fevereiro 09, 2017

NA ÚLTIMA CAMPANHA COM MÁRIO SOARES

1 - Fui surpreendida com a última candidatura de Mário Soares à presidência, como toda a gente, porque festejara, há pouco os 80 anos, com o anúncio público de uma definitiva retirada da vida política. Evidentemente, como patriota que era, com a clausula "rebus sic stantibus"... Ainda o comum dos cidadão, assim como o comum dos políticos, não pressentia o período negro do advento da "troika", mas o Dr Mário Soares, sim. A meu ver, foi por isso, que acionou a dita calusula, aceitando tão extraordinária aventura (houvesse ele ganho e não tenho a menor dúvida de que a "troika" teria sido menos "troika", Passos menos Passos e o País mais País - com Cavaco petrificado no seu trono republicano foi o que se viu). O maior óbice que eu, desde a primeira hora adivinhei na caminhada para Belém não era, porém a idade, mas o preconceito em razão da idade, que em Portugal é muito mais radical do que nas demais sociedades europeias, para já nem falar na norte-americana, onde a idade média dos políticos é bem mais elevada do que na Europa. Depois surgiu, na figura de Manuel Alegre, mais um obstáculo, escusado, tardio mas de peso. Entrou na corrida como pseudo independente, com um discurso populista anti-sistema, sempre tão fácil e rentável, qualquer que seja o quadrante político - neste caso o mesmo do Dr Soares. Ao dividir, assim inexplicavelmente, as hostes do PS fez eleger Cavaco Silva à primeira volta. Metade do partido, da máquina, das concelhias espalhadas pelo retângulo esteve contra o Fundador e com ele, pelo visto muito agradada com as diatribes anti-partidárias e aquela "pós verdade" de um independente de ocasião, que, durante décadas, fora governante e deputado pela mão do PS e ao PS voltou prontamente, aureolado com o seu milhão de votantes... Concorrência fraticida, inexplicável ou só explicável por egocentrismo ou motivação não menos edificante, devo dizê-lo, por muito que goste do cidadão Manuel Alegre, que conheci na Coimbra dos anos 60, como um grande orador, com a mais bela voz do mundo). Ao contrário de muitos portugueses de vários partidos, idades e profissões, não me importo nada de apoiar o candidato ideal, sabendo, embora que as suas hipóteses de vitória não são enormes e, por isso, aceitei, sem hesitação o convite para uma daquelas numerosas Comissões de honra, que merecia o qualificativo, porque era, de facto, uma honra estar ao lado do Candidato. Sentia-me bem com a perpetiva de, por fim, votar no Dr Soares. Digo "por fim", porque pertencia ao imenso, mas não quantificável, grupo dos seus admiradores, que nunca o tinham sufragado nas urnas, fosse para que cargo fosse. Uma oportunidade na 25ª hora, um apoio subjetivamente gratificante, e objetivamente justificado - em causa estava a presidência da República, para a qual se deve escolher o cidadão que melhores atributos tenha para representar o Povo e o Estado. E Mário Soares tinha-os, pela experiência do seu passado, pelo prestígio internacional do seu nome - neste nosso tempo, maior do que o do País... - e pela "pujança da sua velhice", que, em existindo, é sempre mais sábia e pode ser mais vigorosa e criativa do que a pujança da juventude, e no seu caso era. 2- Desde a primeira sessão em que estive, em Lisboa, os jornalistas de mim queriam, antes de mais, saber se me tinha demitido do PSD e, quando afirmava que não, se estava em vias de ser expulsa, ao que respondia que não acreditava que isso fosse acontecer, porque, não se tratando de uma eleição partidária, o PSD iria respeitar a liberdade de opção dos seus militantes. Foi exatamente o que aconteceu, porque os partidos, em cada momento falam pela voz dos seus líderes, e o líder era, então, Marques Mendes, mais preocupado com combater a corrupção do que o livre pensamento. Eu sabia que em anteriores processos os "heréticos do PSD" tinham sido alvo de medidas de expulsão e estava pronta a enfrenta-las, se necessário, mas não achava que isso fosse necessário, desta vez. Não foi. 3 - No meu caso, havia uma circunstância agravante - era, precisamente nessa altura, candidata autárquica, em Espinho, na lista de Luís Montenegro, o primeiro que preveni da minha decisão pró-Soarista. A idade aqui terá jogado a meu favor - porque, na verdade,, pessoalmente, pouco ganhava em qualquer dos atos eleitorais, estava a trabalhar para candidatos ou causas em que acreditava, não para mim própria. Se fosse uma jovem de 30 anos, talvez ficasse sob suspeita de colher benefícios a médio prazo - aos sessenta e muitos, já não... Não quer isto dizer que todos achassem excelente a minha dupla escolha. mas a maioria, sobretudo na classe política, não se manifestava. Na verdade só me lembro dos comentários de um grupo numeroso de deputados, ex-colegas da bancada do PSD, com que deparei, por acaso, no bar da Assembleia. e que me confessavam, alegremente, que