maio 20, 2018

DA EMIGRAÇÃO ATUAL À DIÁSPORA FUTURA

O tema da emigração portuguesa é, para mim, que tenho trabalhado neste setor ao longo das últimas 3 décadas, uma escolha que sugeri, sobretudo porque é bem atual. Com uma singularidade: é atual há mais de 500 anos! . Sabemos quando e como começou, mas não vemos o seu termo na linha do horizonte .Começou com a Expansão, com um projeto régio de controlo dos caminhos marítimos do comércio e de colonização de vastos territórios, mas continuou em ciclos intermináveis de expatriação, que foram desígnio ou necessidade individual. E, sobretudo após o declínio do que poderemos chamar o 1º império português, o do Oriente, com a concentração de esforços na construção do império brasileiro, de tal forma, se interligaram, de facto, os processos colonização e emigração, que se torna impossível aos historiadores traçar com nitidez as franteiras entre um e outro - tarefa que do ponto de vista teórico, jurídico, pareceria fácil, mas que o não é numa perspetiva sociológica e política. Na verdade, emigrava-se, em larga escala, para essa imensa colónia, muito para além do que a Coroa via como desejável para os seus escopos. Claramente o diz Joel Serrão, ao escrever que o êxodo assumia, de uma forma crescente, um carater puramente migratório. Comprova-o, de resto, a política de restrição ou proibição das saídas, que é, com algumas exceções, uma constante ao longo de séculos de história legislativa, neste domínio. Como salienta Joel Serrão e a maioria dos outros estudiosos deste fenómeno numa apreciação diacrónica, foi esta a única política de emigração que conhecemos tradicionalmente. A revolução de 1974 foi, em matéria de políticas de emigração, a única digna desse nome - e veio revelar a importância daquela antiga e singular coexistência de realidades distintas,ao que julgo com uma grande preponderância de projetos individuais e familiares da "pura emigração", implicou modos de relacionamento entre os povos que deram destinos diferentes, opostos aos impérios de fronteira terrestre, que se desfizeram em novas formações nacionais, e às diásporas, que permanecem, na fronteira cultural, com uma vocação de eternidade, dentro e fora do antigo espaço colonial . A descolonização teve, para além do mais, a virtude de permitir a emergência deste outro mundo da lusofonia e da lusofilia, até então completamente subvalorizado ou ignorado. "Há um Portugal maior do que o império que se fez e se desfez", proclamava numa celebração do Dia Nacional, Vitorino Magalhães Godinho. Pouco depois, em 1980, o Primeiro Ministro Sá Carneiro, reconhecia que Portugal foi um País de colónias, hoje é uma" Nação populacional, uma Nação de comunidades" Ainda que no discurso político a Diáspora possa parecer um sucedâneo de coisa perdidas, nunca o foi , nem é.Já existia autonomamente. Mas poderemos talvez considerar que foi a nossa grande descoberta contemporânea. Uma tardia e feliz viagem de achamento...de encontro ou reencontro com quem lá estava desde há muito, no descaso dos governos... A comemoração do 40º ano passado sobre a revolução do 25 de Abril, que decorreu em 2014, foi, pois,para todos os que se interessam pela complexa e multifacetada problemática migratória na vida nacional, um tempo de reflexão sobre o seu significado para Portugal e para os Portugueses, com a promessa, que viria a ser cumprida, de liberdade e de democracia, não só no território, mas nas comunidades do estrangeiro. Um processo abrangente, para todos os Portugueses, também para os da emigração e da Diáspora. Deles falarei em breves palavras. A revolução do 25 de Abril é, neste domínio, uma data maior, a maior de todas, porque veio romper com os obstáculos de ordem jurídico- administrativa à decisão individual de emigrar, rompendo com políticas multisseculares de limitação ou proibição das saídas - mais ainda para as mulheres do que para os homens. Na verdade, o êxodo sem fim dos portugueses pelo mundo, num contínuo encadeamento de ciclos, não fora, nesse passado longo, como disse, nunca, inteiramente livre. E a democracia nascente vinha também restituir aos emigrantes o seu direito de cidadania, de participação política, contra uma tradição de absoluta exclusão da comunidade nacional, uma verdadeira "capitis diminutio", que os atingia mal atravessavam a fronteira terrestre para viver no estrangeiro. Foi, pois, uma revolução de princípios e conceitos, com imediato reflexo a nível dos direitos individuais. A centralidade dada às questões da emigração revela-se, na cronologia das medidas políticas tomadas nesta área, antes de mais, pela criação, logo em 1974, de uma Secretaria de Estado da Emigração. A nova Secretaria integrava os serviços preexistentes do Secretariado Nacional da Emigração, a partir dos quais se haviam planificado e executado, nas vésperas da Revolução, as primeiras medidas de apoio social e cultural às comunidades do estrangeiro, sobretudo na Europa. Todavia, é com o novo regime que essas políticas embrionárias se vão desenvolver, nomeadamente no que respeita à representação política, à aceitação da dupla nacionalidade, à defesa activa dos direitos dos portugueses, à atenção dada ao associativismo, ao ensino da língua, à informação (alguns anos mais tarde, potenciada com as emissões da RTPI, um privilegiado instrumento ainda hoje subaproveitado), ao apoio ao regresso voluntário ao País, através de um conjunto de benefícios fiscais e de empréstimos a juros bonificados. para aquisição de casa própria