junho 16, 2020

RECORDANDO: MULHERES EM MOVIMENTO, PORTO 2012

UMA FAMÍLIA MUITO ESTIMULANTE


1 - UMA FAMÍLIA ESTIMULANTE


Sou feminista desde que me lembro de ter opiniões sobre o assunto...Comecei cedo, com 5 ou 6 anos, e para isso muito contribuiram as Avós,especialmente a Avó materna Maria (Aguiar), uma verdadeira matriarca, que ficou viúva, com 7 filhos, aos 38 anos e se tornou líder não só em sua casa, como na sua terra. Pertencia à Obra das Mães, às organizações da paróquia, às associações culturais. Era uma senhora muito bonita, muito inteligente e muito conservadora. Em nome das boas maneiras e do recato feminino, que tanto prezava, apesar da sua respeitável proeminência, dizia-me, vezes sem conta, "as meninas não fazem isso" - "isso" sendo por exemplo, subir às árvores, saltar dos eléctricos em andamento ou jogar futebol com os primos... Eu sabia que gozava do estatuto de neta favorita e gostava imenso da Avó, mas não seguia esses seus conselhos.

O plural: "as meninas", levava-me a reagir. Achava que devia mostrar
que as "meninas" eram tão capazes como os rapazes de "fazer isso" e
partia para o demonstrar no dia a dia. Era, pois, uma feminista
praticante, com uma emergente consciência da existência das questõesde género ... Curiosamente, os homens, Pai e Avó Manuel, eram mais condescendentes com as minhas proezas desportivas, tanto como das escolares. Sempre me incentivaram a estudar e preparar o futuro profissional. Nunca o paradigma da "dona de casa" esteve nos meus horizontes, ou nos deles. Pelo contrário: punham em mim, a meu ver, excessivas expectativas....
E assim, graças a eles,o  meu feminismo esteve "ab initio" na linha de
pensamento de uma Ana de Castro Osório, mesmo que, nesse tempo, não conhecesse sequer o seu nome (como aquele personagem, Mr. de la Palice, que fazia prosa sem saber...). Os homens foram, de facto, aliados  - muitos, incluindo numerosos tios e primos, e, mais tarde, os meus professores da Faculdade de Direito de Coimbra.

Tive uma infância divertida e feliz, numa família unida e convivial,
apesar de politicamente dividida. Uma tradição que vinha de trás -
houve, sucessivamente, regeneradores e progressistas, monárquicos e
republicanos, salazaristas e democratas, germanófilos e anglófilos
(como eram os meus Pais). A política estava bem  presente, em acesas discussões sem fim, mas nunca ninguém se zangava. Consideravam os outros "gente de bem", por mais extremadas que fossem as suas opiniões. Tendo a atribuir mais a essa experiência vivida do que à idiossincrasia a ausência de preconceitos partidários em relação a quem não pensa.como eu. E, possivelmente, também o gosto pela argumentação, pela entusiástica defesa de pontos de vista, uma sensibilidade a formas de injustiça como as assimetrias regionais, o despertar para um saudável regionalismo nortenho, a par da paixão pelo Porto (e pelo FCP)...

Outra forum de "convívio e debate" determinante foi a escola - dois
anos na pública, sete anos de Colégio do Sardão (um internato de
religiosas Doroteias). Costumo comparar o colégio a um quartel
elegante, onde prestei uma espécie de "serviço militar obrigatório".
Não foi, de facto, uma opção voluntária, mas, com a excelência do
ensino e, sobretudo, das estruturas desportivas,  ginásio, campos de
jogos, parques e largos espaços de recreio, posso dizer que lá  passei
muitos bons momentos. Organizava competições desportivas (incluindo futebol clandestino), dirigia peças de teatro, escrevia crónicas e romances que partilhava com as colegas, dava largas à imaginação e à energia. Uma dessas crónicas, que pretendia fazer humor à custa da instituição, suas regra e poderes constituidos foi apreendida, e quase provocou a minha expulsão sumária, mesmo nas vésperas do exame do antigo 5º ano.
Não seria a primeira da família a passar por isso, mas escapei,
suponho que com a interferência do capelão e de algumas das Madres, que me compreendiam e me achavam graça... Mas eu quis mudar para o liceu, no Porto, contra a vontade do Pai, que me
vaticinava toda a espécie de retrocessos escolares, que tinham
desabado sobre ele, quando depois de 10 anos de Colégio dos Carvalhos se viu "à solta" na cidade  - no L iceu Rodrigues de Freitas. A história não se repetiu, pelo contrário. Bati todos os recordes pessoais no exame de 7º ano e ganhei, pelo bem-amado  Liceu Rainha Santa Isabel, o Prémio Nacional.

De qualquer modo, foi no Sardão que vivi a minha primeira batalha
política - ou político-sindical. E um "enclausuramento" que me fazia
apreciar mais os fins de semana e as férias de verão em Espinho, como espaço e tempo de liberdade...

