abril 14, 2019

TONDELA COMENDADOR BRÁZ

1 - É um privilégio poder dar um breve testemunho nesta sessão de homenagem ao com AB, em Tondela, sua terra natal, no centenário do seu nascimento. A exposição que acabámos de visitar dá-nos bem a ideia do Homem, do emigrante corajoso, que atravessou os mares e conheceu o mundo, o cosmopolita, movido pela alegria de conviver, por uma insaciável curiosidade sobre outras realidades e formas novas de fazer desenvolvimento económico, sempre pronto a partilhar ensinamentos e experiências. Um empreendedor, que juntava intuição e energia, capacidade de inovação e um bom gosto inato, com que sabia acrescentar ao rasgo profissional a componente estética . Na expressão que entrou para ficar no discurso político (sobretudo desde que Portugal aderiu à CEE), o Comendador Bráz era um "empresário de sucesso" - o paradigma do Português, com que se impunha a imagem moderna do país na Europa e nos demais continentes. Merece, sem dúvida, esse título de honra, mas, como os melhores dos nossos emigrantes, foi mais do que um grande empresário: foi um mecenas, um Humanista, um patriota, um dos grandes construtores das comunidades portuguesas, dispersas no mundo 2 - Permitam-me que o destaque, em especial, nesta faceta, olhando as comunidades, o seu papel e a sua dinâmica em sucessivos ciclos de migrações maciças e em praticamente todos os destinos, situando a obra deste compatriota tão ilustre num vasto movimento, que ele encarna superlativamente. Ele pertence a uma pleida de compatriotas, cujo trajeto é, regra geral, lembrado, antes de mais,pelo sucesso individual, empresarial, e pelo mecenato com que contemplou a terra de origem, ficando esquecido, ou em plano secundário, o seu envolvimento comunitário, no estrangeiro. Uma razão mais para sublinharmos este último domínio até porque é nele, ou através dele que se convertem em agentes ou protagonistas da História da emigração e das Comunidades Portuguesas, que não temos sabido valorizar como parte da vida e da História nacional.    3 - Não as "comunidades" de que comummente se fala como mero sinónimo de "emigração", realidade estatística, número global (aliás, quase invariavelmente, pouco rigoroso, em sucessivos ciclos de êxodo, incontido e incontável), mas as comunidades estruturadas numa multifacetada rede de instituições de cultura, de convívio, de beneficência, que constituíram a face escondida e a mais importante retribuição do fenómeno migratória nacional. Mais importante, afinal, do que aquela que se contabilizou, conjunturalmente, nas remessas e divisas de montantes astronómicos, de que os governos se mostravam ávidos para minorar os desequilíbrios das contas públicas. Não surpreende, pois, embora se possa lamentar, que o foco de todos os estudos e registos, e a preocupação dominantes de todas as políticas públicas tenha sido essa componente material, e, com ela, a dimensão quantitativa da expatriação, avaliada em números, como expressão dramática da "ausência", sem cuidar das formas de vivência coletiva na emigração, da dinâmica associativa, em que se funda e se continua um espaço de "presença" intemporal e universalista. 4 - As comunidades portuguesas, como realidade orgânica, foram, ao longo dos tempos, sobretudo desde a segunda metade do século XIX, uma criação espontânea dos portugueses, em cada sociedade de acolhimento, uma resposta eficiente e dada com caráter sistemático às necessidades das pessoas, através do apoio aos recém-chegados e aos mais desfavorecidos, da entreajuda e do convívio. As preocupações culturais logo se seguem: a preservação de costumes, de modos de estar, o ensino da língua e da história aos jovens, a transmissão da herança ancestral, na afirmação de uma identidade nacional da qual é parte o fraternalismo e a convivialidade entre vizinhos - e que, por isso, não é conflitual, nem agressiva, mas fator de cooperação e inclusão. É assim numa rede, em regra, diversificada, de associações de fins sociais, culturais, recreativos, que se foi suprindo a falta de políticas públicas do Estado nacional... Os estudiosos da emigração portuguesa apontam o tradicional descaso dos governos com a sorte dos nacionais, desde que abandonam o território, e apontam às políticas de emigração uma constante e quase exclusiva finalidade de condicionar, limitar ou proibir fluxos de saída, considerados excessivos, até quando destinados ao povoamento de possessões ultramarinas - caso, nomeadamente, do Brasil, onde os imparáveis fluxos migratórios iriam em crescendo após a independência, com a mesma tónica de espontaneidade. Por isso, é difícil traçar a linha de fronteira entre as partidas que se enquadraram no projeto estatal de colonização e as, a que foram assumindo, mais e mais, os contornos de fenómeno puramente migratório. E, a meu ver, uma tal ambivalência, terá tido, por todo o lado, os seus reflexos no modo de trato e convívio com as populações locais e com outros imigrantes, num relacionamento mais próximo e fraterno, de cujo rasto antigo e difuso emana o mundo atual da lusofilia. Nas palavras de Jorge de Sena: "solúvel e insolúvel este povo, na memória dos outros e na sua mesma". 