tal como eu, nenhum deles votaria em Cavaco, embora eles e eu não coincidissemos num mesmo nome. Mais críticos foram alguns militantes do PSD, irremediavelmente "clubistas" ou sectários, que me interpelavam em lojas e nas ruas de Espinho, onde toda a gente se encontra. Não compreendiam porquê e eu explicava gostosamente: Maria Barroso e Soares sabiam "estar", social e politicamente, falar de igual para igual com os mais poderosos líderes do mundo, cabeças coroadas incluídas, tanto como com o "Povo-Povo". Tinham "mundo", prestígio internacional e não só caseiro. Apelavam à sensibilidade de monárquicos e republicanos. om todo o seu "charme"e "savoir.faire", estavam, neste aspeto nas antípodas da família Cavaco (não me lembro de um só militante que não ficasse conformado, ou mesmo cabisbaixo, perante a argumentação, em linguagem bem humorada e com ampla exemplificação em episódios da vida real. terminava sempre com um quadro negro de eventuais sarilhos e imbróglios políticos, Soares daria muito mais garantias do que Cavaco - e os sarilhos vieram e Cavaco "ensarilhou-se" entre Passos e Portas, Passos e Seguro e, finalmente, até entre Costa e Passos. a inédita situação com a qual Marcelo - muito mais ao jeito de Soares do que de Cavaco - .lida na perfeição.., 4 - Em contrapartida, dos lados do PS, o contrário aconteceu, quer no convívio com as vareiras de Espinho, após a minha intervenção num mini-comício no bairro piscatória, quer nas hostes da emigração em SP e no Rio de Janeiro, onde fui apresentar um livro que dedicara a Mário Soares (sobre a questão da Igualdade de direitos entre Brasileiros e Portugueses - a memorável e arrastada questão da reciprocidade, que só Soares conseguira resolver, pela força da palavra e da autoridade moral)... Em SP. o PS era chefiado pelo célebre Capitão Verdasca, um respeitado oposicionista ao Salazarismo e um intelectual, escritor e pedagogo muito ativo na comunidade, Foi sempre um democrata dialogante, e, por isso, se tornou um amigo, Era mais o que nos unia do que o que nos separava. Idêntica - o que acontecia, felizmente, na maior parte das comunidades transoceânicas, a começar ali ao lado, em Santos, continuando por Toronto, ou Montreal, ou Montevideo. O Rio, porém, era outra coisa, com outros protagonistas, que não ficavam, em termos de incivilidade, atrás dos luso parisienses mais extremados, antes pelo contrário.. Não todos, evidentemente, mas o número suficiente para fazer a diferença. Distinguia-se, entre todos, um empresário, a quem chamarei, simplesmente, Fernando. Uma espécie de precursor de Trump e do trumpismo, com amplo acesso aos media, que usava para o insultar, em termos fortes e feios, com laivos de misoginia. Além de me mimosear com os seus "tweets"( avant la lettre" ) na imprensa portuguesa local, deu em me mandar, onde quer que fosse fazer intervenção pública, enormes coroas funerárias - a profetizar o meu funeral no mundo político, que não no mundo dos vivos, suponho... As coroas nunca chegavam ao destino, porque eram sempre intercetadas pelos organizadores das sessões, mas causavam nervosismo, de que, por vezes me apercebia. A exceção foi uma grande reunião na "Casa das Beiras", onde Fernando contava, ao que julgo, com parceiros partidários, que lhe facilitaram a golpada macabra, antes invariavelmente falhada, Estava eu no uso da palavra, quando entra e atravessa o salão um jovem portador de uma gigantesca coroa de lindíssimas flores brancas (gladíolos?). Estende-me um papel para assinar "em como recebi". O silêncio era absoluto., até eu recomeçar o discurso exatamente onde o deixara. Aquilo divertira-me, como um pequeno interlúdio teatral. Logo, porém, se aproximaram duas senhoras (com certeza dirigentes da "secção feminina" da instituição - quase todas as "casas regionais" portuguesas assim dão uma pálida representação às mulheres...) para remover a maligna oferenda, ao que me opus: "As flores são magníficas - enfeitam imenso, Por fazer, deixem ficar!". E elas, deixaram, saíram. e logo voltaram e, com umas tesouras cortaram, o mais discretamente que era possível - isto é, não muito... - os panejamentos pretos que enfeitavam, a preceito, a majestosa coroa fúnebre, que, assim, se converteu uma roda florida, muito decorativa. Era o ponto em que se situava, concretamente, o direito à manifestação política, por aquelas bandas. Eis que eu volto, já desligada do meu velho círculo parlamentar, e em campanha por Soares, que, no Rio, era entusiasticamente apoiado por todo o PS. No lançamento do livro, a sala do Arouca Barra Clube (onde por várias vezes a coroa do Fernando havia ido parar ao lixo sem ser vista em público), estava o Fernando, sem ramos de flores, mas muito sorridente, entre os correlegionários que sempre me tinham evitado e, ali e então. me saudavam festivamente. E lá estavam também muitos PSD's, que eram pela reciprocidade e por mim... Vim embora contente, porque fiquei a saber que, "negócios" (ou "partidos") aparte, eram todos meus amigos! 