 Frequentava, com o Pai, o estádio das Antas, com os Pais e o Avô Manuel cinemas e teatros e, também, com eles, os cafés do Porto, coisa invulgar na época para o sexo feminino, de qualquer idade...


COIMBRA ANOS 60


Em Coimbra, era, do mesmo modo, à mesa dos café que estudava, que convivia, e bradava contra as discriminações em que continuava fértil a sociedade portuguesa de 60...  No Tropical, no Mandarim, no bar da Faculdade de Letras ou de Farmácia encontrava-me com colegas, com assistentes, pouco mais velhos do que eu, embora bastante mais sábios, como era o caso do Doutor Mota Pinto,
que viria a ser o responsável pelo meu tirocínio na política.

Falava abertamente, contestava leis e costumes. A leitura do Código
de Seabra era um pesadelo - a "capitis diminutio" da mulher casada,
que era a expressão latina para a escravidão feminina subsistente
2.000 anos depois, só podia alimentar sentimentos de revolta, a
revigorar um feminismo que, por oposição à situação portuguesa, ia
ganhando base doutrinal na social-democracia sueca. O tema da igualdade de sexos não estava na agenda política de 60 - e ainda hoje não está suficientemente... Em todo o caso, na altura soava mais a radicalismo e excentricidade... Esperava tudo menos que, anos e anos mais tarde, essa faceta pudesse pesar, como creio que pesou, numa mudança de rumo, que pôs fim a escolhas profissionais assentes  (assistente de um Centro de Estudos Sociais, assessora do Provedor de Justiça). Sempre sonhei, simplesmente,  com uma carreira jurídica. A magistratura estava-me vedada, na década de 60, por ser mulher  Queria ser advogada, uma espécie de Perry Mason portuguesa. Era nesse domínio que queria afirmar-me, não no da política. Direito era, então, um curso de perfil masculino, com um corpo docente sem uma única mulher e com mais de 80% de alunos homens. No meu livro de curso, conto 63 homens e 12 mulheres. Entre elas há, hoje, excelentes juristas, advogadas, mas, das 12, na política só eu, e acidentalmente... Dos 63, foram muitos os que, no pós 25 de Abril, se distinguiram em Governos da República, na vida pública - Daniel Proença de Carvalho, António Barreto, Laborinho Lúcio, António Campos, Luís Fontoura, João Padrão, Jorge Strecht Ribeiro... Ou que são vozes autorizadas no domínio em que se cruza o Direito com a Política, como Gomes Canotilho e Manuel Porto, ou com as Letras, como Rui Barbot (Mário Claudio), ou José Carlos Vasconcelos...

Ao fim de 5 anos felizes, eu trazia de Coimbra apenas um pequeno
trauma: na única eleição a que concorri, pelo Conselho de Repúblicas, para um qualquer Conselho Feminino - cujo designação exacta nem recordo - só sei que dava acesso, por inerência,  à direcção da Associação Académica -  perdi num colégio
eleitoral que era 100% feminino. Coisa natural, porque a maioria das
estudantes era conservadora, mas eu assumi pessoalmente a derrota e
convenci-me de que não estava, mesmo nada, vocacionada para tais
andanças...


3 - A FORÇA DO IMPREVISTO


Na história dos antecedentes da minha relutante ocupação de cargos
políticos, estava já a força do imprevisto: primeiro uma proposta para
assistente de Sociologia na faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica  de Lisboa, que veio da parte de
um professor que não conhecia, o Doutor Àlvaro Melo e Sousa ( um amigo comum, Carlos Branco, indicou-lhe o meu nome, (na altura em que acabava de regressar de Paris, com uns certificados universitários na matéria). Foi preciso ele insistir, mas acabei por dizer o sim - e não me arrependi. Esse passo tornou mais fácil aceitar um segundo desafio lançado pelo Professor Eduardo Correia, para a recém-criada Faculdade de Economia em Coimbra,  da qual era o Director. Confesso que nem sabia da abertura dessa Faculdade!... Foi um encontro acidental, num colóquio. Quando me viu, achou boa ideia associar-me ao empreendimento. Não houve hesitação da
minha parte, aceitei o seu inesperado convite. Que bom voltar a Coimbra! Tomei posse a 24 de Abril de 1974. Na semana seguinte, Eduardo Correia era Ministro da Educação do 1ª Governo Provisório e eu ficava, em meio desconhecido, como assistente de Boaventura Sousa Santos. Mas,  pouco depois, um novo encontro com outro dos grandes juristas do nosso século XX, o Professor, Ferrar Correia, no pátio da universidade, à sombra da Torre, levou-me para a minha própria Faculdade. Ao saber que estava ali, ao lado, na Economia, convidou-me, de imediato, a transitar para Direito e eu aceitei tão depressa, que "ele julgou que eu julgava que ele estava a brincar"... Não era o caso, questão de feitio - reajo, assim, muitas vezes. E, ali e então, não via razão para pensar duas vezes. 