ou para lançar empreendimentos - medidas cuja eficácia se viria a comprovar nos anos seguintes. A reinserção de centenas de milhares de portugueses, vindos, sobretudo, de França e de outros países do nosso continente, foi de tal modo por eles planeada neste contexto, que se consumou numa infinidade de regressos "invisíveis”. Estou já a pensar na década seguinte, antecipando avanços conseguidos: a revolução significou, no imediato, a vontade de consolidar um “estatuto dos expatriados”, mas só depois este foi sendo materializado, em novas configurações de direitos, e em práticas, a um ritmo lento, que é o ritmo a que mudamos preconceitos e mentalidades. Há ainda muito por fazer para uma "cidadania de iguais", fora das fronteiras geográficas, isto é, para corporizar o projecto de representação política e de igualdade de direitos no campo social e cultural, erradicando, de vez, o "paradigma territorialista" dominante até 1974. Até então, a ausência no estrangeiro implicava a perda de todos os direitos políticos e da própria nacionalidade (se os portugueses voluntariamente adoptassem a de outro país e, no caso das mulheres, mesmo contra sua vontade, automaticamente, pelo casamento com estrangeiros) e\ de outros direitos, como o do acesso ao ensino da língua, de que o Estado nacional não curava - as primeiras políticas de intervenção, em meados do século XX, limitavam-se ao acompanhamento da viagem atá ao ponto de chegada, onde os emigrantes ficavam entregues a si próprios. Foi a dinâmica do associativismo, que, nos países de acolhimento, soube, quase sempre e por todo o lado, substituir-se ao Estado. O trânsito para o" paradigma personalista", na definição de Bacelar de Gouveia, ir-se-á concretizando num estatuto de direitos de cidadania à medida da Nação e não só da terra portuguesa. Um novo Direito, um "acquis" da Democracia. O nº 1 do art. 46º da Constituição de 1976 estabelece que : "Todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos políticos do país, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos". Pela primeira vez, os portugueses emigrados são eleitores de representantes na Assembleia da República, mas não ainda com um “voto igual”. De facto, o nº 2 do art. 152º, restringe a aplicação do sistema proporcional aos círculos territoriais e o regime de exceção vai servir para impor, na lei eleitoral, um teto de apenas quatro representantes em dois círculos próprios da emigração, europeia e transoceânica, com menos de 2% do total dos membros da Assembleia, para uma população que se estima em 30% - embora se deva reconhecer que são muito menos de 30% os potenciais recenseados no estrangeiro. Nos outros actos eleitorais, a Constituição de 1976 exigia a residência no território nacional (art. 124 para o PR) ou na área territorial da autarquia (art. 246º nº1 para as freguesias e art. 252º para os municípios). No que respeita às regiões autónomas, não há dispositivo semelhante, mas a questão não foi equacionada nos respectivos estatutos político administrativos. O sufrágio na eleição presidencial viria a ser alcançado, entre públicas controvérsias e difíceis negociações inter partidárias, na revisão Constitucional de 1997, com as exigências formuladas no nº2 do art. 121: "A lei regula o exercício do direito de voto dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, devendo ter em conta a existência de laços de efectiva ligação à comunidade nacional". Mais restritivo é ainda o nº 2 do artº 115, que prevê a sua participação nos "referenda" apenas "quando recaiam sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito". Nos referendos já realizados os emigrantes não foram consultados, por terem sido vencidas as propostas que lhes davam esse direito. Não poderei alongar-me, aqui, sobre as vicissitudes de processos de legiferação, em que fui interveniente, ao longo de mais de 20 anos, sempre em favor do alargamento do estatuto político dos expatriados, a nível nacional, autonómico e autárquico, com base em exemplos do direito comparado - como o de Espanha que atribui aos seus expatriados o direito de voto a todos os níveis. Direi, apenas, em síntese que, a meu ver, entre nós, os partidos atuaram, regra geral, de acordo com as suas subjectivas expectativas sobre o sentido de voto dos emigrantes. Os que se consideravam por ele prejudicados desenhavam o cenário fatal de uma enorme expansão do eleitorado da diáspora, artificialmente engendrada pelos prosélitos do sufrágio. Ao fim de 40 anos de experiência democrática já não restam dúvidas sobre o irrealismo dos receios: no estrangeiro o universo eleitoral é reduzido e estável, com cerca de 260.000 recenseados e cada vez maiores taxas de abstenção. Na Espanha, só a Galiza tem muito mais eleitores do estrangeiro e, sobretudo, muito mais votantes. Creio que o clamor sobre a anunciada avalanche de votos "de fora", que, redobrou a partir da aprovação da Lei nº 73/8, popularmente chamada "lei da dupla nacionalidade", se ficou a dever a confusão entre emigrantes recentes - os que, tendo passaporte português, podem recensear-se voluntariamente e, em larga maioria, note-se, não o fazem - e os da Diáspora, cuja ligação ao País passa por laços afectivos e pela intervenção cultural, não pela política. A meu ver, há que deixar aos próprios emigrantes e seus descendentes a escolha da forma de manifestação dos seus sentimentos de pertença, não sendo, pois, legitimo nem desvalorizar nem pretender retirar à minoria de participantes na vida política