setembro 16, 2016

Boas tradições e maus costumes

(a propósito da praxe académica) A minha opinião sobre a "praxe" é, devo dizê-lo, influenciada pela experiência vivida na Universidade de Coimbra (1960/65), há mais de meio século. Como as regras vinham dos tempos em que a Academia era integralmente masculina, quando as primeiras mulheres ingressaram nas Faculdades houve que as integrar - embora tão marginalmente quanto possível. Antes do mais, trataram da feminização do traje. O equivalente encontrado à capa e batina foi a capa e um sóbrio mas feminino fato de saia e casaco. A única sanção a que as estudantes estavam sujeitas, na prática, tinha a ver com o uso incorreto desse traje - por exemplo, ousar uma blusa às riscas, ou uns sapatos brancos, coisa que não lembrava a ninguém. Uma outra significativa adaptação se impunha no dia da formatura: à saída do último exame, o novo doutor era cercado pelos amigos que, no meio de festiva algazarra, lhe rasgavam a batina. À nova doutora, se estivesse trajada a preceito, apenas cortavam, gentilmente, a gravata preta. Galantes formas de sexismo! A menos amável de que me recordo aconteceu no ano em que pus fitas. A pasta com as fitas só podia usar-se com capa e batina (ou fato). Contudo, sempre se abrira uma exceção para o baile de gala da "Queima", permitindo às (quase) doutoras comparecerem de vestido comprido e a pasta na mão. Nesse ano, porém, o todo poderoso "Conselho de veteranos" decidiu acabar com o privilégio e as estudantes tiveram de ir à gala sem as insígnias... Todas, menos uma: eu. Fui ao baile com a capa e o fato de todos os dias, e a pasta com as fitas vermelhas. A trupe de veteranos, que vigiava a porta principal (qual "polícia de costumes" do Irão ou da Arábia Saudita), quis, em vão barrar-me a entrada, assim evidenciando que estava em curso uma golpada misógina, mais do que a pura defesa da ortodoxia do traje. Não esperavam que uma só colega teimasse em aparecer com o fato praxisticamente certo, embora socialmente incorreto. Claro que eu destoava no salão de festas, entre as sedas e as rendas das minhas amigas, mas sentia-me bem na veste da feminista que resistira ao "diktat" dos "veteranos". Globalmente, aliás, nem tudo era mau na vivência das tradições coimbrãs: gostava do fado, das serenatas, das "latadas", dos cortejos da "Queima", do sobe e desce das ruelas mediavais da cidade. E divertia-me com os rituais que via como essencialmente lúdicos, com a irreverência, a graça e o entusiasmo de viver os anos de juventude, em alegre companhia, na senda dos feitos que Trindade Coelho registou na melhor crónica que jamais se escreveu sobre Coimbra ( "In illo tempore"). Gostava da minha capa (tão confortável, salvo num salão de dança) como símbolo de pertença a um universo de sã camaradagem e amizade. E, para tanto, não precisei de percorrer a via iniciática de praxes, contra as quais me revoltava, mesmo contra aquelas que teriam um sentido pedagógico - caso da proibição dos caloiros andaram sozinhos, à noite, pela cidade, que, supostamente, visava protegê-los da boémia e obrigá-los a estudar. A partir do sol posto, começava a caça aos caloiros... As "trupes" escondiam-se nas sombras das vielas e, de repente, cercavam as vítimas, num círculo de vultos negros do qual não escapavam sem tesouradas fatais nas cabeleiras (a única solução era irem, depois, ao barbeiro rapar o cabelo, uniformemente...) . Escapavam, porém, se tivessem "proteção" de uma senhora, com quem andassem de braço dado. A senhora podia, curiosamente, ser uma caloira! Eu própria "salvei" muitos colegas, dando-lhes, momentaneamente, o braço, mal pressentia a movimentação das sinistras trupes ... 2 - Voltei a Coimbra, para dar aulas na Faculdade de Direito, na década seguinte, em 1974, nas vésperas do 25 de abril, e lá fiquei durante dois anos de boa memória. Agitação havia bastante, no interior e exterior da universidade, mas não relacionada com a praxe, que fora totalmente abolida pelos ventos da Revolução, como vestígio do fascismo. Sei que o epíteto de "fascista" foi, então, utilizado a torto e a direito, mas neste domínio, por sinal, com alguma propriedade, porque há, nas hierarquias em que a praxe se organiza como corporação, nos ritos de obediência que impõe, cegamente, afinidades com o "ancien régime". O pós revolução era a altura ideal para repensar a praxe antiga, para separar o que ela continha de trigo e de joio. Infelizmente, veio a ser reinstalada com facetas incomparavelmente mais malignas, um pouco por todo o lado, em universidades sem passado, sem tradições próprias, onde constituem meros jogos de imitação - e jogos perigosos, reinventados com uma brutalidade sádica que fazem mortos e feridos. Se a prática continuada os converte em costumes, são certamente, maus costumes, quando não crimes. A proibição das praxes violentas é, a meu ver, um imperativo numa sociedade democrática. Muito bem anda o Ministro do Ensino Superior ao tomar posição neste sentido. 3 - A dificuldade maior, no que respeita à proibição, é traçar a fronteira entre ações livremente consentidas e lícitas, de caráter lúdico e o que é "bullying", comportamento degradante, indigno, criminoso. Por isso, para além da corajosa e lúcida intervenção do Ministro, uma outra boa notícia é o anúncio de uma investigação científica sobre a realidade atual do universo das praxes , no seio de uma universidade, em Lisboa. Espero que uma tal análise interdisciplinar, ampla e rigorosa, possa lançar nova luz sobre as sombras que envolvem a evolução do fenómeno. Maria Manuela Aguiar (publicado em "A Defesa de Espinho, 29 de setembro )

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