a Galiza tem muito mais eleitores do estrangeiro e, sobretudo, muito mais votantes.
 Creio que o clamor sobre a anunciada avalanche de votos "de fora", que, redobrou a partir da aprovação da Lei nº 73/8, popularmente chamada "lei da dupla nacionalidade",  se ficou a dever a confusão entre emigrantes recentes  - os que, tendo passaporte português, podem recensear-se voluntariamente e, em larga maioria, note-se, não o fazem -  e os da Diáspora, cuja ligação ao País passa por laços afectivos e pela intervenção cultural, não pela política. A meu ver, há que deixar aos próprios emigrantes e seus descendentes a escolha da forma de manifestação dos seus sentimentos de pertença, não sendo, pois, legitimo nem desvalorizar nem pretender retirar à minoria de participantes na vida política os seus direitos inalienáveis, em nome de uma maioria que se reconhece em outras formas de "ser português".
Um organismo criado na confluência destas diferentes vertentes de afirmação de pertença foi o Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), nos moldes originalmente propostos pelo DL nº 373/80. Nele tinham assento representantes eleitos das associações, independentemente de serem ou não de nacionalidade portuguesa. Era uma órgão consultivo do Governo, presidido pelo MNE, uma plataforma de encontro e articulação de acções entre comunidades dispersas e praticamente desconhecidas entre si, e de co-participação nas políticas destinadas a um mundo tão plural. Um órgão de consulta pensado para as duas vertentes, para a emigração antiga, com a força das suas aspirações e projectos culturais, e para a mais jovem, com a pressão dos seus problemas e reivindicações sociais.  Nem sempre foi fácil o diálogo entre ambas e teria sido talvez  preferível, como continua a propugnar Adriano Moreira, a instituição de estruturas específicas para cada uma delas.
No CCP,  a última acabou por ter mais visibilidade e mais voz, deixando na sombra os consensos naturais no domínio cultural - que é sempre, por excelência, o lugar de uma solidária partilha das raízes matriciais - e focando, essencialmente, as questões laborais, sociais e políticas do quotidiano, as divergências ideológicas e partidárias, que, fora como dentro do país, se confrontavam na sociedade portuguesa. Foi, assim, o espaço de uma esplêndida vivência democrática, que, porém, desde a primeira hora, marcou o Conselho com uma imagem de conflitualidade mais do que de cooperação e solidariedade, que, por sinal, existiram em muitas matérias. Terá sido essa aparência mediática que, a partir de 1988, levou o governo a suspender as suas convocatórias, a silencia-lo, antes de o substituir por uma estrutura insólita, composta  de múltiplos colégios eleitorais, que era patentemente inoperacional.
 Em 1997, o CCP ressurgiu em novo figurino, passando a ser eleito por sufrágio directo e universal, ou seja, reservado a emigrantes com nacionalidade portuguesa.
O Conselho teve, assim, várias vidas entrecortadas, um percurso acidentado, em cuja fase inicial pude intervir mais diretamente, como membro do governo, em representação do MNE. Depois, por inerência de funções, como deputada do círculo de “Fora da Europa”,  continuei a colaborar nos trabalhos de conjunto, acreditando sempre na sua capacidade de ser o grande "forum" democrático da emigração. Uma espécie de 2ª Câmara consultiva, uma "assembleia"  - título que passou a assumir, ultimamente, o antigo "Conséil" francês. Uma instituição que deveria ser consagrada na arquitectura da Constituição, para ficar ao abrigo do poder discricionário dos governos. O tema foi discutido na AR, em 2004, por iniciativa da Sub comissão das Comunidades Portuguesas, a que eu, então, presidia . A ideia persiste,  foi ali analisada construtivamente por eminentes constitucionalistas e pode vir a ser lei, um dia, não sabemos se e quando...
 No domínio das políticas da emigração e da diáspora avança-se a par e passo. Falar de uma e outra, em conjunto, não significa esquecer que há uma gradação no conhecimento e reconhecimento público, que subvaloriza a realidade da diáspora face à da emigração do presente.  Os movimentos migratórios sempre foram vistos, e ainda o são, numa perspectiva principalmente economicista. -  envio das remessas, investimentos e benfeitorias locais, o chamado "comércio étnico", tudo o que é materialmente palpável - desvalorizando outros aspectos, como o esforço para expandir o espaço cultural português na densa rede de instituições, de que são feitas as comunidades portuguesas. Na ligação entre movimentos migratórios e diáspora, aqueles surgem como causa (ou concausa) e esta como sua dimanação, graças à enorme propensão associativa, com que nos  temos singularizado, em todos os tempos e lugares. Comunidades organizadas, espaços de vivência nacional...
Sabemos que a revolução de 74 veio derrubar uma ditadura, pôr fim ao impasse de uma guerra sem sentido e sem futuro, fechar um ciclo colonial e repor o Estado nas suas fronteiras geográficas europeias. Não veio, antes pelo contrário, pôs fim a essa presença universal dos portugueses, que sempre teve "vida própria" numa espontânea convivialidade, em relações de vizinhança e de cooperação, à margem dos desígnios ou poderes do Estado.