os seus direitos inalienáveis, em nome de uma maioria que se reconhece em outras formas de "ser português". Um organismo criado na confluência destas diferentes vertentes de afirmação de pertença foi o Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), nos moldes originalmente propostos pelo DL nº 373/80. Nele tinham assento representantes eleitos das associações, independentemente de serem ou não de nacionalidade portuguesa. Era uma órgão consultivo do Governo, presidido pelo MNE, uma plataforma de encontro e articulação de acções entre comunidades dispersas e praticamente desconhecidas entre si, e de co-participação nas políticas destinadas a um mundo tão plural. Um órgão de consulta pensado para as duas vertentes, para a emigração antiga, com a força das suas aspirações e projectos culturais, e para a mais jovem, com a pressão dos seus problemas e reivindicações sociais. Nem sempre foi fácil o diálogo entre ambas e teria sido talvez preferível, como continua a propugnar Adriano Moreira, a instituição de estruturas específicas para cada uma delas. No CCP, a última acabou por ter mais visibilidade e mais voz, deixando na sombra os consensos naturais no domínio cultural - que é sempre, por excelência, o lugar de uma solidária partilha das raízes matriciais - e focando, essencialmente, as questões laborais, sociais e políticas do quotidiano, as divergências ideológicas e partidárias, que, fora como dentro do país, se confrontavam na sociedade portuguesa. Foi, assim, o espaço de uma esplêndida vivência democrática, que, porém, desde a primeira hora, marcou o Conselho com uma imagem de conflitualidade mais do que de cooperação e solidariedade, que, por sinal, existiram em muitas matérias. Terá sido essa aparência mediática que, a partir de 1988, levou o governo a suspender as suas convocatórias, a silencia-lo, antes de o substituir por uma estrutura insólita, composta de múltiplos colégios eleitorais, que era patentemente inoperacional. Em 1997, o CCP ressurgiu em novo figurino, passando a ser eleito por sufrágio directo e universal, ou seja, reservado a emigrantes com nacionalidade portuguesa. O Conselho teve, assim, várias vidas entrecortadas, um percurso acidentado, em cuja fase inicial pude intervir mais diretamente, como membro do governo, em representação do MNE. Depois, por inerência de funções, como deputada do círculo de “Fora da Europa”, continuei a colaborar nos trabalhos de conjunto, acreditando sempre na sua capacidade de ser o grande "forum" democrático da emigração. Uma espécie de 2ª Câmara consultiva, uma "assembleia" - título que passou a assumir, ultimamente, o antigo "Conséil" francês. Uma instituição que deveria ser consagrada na arquitectura da Constituição, para ficar ao abrigo do poder discricionário dos governos. O tema foi discutido na AR, em 2004, por iniciativa da Sub comissão das Comunidades Portuguesas, a que eu, então, presidia . A ideia persiste, foi ali analisada construtivamente por eminentes constitucionalistas e pode vir a ser lei, um dia, não sabemos se e quando... No domínio das políticas da emigração e da diáspora avança-se a par e passo. Falar de uma e outra, em conjunto, não significa esquecer que há uma gradação no conhecimento e reconhecimento público, que subvaloriza a realidade da diáspora face à da emigração do presente. Os movimentos migratórios sempre foram vistos, e ainda o são, numa perspectiva principalmente economicista. - envio das remessas, investimentos e benfeitorias locais, o chamado "comércio étnico", tudo o que é materialmente palpável - desvalorizando outros aspectos, como o esforço para expandir o espaço cultural português na densa rede de instituições, de que são feitas as comunidades portuguesas. Na ligação entre movimentos migratórios e diáspora, aqueles surgem como causa (ou concausa) e esta como sua dimanação, graças à enorme propensão associativa, com que nos temos singularizado, em todos os tempos e lugares. Comunidades organizadas, espaços de vivência nacional... Sabemos que a revolução de 74 veio derrubar uma ditadura, pôr fim ao impasse de uma guerra sem sentido e sem futuro, fechar um ciclo colonial e repor o Estado nas suas fronteiras geográficas europeias. Não veio, antes pelo contrário, pôs fim a essa presença universal dos portugueses, que sempre teve "vida própria" numa espontânea convivialidade, em relações de vizinhança e de cooperação, à margem dos desígnios ou poderes do Estado. É certo que a nossa tradição migratória começou o seu curso ligado ao projecto do Estado de expansão marítima e de colonização de possessões, mas logo o transcendeu. Um projeto estatal aparentemente desmesurado e para o qual não havia paradigma, não havia lições a aprender... Era enorme o risco de perder o certo pelo incerto, mas nunca faltou gente para servir a incerteza da aventura, indo cada vez mais longe, dominando um todo geográfico cada vez mais vasto, a partir de uma população de somente cerca de um milhão pessoas. Logo no século XVI, o movimento envolve quase um terço da população total – mais de 280.00 homens, segundo Vitorino Magalhães Godinho. Uma impressionante média anual, que sobe no século seguinte para cerca de 8.000, no século XVIII para 40.000 e atinge novos máximos nos séculos XIX e XX. Estamos a falar, globalmente, de números na ordem de milhões. E as partidas assumiam, como disse, cada vez mais, o carácter de aventura individual, privilegiando o imenso Brasil. As políticas que procuravam regular os fluxos migratórios