maio 13, 2018

carta a um primo que não gosta de futebol - SOBRE O MEU FCP CAMPEÃO

Muito obrigada pelo "Vivó Puarto"! No sotaque mais tradicional até pode ser "Bibó Puarto"... O que me faz lembrar um episódio passado com Mário Soares (estou sempre a lembrar-me dele, mas a verdade é que é figura central da maioria das memórias divertidas da minha passagem pelas margens da política). No que respeita a futebol era a tua alma gémea. Não só não o apreciava como o conotava com o velho regime. Quem gosta não pensa assim, a beleza do jogo resiste a qualquer tentativa de aproveitamento político. Eu, por exemplo, com a ditadura só conoto o Benfica, "clube do regime", clube imperial, arrogante, megalómano, símbolo do poder, não do desporto... Voltando à história do Dr Soares: ele não valorizava o espetáculo nos relvados, mas respeitava a instituição, não faltando às comemorações dos títulos, que o FCP, em democracia, passou a ganhar com regularidade. Encontrei-o, várias vezes, no pavilhão das Antas,naturalmente, mas num ano, não sei porquê. houve, também, celebrações a sul, no casino do Estoril. E lá estava o Presidente Soares e eu ao seu lado, em representação da Assembleia. O programa foi absolutamente atípico - não houve discursos, nada... apenas o jantar, acompanhado por um "show", repetitivo, pois os diálogos e as canções eram-nos apresentados em português e, depois, em inglês... Tenho uma vaga ideia que envolvia piratas... O Dr Soares suportava o "show" de olhos fechados, como que a dormitar, e, quando as as luzes se apagavam, e "acordava", logo que ouvia o som das palmas. Até que, do fundo da sala, alguém soltou um brado, que encheu a sala: "Biba o Puarto, c-----!". (C----- , a versão branda do gripo de guerra, que, nas celebrações deste ano, nos Aliados, fez furor). O Dr Soares abriu os olhos, voltou-se para mim e disse: "Até que enfim, alguma coisa de genuíno!" A Dr.ª Maria Barroso pertencia à mesma escola de pensamento. Custava-lhe ver o sobrinho Eduardo Barroso a alardear, o seu clubismo (sportinguista) na TV e parecia-lhe estranho o facto de ele ser muito mais conhecido no país inteiro pelo seu expressivo discurso nesses programas ligeiros de comentário do que pela sua excecional classe como cirurgião (pioneiro dos transplantes, em Lisboa, como o nosso primo Mário foi, a norte, no Santo António). O Alfredo Barroso é, também, mestre nesta ciência e sportinguista, como o primo Eduardo, embora muito mais comedido na análise. O tio Mário Soares, pelo contrário, fazia gala em revelar o seu desinteresse na matéria. Segundo me contou um ilustre dirigente portista, o Dr. Soares, que assistia assistia a um jogo no camarote presidencial, no momento em que as equipas entravam em campo, perguntou-lhe, com toda a naturalidade: "Quantos são de cada lado?".(Esta é história, que não posso garantir, não a testemunhei...). Eu nunca pertenci ao "plantel" daqueles programas semanais de grande audiência, exceto um,da RTP, em que os comentadores eram numerosos e chamados rotativamente, de longe a longe, e em que me recordo de ter coincidido, com José Lello e com Alfredo Barroso. Foi há tantos anos, que já me esqueci como se chamava... Mas estive, muitas vezes, em outros esporadicamente dedicados ao futebol, em entrevistas do "Expresso da meia noite", das manhãs e tardes da RTP/Porto, da Sónia e do Jorge Gabriel, do Malato e da Merche, ou, em Lisboa, da Maria Elisa. E, durante mais de um ano, participei num programa semanal, de 2ª a 6ª feira, na Rádio Comercial, com um título de sabor sulista: "Os cinco violinos". Cada um dos cinco intervenientes tinha um dia da semana reservado para o seu apontamento de um a dois minutos - lido pelo telefone. Como eu, então, viajava constantemente, falei de destinos tão longínquos como Hong-Kong, Buenos Aires, Los Angeles, Tóquio... ou mais próximos, como Paris e Bruxelas, sem falhar uma única vez... Foi obra!. Com o Zé Lello, num desses debates, a figura central foi o Jardel, na sua última fase, já de declínio no Sporting. Mesmo tendo deixado o FCP, Jardel continuava sendo o meu ídolo e, ali, me tornei a única voz que se levantava em seu favor, com os argumentos de um afeto antigo... No intervalo, enquanto tomávamos café. o Zé Lello informou-me, direto e sintético : "Manuela, já não posso mais ouvi-la a falar do Jardel - parece a Santinha da Ladeira!". Com a Merche, o pomo da discórdia foi o celebrado Ronaldo. Ela considerava-o o melhor do mundo e pedia apoios para uma espécie de "abaixo-assinado", que corria mundo, a exigir esse