5 - O excesso acentuava-se, em cada novo ciclo, como os números claramente mostram, desde o século XVI, e era visto como um risco para a sobrevivência do país no seu berço territorial. Contudo foi, como hoje sabemos, o declínio demográfico não aconteceu, até novecentos, e esse excesso contribuíu, decisivamente, para o enraizamento da língua e de uma forte componente cultural no Brasil independente (aberto ao ingresso em massa de outras migrações), bem como em outras possessões do império, e um pouco por todo o lado, no que chamamos a nossa Diáspora. Num balanço realizado à distância de séculos, somos tentados a afirmar que o futuro deu razão aos milhões de emigrantes, que daqui se foram, movidos por um sonho proibido, Afinal mais efémero foi o império, cujas riquezas que, em cada época, se ganharam e se perderam, do que as comunidades que, ainda hoje, estão vivas nas terras onde a aventura da Expansão nos levou de Oriente a Ocidente, a nível planetário.. As comunidades sobreviveram às primeiras levas de emigrantes, existem com caraterísticas bastante semelhantes, acompanhando os movimentos migratórios, os de oitocentos, ou mesmo anteriores, tal como os contemporâneos, e podem ser consideradas a nossa última descoberta Até ao século XX, poucos investigadores se deram conta da existência das comunidades (ou "colónias" de emigrantes, como então se dizia) - Afonso Costa, Emídio da Silva... E mesmo eles não se aperceberam do seu significado, da sua capacidade de sobrevivência no encadeamento de gerações, ou seja da sua estruturação como autêntica Diáspora. Diáspora sem exílio, mas nem por isso com não menor apego aos valores matriciais, que se vão passando à descendência como herança.. 6 - A descoberta das comunidades coincide com o fim do império, e não certamente por acaso .Ninguém o enunciou melhor do que o Primeiro Ministro Sá Carneiro, em 1980: "Portugal foi um país de colónias, hoje é um país de comunidades"." Uma Nação de Comunidades, uma Nação populacional". Ou numa sua inspiradora definição, em que acentua valores imateriais da sociedade civil: "Portugal é mais uma Cultura do que uma organização rígida". É nesse ano de 1980 que surge no organograma do Governo, consequentemente, pela primeira vez uma Secretaria de Estado da Emigração e das "Comunidades Portuguesas", e que se procura desenvolver, articulando-as, mas distinguindo-as, com meios próprios, políticas sociais para a emigração, e políticas de dominante cultural para a Diáspora, representada num Conselho Mundial das Comunidades Portuguesas. Todavia, já anos antes, por iniciativa do 1º Presidente eleito General Ramalho Eanes o substantivo "comunidades" começara a integrar a denominação oficial do 10 de junho : Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesa. É o momento em que se anuncia o Portugal moderno, na sua perfeita dimensão humana e cultural - uma cultura viva e em em expansão universal. Orador nas comemorações solenes dessa data, VMGodinho di-lo com meridiana clareza : "Portugal é mais do que o império que se fez e desfez, está presente com os Portugueses, onde quer que vivam" (cito de memória). 7 - Os governantes, os académicos, os cidadãos em geral, podem e devem reconhecer este mundo português, com a dimensão universalista que confere à Nação Portuguesa, na continuidade de uma aventura histórica que organizações da sociedade civil, com os seus fins e meios próprios, tomaram como missão sua. E, porque assim foi e assim é, há que atribuir todo o mérito pela existência - fundação e preservação - das comunidades, verdadeira extensão extra-territorial do País, aos emigrados, não ao Estado. Eles partiram, mas não se perderam na dispersão geográfica, fatalidade prevista pela sabedoria popular e académica... Eles não abandonaram Portugal, levaram-no consigo, como tão finamente intuiu Jaime Cortesão. Reuniram-se, e, em cada novo destino, dando provas de uma propensão associativa muito superior à que revelam no país, recriaram em instituições semelhantes àquelas que conheciam, verdadeiras sociedades portuguesas, com os seus costumes, modos de estar, idioma,crenças e valores, em suma, fidelidade às raízes e à Pátria - e uma espantosa capacidade de transmitir a herança cultural, de preservar a vida das comunidades, num longo encadeamento de gerações. Ao invés do que julgaram os académicos mais interessados pelo fenómeno, do ponto de vista sociológico (como os já referidos Professores Afonso Costa e Emídio da Silva), não se tratava de um movimento saudosista de emigrantes, estreitamente nacionalista, e destinado a apagar-se no termo do seu trajeto pessoal. Daí o podermos falar de Diáspora! 