iam inevitavelmente no sentido de os restringir, ou mesmo de os proibir. Movimentos incessantes, uma autêntica cultura de expatriação... Talvez por isso os historiadores da emigração portuguesa (Joel Serrão, por exemplo) não resistam a olhar as partidas ininterruptas de 500 anos e não apenas de 150 ou 200 anos de migrações, em sentido estrito. De facto, não se consegue traçar, com precisão, os contornos da passagem de um ao outro dos fenómenos – o último a suscitar maior confronto entre vontade do Estado e a do povo, entre uma emigração que os governos não pretendiam naquela dimensão, ou para aquelas paragens. Ou que queriam apenas temporária, mas que os protagonistas converteram em definitiva, sobretudo quando se generalizou a saída de mulheres, de famílias inteiras. O regresso definitivo era a parcela menor e não aumentou após a independência do Brasil, que continuou a atrair vagas (crescentes...) de portugueses. As duas grandes migrações de retorno aconteceram só na segunda metade do século XX: a da Europa, voluntária, bem preparada, gradual, ano após ano, atingindo o auge nas décadas de oitenta e noventa - e a de Africa, no curto período da descolonização, súbita e dramática, com cerca de 800.000 retornados a Portugal e muitas dezenas de milhares a reemigrar. O Brasil foi, então, único país que abriu as fronteiras a todos os portugueses, sem olhar a idade, formação profissional, saúde ou fortuna. Um gesto de fraternidade muito concreto, a não esquecer! O retorno de África vinha em contra corrente, depois da maior emigração de sempre, que fora a dos anos cinquenta e sessenta, apenas estancada, em setenta, pela crise económica mundial. Saíram então quase 2 milhões (para a Europa mais de 1.200.000, para novos destinos transoceânicos, como a Venezuela, Canadá, RAS, Austrália, mais de 500.000). A chegada, em 74/75, de quase um 1.000.000 de portugueses parecia uma situação impossível de gerir. Não foi. Fica para a nossa história e para exemplo geral, o modo como superaram perdas e mágoas inenarráveis, encontraram lugar no país e contribuíram para o seu desenvolvimento. Sucesso assente em políticas de integração, na solidariedade familiar, mas principalmente nas próprias pessoas, no seu perfil empreendedor, na sua vontade de recomeçar a vida, num meio tão diferente, relativamente tão pequeno. Impressionante foi a sua aceitação local, o seu ascendente, revelado no número dos que foram eleitos para cargos autárquicos, logo nas primeiras eleições livres. Um tema a merecer mais estudo e mais destaque do que o que lhe tem sido dado. É sobre as causas sociais e económicas da emigração portuguesa que as atenções se têm concentrado. Há as estatísticas das partidas dos homens, a que se juntam as do retorno das remessas. Por trás dessa densa cortina de números, mal se adivinhavam outros feitos, outras verdades. A Diáspora era praticamente ignorada, não só pelos políticos, como pelos tratadistas e investigadores da nossa emigração. Até à convocação dos Congressos das Comunidades de Cultura Portuguesa, em 1964 e 1967, por iniciativa de Adriano Moreira, presidente da Sociedade de Geografia, ninguém dedicara mais do que uns breves parágrafos à existência de comunidades portuguesas, organizadas numa base institucional, que lhes garantia a sobrevivência, para além das primeiras gerações de imigrantes (coisa que ninguém imaginara possível). Ora, de facto, tudo o que políticos e académicos viam como compensação de um êxodo de tamanha dimensão - as riquezas do comércio, da exploração de recursos de vastas possessões, e, em cada época, as remessas de emigrantes, tiveram o seu tempo e com ele se desvaneceram. O que resiste é a parte que escapou à perceção de todos - a criação pelos Portugueses de um incomensurável espaço de lusofonia e de lusofilia, a língua, as comunidades portuguesas, e para além delas, um mundo de memórias que hibernam, à espera de uma chamada, de uma aproximação, para ressurgir. Citando Jorge de Sena :“solúvel e insolúvel este povo, na memória dos outros e na sua própria”. Serão estas as maiores das retribuições de um êxodo excessivo - a virtude do excesso… Em primeiro lugar, a língua. A língua, viva em todos os continentes, é muito mais o resultado desta expatriação voluntária, em massa, e do relacionamento quotidiano entre os portugueses e os seus vizinhos de outras falas, do que do poder soberano exercido num território. O uso da língua não se decreta sem falantes! Veja-se o caso paradigmático do Brasil, para onde foram tantos portugueses, contrariando leis e ditames dos governos, que procuravam canalizar essa corrente migratória para as colónias de África (onde, aliás, nem sequer estavam criadas as condições efetivas para o seu aproveitamento). Medidas polémicas, contra as quais se insurgiram os que viam nas novas correntes migratórias condição necessária para preservar a herança linguística e afetiva num Brasil independente, aberto ao acolhimento de outros europeus. Afonso Costa foi um dos que tomou partido, claramente: "Não cometamos o crime de lesa pátria de embaraçar a emigração para o Brasil ou de ali nos deixarmos vencer por qualquer outro povo migrante". Em causa via, certamente, a língua, sobre a qual Joaquim Nabuco, discursando no Gabinete de Leitura do Rio de J, no 4º centenário de Camões havia proclamado: “A tua glória não precisa mais dos homens. Portugal pode desaparecer, dentro de séculos, submergido pela vaga europeia, ela terá em 100 milhões de brasileiros a mesma vibração