reconhecimento. Eu, pelo contrário, achava que superior a Ronaldo, e muito mais influente na produção de jogo da seleção, era Deco, o melhor jogador que vi em campo, em toda a minha vida. Só tarde demais, depois de ter discorrido, alegremente, sobre as superiores qualidades do meu favorito, é que, de súbito, me lembrei que a Merche era namorada de Ronaldo! Ela, muito simpaticamente, não levou a mal as minhas palavras, mas, em conversa, depois que as luzes do estúdio se apagaram, perguntou-me, com amável curiosidade: "A Manuela é amiga do Deco?". Esclareci que não, só o conhecia a muitos metros de distância, do relvado dos estádios... Com o Jorge Gabriel, na véspera de um FCP-SCP, em que o palco estava cheio de adeptos das duas claques, com os seus coloridos cachecóis, o dissenso foi sobre guardas-redes, o do Sporting, que era a escolha de Scolari para a seleção (uma escolha que nos custou o campeonato da Europa...), e o do Porto, o mítico vitor Baía. Como o tempo estava esgotado, a imagem passava já com as letras e o som do genérico, eu recorri ao único meio ao dispor, levantei-me e gritei "Baía", logo secundada pela claque azul e branca, aos saltos, no que eu os acompanhei. A imagem falou por si - um final feérico. Foi impulso, porque, em regra, na TV sou mais contida... Nessa tarde, uma amiga da minha mãe telefonou-lhe a contar que me tinha visto, no ecrã, a dançar! Tudo isto te deve parecer bizarro... Se, porém, no futebol não partilhámos gostos, já no óquei em patins estamos e estivemos bem sintonizados, desde crianças. Também eu seguia, pela rádio, os relatos da seleção. O entusiasmo clubista era incomparavelmente menor, pelo menos aqui no norte, porque os campeões eram lá de baixo (Paço de Arcos, etc). Um dia, quando a seleção estava em estágio, escrevi aos jogadores, a pedir autógrafos e eles responderam-me, de imediato. Guardei sempre a carta como um tesouro, que, agora, tenho de procurar. No colégio do Sardão, as infra estruturas desportivas eram esplêndidas - parecia um colégio inglês: "court" de ténis, ginásio polivalente, mesas de ping-pong, campos de volei, andebol e basquetebol, pistas para bicicletas e até um ringue de patinagem. Só faltava a piscina. Lugar já havia, muito bonito, rodeado de uma pérgola, mas a obra não avançou por questões atinentes aos bons costumes... Entre as freiras, a ala conservadora e a progressista nunca se entenderam quanto ao traje: fato de banho normal ou um modelo especial, com saia até ao joelho (como era obrigatório na ginástica e nos desportos de campo). O pior era o ritmo de vida do internato, o desconforto dos dormitórios, os duches de madrugada, a missa matutina, a anteceder o pequeno almoço, as marchas de braços atrás das costas pelos longos corredores, o confinamento (embora numa grande casa rodeada de uma enorme quinta, que terá pertencido a Almeida Garrett). O melhor era desporto, que, contando os tempos de recreio, me ocupava várias horas por dia. Horas felizes! Nem sei se era particularmente dotada para a prática desportiva, ou não. Penso que não, mas compensava qualquer défice com velocidade e entusiasmo, levando tudo (e todas) pela frente. Temível... No futebol, imitava o Séninho, um célebre extremo do FCP, que batia todos na corrida, e arriscava sair pela linha de cabeceira, com a bola... O Séninho acabou bem a carreira, do Porto transitou, com um contrato milionário, para a América, onde, então, o "soccer" dava os primeiros passos. Para a cultura americana, falta ao "soccer" o condimento da violência, que abunda no futebol americano e no óquei sobre o gelo, que não é muito mais "civilizado". A última vez que assisti a um jogo de óquei foi em Toronto e, por sinal, a equipa mais dura estava a ganhar, e o espetáculo decorria mansamente. Para compensar a sensaboria, os grandes ecrãs, suspensos do teto, transmitiam imagens terrivelmente agressivas de jogos anteriores, para "animar a malta". Fiquei estarrecida... O futebol feminino, que só conheço pela TV, é muito bonito, menos violento, menos faltoso e cada vez mais tecnicista. EUA e Canadá apresentam excelentes seleções, a par da China, da Alemanha, da Suécia, do Brasil... Nós estamos longe do topo, mas vamos evoluído. Todavia, as Doroteias do Sardão, nos anos 50, tinham colocado o futebol no "index". Proibição e penas pesadas para chutos na bola! Nada que me dissuadisse de organizar partidas clandestinas. Em geral, começávamos pelo legalíssimo andebol, que passava a futebol, logo que víamos a vigilante, sentada num canto e absorvida em leituras