8 - Apontar a existência das comunidades, colocá-los no cerne do discurso político sobre a emigração (um pouco como um seu sinónimo), não significa conhece-las rigorosamente. A maioria dos portugueses, incluindo políticos, jornalistas, funcionários, que delas falam com desenvoltura, nunca as visitaram nos seus centros nevrálgico, nem participaram nas suas atividades concretas, nem leram os seus jornais...Vão, assim, a França, à Africa do Sul ou ao Brasil, sem se aperceberem do espaço português que lá se nos oferece... Aliás, podemos ir mais longe e afirmar que as comunidades também não se conhecem nem colaboram entre si, fora das fronteiras de um país (ou, até só de uma região, de uma cidade..). . Eu própria, quando por dever de ofício, há quase 40 anos, comecei o meu roteiro de contactos - que não mais terminou - por este outro Portugal sem território, me vi surpreendida, nas viagens circulares, em que ia e vinha, atravessando mares e continentes. sem nunca me sentir no estrangeiro - saíra de casa, como se nunca tivesses saído. De princípio, tudo me parecia irrealidade, até me familiarizar e me apaixonar por essa realidade, por esse outro Portugal. 9 - Esse "Portugal maior" não é um "troppo" de retórica, nem um mito pós colonial.E também não é um guetto de inadaptados, de mal com a terra que deixaram e com aquela onde se encontram. É o Portugal recriado pelo Comendador António Braz e por Portugueses da sua estirpe, ao longo de séculos. Tem a sua grandeza, o seu espírito, a seu fraternalismo. Ele é um expoente máximo dessas virtudes, que são comuns a milhões de compatriotas, os que as viveram no passado, como os que hoje as transportam para o futuro. É preciso afirma-lo, contrariando ideias feitas sobre a emigração. Até em organizações e cimeiras internacionais (como as "conferências dos ministros responsáveis pelas migrações no Conselho da Europa...) constatei uma tendência a desvalorizar o associativismo de imigrante, vendo-o nessa perspetiva - - que procurei combater ativamente com o "paradigma português" - um movimento associativo, que , um pouco por todo o lado, começa por ser um poderoso fator de apoio à integração individual e vai sendo, em cada fase do ciclo migratório um verdadeiro espelho do percurso coletivo. Não é, nem pode ser este semelhante em economias e sociedades que oferecem oportunidades muito diversas aos respetivos imigrantes, tendo em conta a sua formação e qualificações, à partida bastante homogéneas - numa grande maioria, trabalhadores rurais e operários, com baixa escolarização. A longa experiência portuguesa de dispersão mostra que as economias mais desenvolvidas, como as do velho continente europeu, são as mais adversas à ascensão social, quando comparadas com as facilidades à iniciativa individual, empresarial, no chamado "novo mundo", onde se fizeram, logo na primeira geração, as médias, as grandes e as extraordinárias fortunas. E, naturalmente, o nível de prosperidade, o estatuto social dos sue membros, refletem-se na dimensão do todo institucional das comunidades em concreto. Há, ainda hoje, a par das associações que recriam a atmosfera de uma pequena aldeia portuguesa tradicional, as grandiosas instituições beneficentes, culturais ou´desportivas do Brasil, da África do Sul, da Venezuela ou Califórnia. Todas são constitutivas de comunidades em sentido orgânico em que se sedimenta o espaço extra-territorial da Mátria, recriado e projetado com os mesmos objetivos essenciais, prosseguidos com meios e em círculos de influência muito díspares. Em suma, o Impulso que os determina é sempre a vontade de serem, no seu círculo local, à medida das suas possibilidades, presença cultural portuguesa, ponte entre duas sociedades em que, por igual, se revêm e de que se consideram plenamente parte. . A dupla nacionalidade, adotada em 1981, no quadro de uma política para as comunidades da Diáspora, vem, afinal, apenas, subsumir esta realidade. Não é uma utopia, corresponde à vida, a sentimentos profundos de dupla pertença - integração sem assimilação. 10 - O Comendador António Braz é, como disse, um rosto inesquecível deste Portugal redimensionado pela expansão das suas comunidades da emigração, pelo querer e portuguesismo da sua Gente, Foi nesta faceta de "construtor de comunidades" que o conheci, em 1980, e aprendi a admirá-lo e por isso, de entre todas as que poderia escolher, a saliento. E também porque se orna mais fácil, dando o seu exemplo, falar destas comunidades, do significado que assumem para o País, como ponte, feita de uma infinidade de pontes a ligar-nos na geografia humana, pontes lançadas entre um passado e um futuro português... . Sim o seu exemplo! As virtudes que reconhecemos aos nossos antepassados - a natural capacidade de aceitar e ser aceite pelos outros, de os envolver num trepidante intercâmbio de produtos, de instrumentos, técnicas e saberes, levados de continente a continente. Com moderno empresário foi isso mesmo o que conseguiu, levando ao sul da África, tradições da América do Norte! Como cidadão, soube, da mesma maneira, lutar pelo progresso, fazer amigos, grangear prestígio, que repartiu com a sua comunidade e o seu País. Criou associações, fundou um jornal de grande qualidade, (um dos melhores de todo o espaço da lusofonia!). Era,em fins do sec XX, o grande patriarca da comunidade portuguesa da Àfrica. Quem mais teria conseguido dar às comemorações da passagem pelo Cabo da Boa Esperança o seu momento mais alto, com a simbólica oferta de um monumento a Bartolomeu Dias,colocado no mais nobre lugar da capital da República, face ao Union Building? Uma celebração da História, que é uma "prova de vida" do Povo que fomos e ainda somos!

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