luminosa e sonora ” (100 milhões, então, mais de 200 milhões agora!). António Cândido, no 4º centenário da Descoberta do Brasil, celebrado a 19 de Maio, no Teatro de São João, do Porto, enunciara, por outras palavras, a mesma ideia - força: “Temos uma longa vida nacional. Não nos escasseiam meios de a nutrir, não nos falece a coragem para a defender. Mas, se, por fatalidade acabássemos, se (…) uma terrível catástrofe geológica submergisse esta parte do continente europeu (…) lá ficariam no Brasil para sempre, o seu sangue, a sua alma, a sua língua. E, noutro passo: “Poderá a história ser esquecida, poderá o interesse volver-se contrário: resistirá a tudo a afinidade espiritual, a aliança pela língua será eterna.” Língua europeia, americana, africana, asiática, universal. Legado de partilha de vida, de convivência de gente comum, que a força do poder imperial não contaminou… Uma última referência às comunidades da emigração - comunidades inteiramente construídas pelos cidadãos, perante o absoluto descaso do Estado. O fim do império coincide com a atenção dada às comunidades, antes apenas se podendo excecionar as realizações de Adriano Moreira, os dois grandes Congressos, dos quais emergiram a “União das Comunidades de Cultura Portuguesas" e a "Academia Internacional de Cultura Portuguesa". Vitorino Magalhães Godinho afirmou numa celebração oficial do dia 10 de Junho: “Há um Portugal maior do que o Império que se fez e desfez e que é constituído pelos portugueses, onde quer que vivam” Também Sá Carneiro vê um Portugal maior :“Foi uma Nação de colónias. Hoje não é apenas uma Nação territorial, é uma Nação populacional, uma Nação de povo (...)“uma Nação de Comunidades”. “É uma cultura, mais do que uma organização rígida”. A existência da nossa Diáspora precedeu, assim, em vários séculos o seu conceito, o seu reconhecimento. Diáspora que soube organizar-se, para sobreviver, através de um poderoso impulso associativo. No Brasil, o primeiro e o máximo paradigma, com os Gabinetes de Leitura, os Liceus e os Grémios Literários, instituições muito prestigiadas, com as Beneficências e os seus hospitais, que estão entre os maiores e melhores do país, com grandes clubes sociais e desportivos. Por todo o lado onde se fixaram, os portugueses deram vida duradoura a organizações centradas naquelas três áreas (cultura, apoio social, tradições de convívio), associações idênticas nos seus propósitos, apesar de se ignorarem entre si. Semelhança que se deverá ao facto de se inspirarem em modelos da terra de origem. Portugal, o país das migrações sem fim... Assistimos hoje a um dramático recomeço de ciclo , a exigir dos governos o cumprimento dos seus deveres constitucionais em políticas de defesa dos direitos dos emigrantes e de difusão da língua e da cultura. O êxodo dispersa agora os portugueses por uma multiplicidade de países em todos os continentes, acentuando a que já era uma das características da nossa emigração. Mais emigrantes, mais mulheres, esperança de mais diáspora futura, mais Portugal no mundo

maio 16, 2018

SÉRGIO, UM TREINADOR PORTISTA, UM TREINADOR À PORTO 1 - Para mim, festejar um título é sempre subir ao céu (ao céu muito azul), mas o campeonato ganho neste maio de 2018, foi especialíssimo! Fez renascer a esperança no recomeço de um longo ciclo vitorioso, e acordou memórias da primavera de 1956, de um outro campeonato alcançado contra a predestinação, o impossível, ou, talvez, afinal, simplesmente, forças mais ou menos ocultas. 1956! A primeira vitória azul e branca no meu tempo de vida, quando o centralismo nacional ditava o vencedor antecipado, com regras não escritas, mas cumpridas (como nas eleições em ditadura). Só os da minha geração (privilégio da idade) podem comparar, em tudo o que têm de espantosamente semelhante, duas equipas separadas por mais de sessenta anos de história - a de Yustrich e a de Sérgio Conceição. Em ambas, sobressai o treinador, que as impulsiona à sua imagem, unindo um coletivo, em que todos são iguais. Ambas entram em campo de rompante, e partem para o ataque, com a intensidade que o líder lhes inculca, sem nunca vacilar ou desistir. Ambas se apresentam desfalcadas de nomes sonantes, parecendo de menos para o feito enorme que se lhes exige. De fora, poucos acreditam que o conseguirão, porém, eles - Sérgio, como Yustrich, e os seus jogadores - não têm dúvidas, só certezas de alma! Se quisermos ir ao pormenor, poderemos ver no veloz gigante que é Marega um avatar de Jaburú, no artista que é Brahimi o de Hernâni, e em Sérgio Oliveira o de Monteiro da Costa, "quinta essência" da entrega à luta e de orgulho nas cores da camisola. 2 - Um regresso ás origens... de resistência à adversidade e ao desfavorecimento dos poderes instalados. A primeira vida do FCP decorreu, invariavelmente, assim. Mais obstáculos, mais dificuldades, forjaram o seu caráter. Triunfos com a dimensão da utopia, criaram a sua mística. O sumptuoso troféu que o Povo da cidade lhe ofereceu quando, num "match" particular, derrotou o nº 1 do mundo, um Arsenal no apogeu, era já o prenúncio de uma ambição sem limites, que havia de levá-lo ao patamar proibido - o de campeão do mundo de clubes. A segunda vida do FCP começa, (como não poderia deixar de ser), numa revolução libertária, em 1974. A revolução chegou ao futebol, com uma inesperada "viragem a norte" e a marca de Jorge Nuno Pinto da Costa. [44 anos depois, note-se, semelhante rotura está ainda por fazer na política, onde o centralismo, herdado da ditadura, mantém o cerco às atividades económicas, culturais, sociais, fora de Lisboa]. Em liberdade, o FCP pode ser igual, Em igualdade, pode ser superior. Do plano nacional ao internacional. Não era milagre, era organização, modernidade, rigor, liderança... As estruturas organizacionais criavam valores, convertendo jovens desconhecidos, vindos de todo o lado, em estrelas, e apostando em técnicos e treinadores portugueses, que ganharam fama universal - na senda de Artur Jorge e de Mourinho. Dir-se-ia o "toque de Midas"! 