5 - A campanha no distrito de Aveiro, em que acompanhei o Dr Soares, foi uma alegria, com comício por todo o lado, uma roda viva, só interrompida depois do almoço para o nosso candidato fazer a sua sesta num hotel. Quando jovem os meus pais, grandes aficionados do desporto automóvel falavam muito do campioníssimo Fangio, e contavam que antes de cada corrida, dormitava uns minutos e, depois, entrava em competição com imensa energia . Talvez fosse verdade. O certo é que as pequenas sestas do Dr Soares, me lembravam sempre essa velha história, como um traço de união entre ambos estes imortais, com uma imortalidade ganha em domínios muito diferentes, mas de alto risco e a exigir a mais alta qualidade humana... Recordo-me também de uma viagem de comboio, absolutamente extraordinária, só com apoiantes de Soares, quase todos jovens, uma espécie de viagem-comício, viagem-tertúlia...Creio que parava aqui e ali, para um comício em terra, nas estações. Eu compareci na de Espinho, e na hora da arrancada, aceitei convite para seguir para norte e fui até Gaia, onde fiz o meu mini discurso no largo em frente à estação das Devesas, em cima de uma plataforma improvisada. Sempre que saio ali, na mesma plataforma - e acontece com alguma frequência - lembro-me, nostalgicamente, desse esfusiante fim de tarde. .Creio que foi nessa noite o grande comício de encerramento da campanha no Porto, no pavilhão Rosa Mota cheio de gente e de entusiasmo, onde estive num ambiente ainda de esperança, naturalmente. 6 - No domingo seguinte, mal soube o resultado das sondagens de mau augúrio, não para só para o Dr Mário Soares, mas para o País, fui de comboio para Lisboa dar-lhe um abraço, e outro à Dr.ª Maria Barroso, Se os números tivessem sido melhores, festejaria no Porto. Quem mais perdeu foi este Povo que coloca a juventude, mesmo que relativa. acima da experiência e da qualidade. E não só. Outro factor que jogou contra Soares, foi, justamente o que deveria ter sido decisivo na sua eleição: o ter já estado uma década (uma década de ouro!) naquelas funções. Em vez de valorizar a certeza do seu perfil para o cargo invocava-se que já lá tinha estado, agora devia dar lugar aos outros. Como se o estar em Belém não devesse ser visto puramente como serviço a Portugal A não continuidade vitalícia no posto cimeiro compreende-se, até para distinguir o regime republicano do monárquico, mas a própria Constituição se abre a um regresso após um hiato de, pelo menos os cinco anos de um mandato.. E, assim, no terceiro resgate sofrido em democracia. Portugal já não teve por si a forç,a do grande Homem de Estado, no curso das negociações, onde esteve sempre de cabeça curvada, com a tomada de decisão entregue a uma mocidade (de quarentões, embora,) verde, verde... Também já não havia Hernâni, sábio e firme, e o responsável das Finanças portou-se, não como um ministro desta República, mais como mais um funcionário de um dos vértices da troika, de onde vinha para a qual voltou, ainda antes do fim do governo recompensado com uma promoção na carreira. Sucedeu-lhe uma senhora bem falante, que vinha do mundo onde se acordam "swaps"ruinosas e outras manobras aparentadas e para ele também voltou, acumulando com um lugarzinho de deputada e aspirante a líder do partido (o que, a acontecer, me levará do partido para fora - desse e de qualquer outro partido, para todo o sempre...). 7 - E se Mário Soares se não tivesse candidatado? É um "se" de fácil resposta. Entre Cavaco e Manuel Alegre, simpatia e sentimento coimbrão à parte, teria estado com o meu correlegionário de longa data. O seu curriculum político, como primeiro-ministro, embora um pouco embotado por tanto cimento no balanço final,( e por frases que me arrepiavam, tais como "estamos no pelotão da frente" e, muito pior ainda, "somos o bom aluno da Europa"), a isso conduzia em linha reta. Mas eis que irrompe do esplêndido passado para um, talvez, esplêndido futuro, esse novo -velho nome. Ao qual, além de muito mais, eu devia o desenlace feliz do processo de reciprocidade ao espantoso estatuto de direitos políticos consagrado na Constituição Brasileira dos anos 80 Ao Prof. Cavaco Silva escrevi uma longa e detalhada carta em que explicava as razões da minha adesão à candidatura do seu adversário, sintetizando "in fine" com uma conclusão que não foi tida na devida conta... Qualquer coisa como: "posso dizer que apoio o Dr Mário Soares por uma questão de reciprocidade".(guardei cópia da missiva, está algures no meio de um caos de papelada, pelo que cito de memória). O Senhor Professor nunca respondeu, Durante os seus mandatos, só o vi uma vez, em Espinho - era eu vereadora da Cultura. O cumprimento foi, como tinha de ser, formalíssimo.

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