É certo que a nossa tradição migratória começou o seu curso ligado ao projecto do Estado de expansão marítima e de colonização de possessões, mas logo o transcendeu. Um projeto estatal  aparentemente desmesurado e para o qual não havia paradigma, não havia lições a aprender... Era enorme o risco de perder o certo pelo incerto, mas nunca faltou gente para servir a incerteza  da aventura, indo cada vez mais longe, dominando um todo geográfico cada vez mais vasto, a partir de uma população de somente cerca de um milhão pessoas. Logo no século XVI, o movimento envolve quase um terço da população total – mais de 280.00 homens, segundo Vitorino Magalhães Godinho. Uma impressionante média anual, que sobe no século seguinte para cerca de 8.000, no século XVIII para 40.000 e atinge novos máximos nos séculos XIX e XX. Estamos a falar, globalmente, de números na ordem de milhões. E as partidas assumiam, como disse, cada vez mais, o carácter de aventura individual, privilegiando o imenso Brasil. As políticas que procuravam regular os fluxos migratórios iam inevitavelmente no sentido de os restringir, ou mesmo de os proibir. Movimentos incessantes,  uma autêntica cultura de expatriação...
Talvez por isso os historiadores da emigração portuguesa (Joel Serrão, por exemplo) não resistam a olhar as partidas ininterruptas  de 500 anos e não apenas de 150 ou 200 anos de migrações, em sentido estrito. De facto,  não se consegue traçar, com precisão, os contornos da passagem de um ao outro dos fenómenos – o último a suscitar maior confronto entre vontade do Estado e a do povo, entre uma emigração que os governos não pretendiam naquela dimensão, ou para aquelas paragens. Ou que queriam apenas temporária, mas que os protagonistas converteram em definitiva, sobretudo quando se generalizou a saída de mulheres, de famílias inteiras. O regresso definitivo era a parcela menor  e não aumentou após a independência do Brasil, que continuou a atrair vagas (crescentes...) de portugueses.
As duas grandes migrações de retorno aconteceram só na segunda metade do século XX: a da Europa, voluntária,  bem preparada, gradual, ano após ano, atingindo o auge nas décadas de oitenta e noventa -  e a de Africa, no curto período da descolonização, súbita e dramática, com cerca de 800.000 retornados a Portugal e muitas dezenas de milhares a reemigrar. O Brasil foi, então, único país que abriu as fronteiras a todos os portugueses, sem olhar a idade, formação profissional, saúde  ou fortuna. Um gesto de fraternidade muito concreto, a não esquecer!
O retorno de África vinha em contra corrente, depois da maior emigração de sempre, que fora a dos anos cinquenta e sessenta, apenas estancada, em setenta, pela crise económica mundial. Saíram então quase 2 milhões (para a Europa mais de 1.200.000, para novos destinos transoceânicos, como a Venezuela, Canadá, RAS, Austrália, mais de 500.000). A chegada, em 74/75, de quase um 1.000.000 de portugueses parecia uma situação impossível de gerir. Não foi. Fica para a nossa história e para exemplo geral, o modo como superaram perdas e mágoas inenarráveis, encontraram lugar no país e contribuíram para o seu desenvolvimento. Sucesso assente em políticas de integração, na solidariedade familiar, mas principalmente nas próprias pessoas, no seu perfil empreendedor, na sua vontade de recomeçar a vida, num meio tão diferente, relativamente tão pequeno. Impressionante foi a sua aceitação local, o seu ascendente, revelado no número dos que foram eleitos para cargos autárquicos, logo nas primeiras eleições livres. Um tema a merecer mais estudo e mais destaque do que o que lhe tem sido dado.
  É sobre as causas sociais e económicas da emigração portuguesa que as atenções se têm concentrado. Há as estatísticas das partidas dos homens, a que se juntam as do retorno das remessas. Por trás dessa densa cortina de números, mal se adivinhavam outros feitos, outras verdades. A Diáspora era praticamente ignorada, não só pelos políticos, como pelos tratadistas e investigadores da nossa emigração. Até à convocação dos Congressos das Comunidades de Cultura Portuguesa, em 1964 e 1967, por iniciativa de Adriano Moreira, presidente da Sociedade de Geografia, ninguém dedicara mais do que uns breves parágrafos à existência de comunidades portuguesas, organizadas numa base institucional, que lhes garantia a sobrevivência, para além das primeiras gerações de imigrantes (coisa que ninguém imaginara possível).
Ora, de facto, tudo o que políticos e académicos viam como compensação de um êxodo de tamanha dimensão - as riquezas do comércio, da exploração de recursos de vastas possessões, e, em cada época, as remessas de emigrantes, tiveram o seu tempo e com ele se desvaneceram. O que resiste é a parte que escapou à perceção de todos -  a criação pelos Portugueses de um incomensurável espaço de lusofonia e de lusofilia, a língua, as comunidades portuguesas, e para além delas, um mundo de memórias que hibernam, à espera de uma chamada, de uma aproximação, para ressurgir. Citando Jorge de Sena :“solúvel e insolúvel este povo, na memória dos outros e na sua própria”.