3 - A época de ouro teve o seu ocaso numa longa e dura a travessia do deserto de títulos. Em 2017, com o plantel depauperado e um orçamento zero para contratações, por imposição das regras de "fair-play" financeiro, parecia não haver treinador de renome que aceitasse um convite do FCP. E eis que surge em cena um "voluntário", capaz de trocar o certo pelo incerto, disposto a reduzir a metade o valor do contrato que o ligava a um dos grandes de França e pronto para a missão impossível de salvar o Dragão - o seu clube. Sérgio, o resistente, que desde menino soube viver com pouco, conviver com a injustiça e nunca se dar por vencido. Não era, ao que consta, uma primeira escolha, mas foi, sem dúvida muito melhor do que qualquer outra teria sido. À chegada, deixou bem claro que vinha para ensinar, não para aprender. E assim foi. Consigo trouxe, de facto, não só o saber muito de futebol, em termos teóricos e práticos, mas também "a arte de ensinar a arte", de levar cada um a redescobrir-se, na sua capacidade de evolução, não apenas individual, mas como parte de um todo. Não é para qualquer um - é só para génios! Como Mourinho, que, nas primeiras declarações, afirmou que, no ano seguinte, iria fazer do Porto campeão - e fez! - para tal lhe bastando dois reforços do Leiria e um do Setúbal, contratados a custo reduzido, Chamavam-se Derlei, Paulo Ferreira e Nuno Valente, aos quais se juntou o incomparável Ricardo Carvalho, que andava emprestado. Paradigmático, na tradição de Mourinho, o modo como, inteligentemente, conseguiu adaptar as disponibilidades à sua ideia de jogo (ou as táticas às disponibilidades...), como transformou em mais valias, jogadores " descartados" pelos seus diretos predecessores. Recuperação profissional, recuperação humana, numa rota de transcendência, de emoção, que, de imediato, passou às bancadas, e arrastou multidões no movimento imparável para a vitória Assombroso o ensinamento de Sérgio, que vale tanto para avaliar o passado recente, (nomeadamente, a "performance" dos seus antecessores) , como para preparar o futuro, de preferência com ele. Sérgio Conceição foi um jogador que admirei imensamente e um treinador em quem sempre acreditei - o que, em tempos recentes, só com Villas Boas acontecera. No que estava muito bem acompanhada. Antes de ser, nesta segunda veste, entronizado na história do FCP, já ele era o herói do povo. E o povo também jogou neste campeonato!

maio 13, 2018

carta a um primo que não gosta de futebol - SOBRE O MEU FCP CAMPEÃO

Muito obrigada pelo "Vivó Puarto"! No sotaque mais tradicional até pode ser "Bibó Puarto"... O que me faz lembrar um episódio passado com Mário Soares (estou sempre a lembrar-me dele, mas a verdade é que é figura central da maioria das memórias divertidas da minha passagem pelas margens da política). No que respeita a futebol era a tua alma gémea. Não só não o apreciava como o conotava com o velho regime. Quem gosta não pensa assim, a beleza do jogo resiste a qualquer tentativa de aproveitamento político. Eu, por exemplo, com a ditadura só conoto o Benfica, "clube do regime", clube imperial, arrogante, megalómano, símbolo do poder, não do desporto... Voltando à história do Dr Soares: ele não valorizava o espetáculo nos relvados, mas respeitava a instituição, não faltando às comemorações dos títulos, que o FCP, em democracia, passou a ganhar com regularidade. Encontrei-o, várias vezes, no pavilhão das Antas,naturalmente, mas num ano, não sei porquê. houve, também, celebrações a sul, no casino do Estoril. E lá estava o Presidente Soares e eu ao seu lado, em representação da Assembleia. O programa foi absolutamente atípico - não houve discursos, nada... apenas o jantar, acompanhado por um "show", repetitivo, pois os diálogos e as canções eram-nos apresentados em português e, depois, em inglês... Tenho uma vaga ideia que envolvia piratas... O Dr Soares suportava o "show" de olhos fechados, como que a dormitar, e, quando as as luzes se apagavam, e "acordava", logo que ouvia o som das palmas. Até que, do fundo da sala, alguém soltou um brado, que encheu a sala: "Biba o Puarto, c-----!". (C----- , a versão branda do gripo de guerra, que, nas celebrações deste ano, nos Aliados, fez furor). O Dr Soares abriu os olhos, voltou-se para mim e disse: "Até que enfim, alguma coisa de genuíno!" A Dr.ª Maria Barroso pertencia à mesma escola de pensamento. Custava-lhe ver o sobrinho Eduardo Barroso a alardear, o seu clubismo (sportinguista) na TV e parecia-lhe estranho o facto de ele ser muito mais conhecido no país inteiro pelo seu expressivo discurso nesses programas ligeiros de comentário do que pela sua excecional classe como cirurgião (pioneiro dos transplantes, em Lisboa, como o nosso primo Mário foi, a norte, no Santo António). O Alfredo Barroso é, também, mestre nesta ciência e sportinguista, como o primo Eduardo, embora muito mais comedido na análise. O tio Mário Soares, pelo contrário, fazia gala em revelar o seu desinteresse na matéria. Segundo me contou um ilustre dirigente portista, o Dr. Soares, que assistia assistia a um jogo no camarote presidencial, no momento em que as equipas entravam em campo, perguntou-lhe, com toda a naturalidade: "Quantos são de cada lado?".