e orações. Um dia, porém, numa pausa da leitura, houve uma que percebeu a diferença entre as duas modalidades... Presumiu - e bem - que a responsável pelo desacato era eu e denunciou-me. Fui, de imediato, levada ao gabinete da Madre Superiora, em estado de crescente preocupação com a sentença que me esperava. Os castigos rotineiros pouco me ralavam. O mais comum era escrever qualquer coisa edificante, umas 500 vezes. Neste caso, poderia ser: "As meninas bem comportadas não jogam futebol". Ou, em alternativa, ficar isolada nas pequenas celas onde decorriam lições de piano - fora do horário das lições, naturalmente. Durante uma ou duas horas, era coisa muito agradável, ca companhia de um livro ou de um caderno para escrever (uma vez deixei-me lá ficar pela noite dentro e as freiras andaram angustiadamente à minha procura e, quando deram comigo, esquecida no quartinho do piano, pediram-me desculpa, em lágrimas, e, de seguida, deram-me um jantar melhorado. Na verdade, a porta estava aberta, eu podia ter saído, mas estava distraída, estava bem... Porém, castigo para delitos mais graves podia chegar à proibição de saída no fim de semana. A bomba atómica dos castigos, raramente aplicável, porque, na verdade, atingia a família inteira. Pessimista, era o que eu antecipava no trajeto de ida ao encontro da Superiora. Ela recebeu-me, com um inesperado sorriso e disse-me palavras ainda mais inesperadas. Em síntese, isto: "Manuela, o futebol não é um desporto próprio para meninas. Não podes organizar jogos com as tuas colegas. Nunca mais! Mas eu compreendo a tua paixão pelo futebol e por isso, para ti, vou abrir uma exceção. De hoje em diante, tens a minha autorização para jogar - as outras não! As "Madres" também podem ser pessoas sensíveis e com sentido de humor... Para mim, foi um momento inesquecível, porque lhe achei muita graça e porque, assim, ficavam garantidas as minhas 48 horas de liberdade e uma provável excursão dominical ao estádio das Antas. Claro que continuei a organizar torneios de futebol, em que era a maior goleadora, e, que me recorde, nunca mais fui apanhada em flagrante delito. Pertenci sempre ás "seleções" do colégio, nos desportos permitidos, o que não significava grande coisa. Apesar de termos um excelente treinador (Edgar Tamegão, campeão em não sei quantos desportos). a matéria prima era tão fraca, que nunca fomos longe. Tal como a Raquel fico nervosa quando pressinto risco de fracasso nas minhas equipas e, cada vez mais, evito enervar-me... Noutros tempos, aguentava firma na bancada. Tenho, há muitos anos, o meu lugar anual na bancada central do Dragão e estou prestes a receber o meu emblema de ouro (podiam ser muitos mais, não fosse o hiato, de que falo adiante). De qualquer modo, nos jogos mais emocionantes, cedo o meu cartão a uma afilhada, bisneta da Tia Carolina, a Teresa, que é tão "fanática" como eu, tem menos cinquenta anos e nervos de aço! No lugar ao lado, senta-se o irmão, António. Faz anos em julho, mês de renovação de assinaturas, pelo que lhe ofereço o lugar anual como presente. É o meu companheiro habitual no Dragão, quando lá vou, como, nos meus tempos de juventude, eram os seu bisavô Serafim e o seu avô António. Não falhávamos um jogo nas Antas. Em criança era com o meu pai que ia ao estádio, e foi ao seu lado que festejei o "meu" 1º título do FCP, em 1956 (depois de 13 anos sem conhecer a euforia da vitória). O treinador era Yustrich, um brasileiro, de Minas Gerais, de ascendência alemã. O nosso ídolo! Um vanguardista, no que respeita a treino, estágios, concentração na véspera dos jogos - na altura. o "jamais vu"... As vedetas de então ensaiaram uma variante da "revolta na Bounty". Foram todos borda fora, e, depois, ele conseguiu fazer uma equipa fantástica. Homem de afrontamento, afrontou também a direção, o presidente Dr Cesário Bonito e os outros. Acabou despedido, com p povo azul e branco, ao seu lado, então e para sempre! Muitos portistas, entre eles o meu pai, ano auge da indignação, rasgaram o cartão de sócio. Portistas de alma, mas não de cartão... No ano seguinte, o FCP voltou à rota descendente, e poucos títulos nos deu, até aos tempos novos da revolução de 74. No futebol, a revolução foi capitaneada por Pinto da Costa. O centralismo perdeu, a regionalização avançou. Na política, não! 44 anos depois, Portugal continua a ser dos países mais centralizado da UE, uma espécie de México da Europa... E, por hoje, basta de futebol! Prometo não voltar ao tema.

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