 Serão estas as  maiores das retribuições de um êxodo excessivo - a virtude do excesso…
 Em primeiro lugar, a língua. A língua, viva em todos os continentes, é muito mais o resultado desta expatriação voluntária, em massa, e do relacionamento quotidiano entre os portugueses e os seus vizinhos de outras falas, do que do poder soberano exercido num território. O uso da língua não se decreta sem falantes!
 Veja-se o caso paradigmático do Brasil, para onde foram tantos portugueses, contrariando leis e ditames dos governos, que procuravam canalizar essa corrente migratória para as colónias de África (onde, aliás, nem sequer estavam criadas as condições efetivas para o seu aproveitamento). Medidas polémicas, contra as quais se insurgiram os que viam nas novas correntes migratórias condição necessária para preservar a herança linguística e afetiva num Brasil independente, aberto ao acolhimento de outros europeus. Afonso Costa foi um dos que tomou partido, claramente: "Não cometamos o crime de lesa pátria de embaraçar a emigração para o Brasil ou de ali nos deixarmos vencer por qualquer outro povo migrante".
 Em causa via, certamente, a língua, sobre a qual Joaquim Nabuco, discursando no Gabinete de Leitura do Rio de J, no 4º centenário de Camões havia proclamado:
“A tua glória não precisa mais dos homens. Portugal pode desaparecer, dentro de séculos, submergido pela vaga europeia, ela terá em 100 milhões de brasileiros a mesma vibração luminosa e sonora ”  (100 milhões, então, mais de 200 milhões agora!).
António Cândido, no 4º centenário da Descoberta do Brasil, celebrado a 19 de Maio, no Teatro de São João, do Porto, enunciara, por outras palavras, a mesma ideia - força: “Temos uma longa vida nacional. Não nos escasseiam meios de a nutrir, não nos falece a coragem para a defender. Mas, se, por fatalidade acabássemos, se (…) uma terrível catástrofe geológica submergisse esta parte do continente europeu (…) lá ficariam no Brasil para sempre, o seu sangue, a sua alma, a sua língua.
E, noutro passo: “Poderá a história ser esquecida, poderá o interesse volver-se contrário: resistirá a tudo a afinidade espiritual, a aliança pela língua será eterna.”
Língua europeia, americana, africana, asiática, universal. Legado de partilha de vida, de convivência de gente comum, que a força do poder imperial não contaminou…
 Uma última referência às comunidades da emigração - comunidades inteiramente construídas pelos cidadãos, perante o absoluto descaso do Estado.
O fim do império coincide com a atenção dada às comunidades, antes apenas se podendo excecionar as realizações de Adriano Moreira, os dois grandes Congressos, dos quais emergiram a “União das Comunidades de Cultura Portuguesas" e a "Academia Internacional de Cultura Portuguesa".
Vitorino Magalhães Godinho afirmou numa celebração oficial do dia 10 de Junho: “Há um Portugal maior do que o Império que se fez e desfez e que é constituído pelos portugueses, onde quer que vivam”
Também Sá Carneiro vê um  Portugal maior :“Foi uma Nação de colónias. Hoje não é apenas uma Nação territorial, é uma Nação populacional, uma Nação de povo (...)“uma Nação de Comunidades”. “É uma cultura, mais do que uma organização rígida”.
  A existência da nossa Diáspora precedeu, assim, em vários séculos o seu conceito, o seu reconhecimento. Diáspora que soube organizar-se, para sobreviver, através de um poderoso impulso associativo. No Brasil, o primeiro e o máximo paradigma, com os Gabinetes de Leitura, os Liceus e os Grémios Literários, instituições muito prestigiadas, com as Beneficências e os seus hospitais, que estão entre os maiores e melhores do país, com grandes clubes sociais e desportivos. Por todo o lado onde se fixaram, os portugueses deram vida duradoura a organizações centradas naquelas três áreas (cultura, apoio social, tradições de convívio),  associações idênticas nos seus propósitos, apesar de se ignorarem entre si. Semelhança que se deverá ao facto de se inspirarem em modelos da terra de origem.
Portugal, o país das migrações sem fim...  Assistimos hoje a um dramático recomeço de ciclo , a exigir dos governos o cumprimento dos seus deveres constitucionais em políticas de defesa dos direitos dos emigrantes e de difusão da língua e da cultura.
O êxodo dispersa agora os portugueses por uma multiplicidade de países em todos os continentes, acentuando a que já era uma das características da nossa emigração.
Mais emigrantes, mais mulheres, esperança de mais diáspora futura, mais Portugal no mundo.
Maria Manuela Aguiar

21 de Abril de 2014
Teatro Nacional Dona Maria II