(Esta é história, que não posso garantir, não a testemunhei...). Eu nunca pertenci ao "plantel" daqueles programas semanais de grande audiência, exceto um,da RTP, em que os comentadores eram numerosos e chamados rotativamente, de longe a longe, e em que me recordo de ter coincidido, com José Lello e com Alfredo Barroso. Foi há tantos anos, que já me esqueci como se chamava... Mas estive, muitas vezes, em outros esporadicamente dedicados ao futebol, em entrevistas do "Expresso da meia noite", das manhãs e tardes da RTP/Porto, da Sónia e do Jorge Gabriel, do Malato e da Merche, ou, em Lisboa, da Maria Elisa. E, durante mais de um ano, participei num programa semanal, de 2ª a 6ª feira, na Rádio Comercial, com um título de sabor sulista: "Os cinco violinos". Cada um dos cinco intervenientes tinha um dia da semana reservado para o seu apontamento de um a dois minutos - lido pelo telefone. Como eu, então, viajava constantemente, falei de destinos tão longínquos como Hong-Kong, Buenos Aires, Los Angeles, Tóquio... ou mais próximos, como Paris e Bruxelas, sem falhar uma única vez... Foi obra!. Com o Zé Lello, num desses debates, a figura central foi o Jardel, na sua última fase, já de declínio no Sporting. Mesmo tendo deixado o FCP, Jardel continuava sendo o meu ídolo e, ali, me tornei a única voz que se levantava em seu favor, com os argumentos de um afeto antigo... No intervalo, enquanto tomávamos café. o Zé Lello informou-me, direto e sintético : "Manuela, já não posso mais ouvi-la a falar do Jardel - parece a Santinha da Ladeira!". Com a Merche, o pomo da discórdia foi o celebrado Ronaldo. Ela considerava-o o melhor do mundo e pedia apoios para uma espécie de "abaixo-assinado", que corria mundo, a exigir esse reconhecimento. Eu, pelo contrário, achava que superior a Ronaldo, e muito mais influente na produção de jogo da seleção, era Deco, o melhor jogador que vi em campo, em toda a minha vida. Só tarde demais, depois de ter discorrido, alegremente, sobre as superiores qualidades do meu favorito, é que, de súbito, me lembrei que a Merche era namorada de Ronaldo! Ela, muito simpaticamente, não levou a mal as minhas palavras, mas, em conversa, depois que as luzes do estúdio se apagaram, perguntou-me, com amável curiosidade: "A Manuela é amiga do Deco?". Esclareci que não, só o conhecia a muitos metros de distância, do relvado dos estádios... Com o Jorge Gabriel, na véspera de um FCP-SCP, em que o palco estava cheio de adeptos das duas claques, com os seus coloridos cachecóis, o dissenso foi sobre guardas-redes, o do Sporting, que era a escolha de Scolari para a seleção (uma escolha que nos custou o campeonato da Europa...), e o do Porto, o mítico vitor Baía. Como o tempo estava esgotado, a imagem passava já com as letras e o som do genérico, eu recorri ao único meio ao dispor, levantei-me e gritei "Baía", logo secundada pela claque azul e branca, aos saltos, no que eu os acompanhei. A imagem falou por si - um final feérico. Foi impulso, porque, em regra, na TV sou mais contida... Nessa tarde, uma amiga da minha mãe telefonou-lhe a contar que me tinha visto, no ecrã, a dançar! Tudo isto te deve parecer bizarro... Se, porém, no futebol não partilhámos gostos, já no óquei em patins estamos e estivemos bem sintonizados, desde crianças. Também eu seguia, pela rádio, os relatos da seleção. O entusiasmo clubista era incomparavelmente menor, pelo menos aqui no norte, porque os campeões eram lá de baixo (Paço de Arcos, etc). Um dia, quando a seleção estava em estágio, escrevi aos jogadores, a pedir autógrafos e eles responderam-me, de imediato. Guardei sempre a carta como um tesouro, que, agora, tenho de procurar. No colégio do Sardão, as infra estruturas desportivas eram esplêndidas - parecia um colégio inglês: "court" de ténis, ginásio polivalente, mesas de ping-pong, campos de volei, andebol e basquetebol, pistas para bicicletas e até um ringue de patinagem. Só faltava a piscina. Lugar já havia, muito bonito, rodeado de uma pérgola, mas a obra não avançou por questões atinentes aos bons costumes... Entre as freiras, a ala conservadora e a progressista nunca se entenderam quanto ao traje: fato de banho normal ou um modelo especial, com saia até ao joelho (como era obrigatório na ginástica e nos desportos de campo). O pior era o ritmo de vida do internato, o desconforto dos dormitórios, os duches de madrugada, a missa matutina, a anteceder o pequeno almoço, as marchas de braços atrás das costas pelos longos corredores, o confinamento (embora numa grande casa rodeada de uma enorme quinta, que terá pertencido a Almeida Garrett). O melhor era desporto, que, contando os tempos de recreio, me ocupava várias horas por dia. Horas felizes! Nem sei se era particularmente dotada para a prática desportiva, ou não. Penso que não, mas compensava qualquer défice com velocidade e entusiasmo, levando tudo (e todas) pela frente. Temível... No futebol, imitava o Séninho, um célebre extremo do FCP, que batia todos na corrida, e arriscava sair pela linha de cabeceira, com a bola... O Séninho acabou bem a carreira, do Porto transitou, com um contrato milionário, para a América, onde, então, o "soccer" dava os primeiros passos. Para a cultura americana, falta ao "soccer" o condimento da violência, que abunda no futebol americano e no óquei sobre o gelo, que não é muito mais "civilizado". A última vez que assisti a um jogo de óquei foi em Toronto e, por sinal, a equipa mais dura estava a ganhar, e o espetáculo decorria mansamente. Para compensar a sensaboria, os grandes ecrãs, suspensos do teto, transmitiam imagens terrivelmente agressivas de jogos anteriores, para "animar a malta". Fiquei estarrecida... O futebol feminino, que só conheço pela TV, é muito bonito, menos violento, menos faltoso e cada vez mais tecnicista. EUA e Canadá apresentam excelentes seleções, a par da China, da Alemanha, da Suécia, do Brasil... Nós estamos longe do topo, mas vamos evoluído. Todavia, as Doroteias do Sardão, nos anos 50, tinham colocado o futebol no "index". Proibição e penas pesadas para chutos na bola! Nada que me dissuadisse de organizar partidas clandestinas. Em geral, começávamos pelo legalíssimo andebol, que passava a futebol, logo que víamos a vigilante, sentada num canto e absorvida em leituras e orações. Um dia, porém, numa pausa da leitura, houve uma que percebeu a diferença entre as duas modalidades... Presumiu - e bem - que a responsável pelo desacato era eu e denunciou-me. Fui, de imediato, levada ao gabinete da Madre Superiora, em estado de crescente preocupação com a sentença que me esperava. Os castigos rotineiros pouco me ralavam. O mais comum era escrever qualquer coisa edificante, umas 500 vezes. Neste caso, poderia ser: "As meninas bem comportadas não jogam futebol". Ou, em alternativa, ficar isolada nas pequenas celas onde decorriam lições de piano - fora do horário das lições, naturalmente. Durante uma ou duas horas, era coisa muito agradável, ca companhia de um livro ou de um caderno para escrever (uma vez deixei-me lá ficar pela noite dentro e as freiras andaram angustiadamente à minha procura e, quando deram comigo, esquecida no quartinho do piano, pediram-me desculpa, em lágrimas, e, de seguida, deram-me um jantar melhorado. Na verdade, a porta estava aberta, eu podia ter saído, mas estava distraída, estava bem... Porém, castigo para delitos mais graves podia chegar à proibição de saída no fim de semana. A bomba atómica dos castigos, raramente aplicável, porque, na verdade, atingia a família inteira. Pessimista, era o que eu antecipava no trajeto de ida ao encontro da Superiora. Ela recebeu-me, com um inesperado sorriso e disse-me palavras ainda mais inesperadas. Em síntese, isto: "Manuela, o futebol não é um desporto próprio para meninas. Não podes organizar jogos com as tuas colegas. Nunca mais! Mas eu compreendo a tua paixão pelo futebol e por isso, para ti, vou abrir uma exceção. De hoje em diante, tens a minha autorização para jogar - as outras não! As "Madres" também podem ser pessoas sensíveis e com sentido de humor... Para mim, foi um momento inesquecível, porque lhe achei muita graça e porque, assim, ficavam garantidas as minhas 48 horas de liberdade e uma provável excursão dominical ao estádio das Antas. Claro que continuei a organizar torneios de futebol, em que era a maior goleadora, e, que me recorde, nunca mais fui apanhada em flagrante delito. Pertenci sempre ás "seleções" do colégio, nos desportos permitidos, o que não significava grande coisa. Apesar de termos um excelente treinador (Edgar Tamegão, campeão em não sei quantos desportos). a matéria prima era tão fraca, que nunca fomos longe. Tal como a Raquel fico nervosa quando pressinto risco de fracasso nas minhas equipas e, cada vez mais, evito enervar-me... Noutros tempos, aguentava firma na bancada. Tenho, há muitos anos, o meu lugar anual na bancada central do Dragão e estou prestes a receber o meu emblema de ouro (podiam ser muitos mais, não fosse o hiato, de que falo adiante). De qualquer modo, nos jogos mais emocionantes, cedo o meu cartão a uma afilhada, bisneta da Tia Carolina, a Teresa, que é tão "fanática" como eu, tem menos cinquenta anos e nervos de aço! No lugar ao lado, senta-se o irmão, António. Faz anos em julho, mês de renovação de assinaturas, pelo que lhe ofereço o lugar anual como presente. É o meu companheiro habitual no Dragão, quando lá vou, como, nos meus tempos de juventude, eram os seu bisavô Serafim e o seu avô António. Não falhávamos um jogo nas Antas. Em criança era com o meu pai que ia ao estádio, e foi ao seu lado que festejei o "meu" 1º título do FCP, em 1956 (depois de 13 anos sem conhecer a euforia da vitória). O treinador era Yustrich, um brasileiro, de Minas Gerais, de ascendência alemã. O nosso ídolo! Um vanguardista, no que respeita a treino, estágios, concentração na véspera dos jogos - na altura. o "jamais vu"... As vedetas de então ensaiaram uma variante da "revolta na Bounty". Foram todos borda fora, e, depois, ele conseguiu fazer uma equipa fantástica. Homem de afrontamento, afrontou também a direção, o presidente Dr Cesário Bonito e os outros. Acabou despedido, com p povo azul e branco, ao seu lado, então e para sempre! Muitos portistas, entre eles o meu pai, ano auge da indignação, rasgaram o cartão de sócio. Portistas de alma, mas não de cartão... No ano seguinte, o FCP voltou à rota descendente, e poucos títulos nos deu, até aos tempos novos da revolução de 74. No futebol, a revolução foi capitaneada por Pinto da Costa. O centralismo perdeu, a regionalização avançou. Na política, não! 44 anos depois, Portugal continua a ser dos países mais centralizado da UE, uma espécie de México da Europa... E, por hoje, basta de futebol! Prometo não voltar ao tema.