Guardo boas memórias de todas as passagens pela docência, e aquela tinha um significado muito especial - o convite chegava com atraso, mas chegava... Quando acabei o curso, em 1965, as mulheres estavam barradas do ofício - tinha havido uma assistente, não existia impedimento legal, contudo, a prática era essa. Mudara, entretanto, embora não me lembre de nenhuma colega - só homens e, quase todos, óptimos colegas, como o Proença, o Fernado Nogueira e o Cordeiro Tavares, Dez anos mais jovens do que eu,  ajudara,me a rejuvenescer. Fui assistente de  dois insígnes juristas, o Doutor Rui Alarcão e, por fim, o Doutor Mota Pinto.

 Os tempos agitados são-me, geralmente, simpáticos - como estudante dei-me bem em Paris, no pós Maio de 68, e o mesmo posso dizer de Coimbra, no pós 25 de Abril. Pude permitir-me coisas que seriam impensáveis fora de períodos revolucionários, sem oposição de ninguém: dar aulas "extra muros", aos voluntários do Porto, (na Faculdada de Letras do Porto, gentilmente emprestada, aos fins de semana, por Óscar Lopes),  ou aulas práticas, a turmas naturalmente pequenas (eram aulas facultativas, normal seria não aparecer quase ninguém), no bar de Farmácia, ao ar livre, em dias de sol. Saíamos, em cortejo, dos "Gerais", já a falar das matérias, à maneira dos peripatéticos. Esclarecia dúvidas, exactamente como se
estivessemos numa daquelas escuras e frias salas da Faculdade. E, depois, analisávamos o PREC. Os rapazes (ainda em maioria) eram quase todos de outros quadrantes ideológicos, que não o meu, mas isso não obstava ao ambiente de tertúlia. Em 1975/76 dei aulas teóricas de Introdução ao Estudo de Direito a salas cheias de simpáticos "caloiros".  Um dever e um prazer!

E refiro tudo isto, porque julgo ter sido esta segunda estada em
Coimbra que me abriu os caminhos da política: antes de mais, porque reatei, naquele preciso momento da nossa História, o relacionamento próximo com amigos que estavam no centro da fundação de partidos, em particular do PPD,  e da construção de um regime democrático, E, por outro lado, porque descobri que conseguia comunicar em público - eu, que me considerava fadada apenas para trabalho de gabinete.

Anos mais tarde, ao fazer um levantamento do perfil profissional das
mulheres mais activas do PSD, descobri que, sobretudo a nível local,
havia um grande número de professoras. Não era acaso, era a consequência de uma maior auto-confiança, que, em outras funções., não se alcança... No meu caso, não tenho dúvida de se tratou de um involuntário estágio para a futura exposição nos palcos da política, O convite que o Primeiro Ministro Mota Pinto me dirigiu  para a Secretaria de Estado do Trabalho, (uma das consideradas como coutada masculina), foi um imprevisto absoluto!
O Doutor Mota Pinto usou o argumento decisivo: "se recusar, fica responsável por não haver mulheres no meu Governo". Depois da combatividade verbal, era a hora de agir... Estávamos em fins de 1978. A ousadia da minha designação valeu ao Professor Mota Pinto um rasgado elogio de Marcelo Rebelo de Sousa, em editorial do Expresso, que guardo na pasta de recortes e na memória.

Sendo defensora do sistema de quotas, assumi-me como a "quota mínima" daquele Executivo, que veio a integrar outra Secretária de Estado na área mais tradicionalmente feminina da Educação...
Sabíamos que a missão era de curto prazo - um governo de independentes, de nomeação presidencial, que não cedia nem a pressões de rua nem a influência de náquinas partidárias, já muito poderosas. A meu ver, um governo que se impôs, ganhou credibilidades e durou, por isso, ainda menos do que o esperado... Os partidos trataram de se entender para o derrubar. Foram 9 meses intensos e formidáveis, findos os quais, voltei para a Provedoria de Justiça, que, com o Dr José Magalhães Godinho como Provedor, era o melhor lugar de trabalho à face da terra. Para mim, o Dr Godinho representava um conjunto de legendários tios republicanos, que mal conheci, na infância. A conversar com ele, sentia-me com um tio, recuperando o tempo perdido. Era família - não aquela em que se nasce, mas a que, tão raras vezes, se recria, na vida, com igual afecto.
Em janeiro de 1980, novo imprevisto me faz mudar de rumo... Logo depois da posse do VI Governo Constitucional, recebi uma chamada do Primeiro Ministro Sá Carneiro, que não conhecia pessoalmente, mas com quem me identificava, desde que afirmou, em entrevista dada a Jaime Gama ser  "social-democrata à sueca".(sem ter filiação
partidária antes de 80, considerava-me Sácarneirista a partir 1969, PPD "avant la lettre"). Pelo telefone, Sá Carneiro foi sintético e breve, a marcar um encontro para as 5.00 horas da tarde - audiência para a qual eu parti inquieta, mal penteada e mal vestida, como andava normalmente. E se ele fosse pessoa distante e pouco simpática? Se com isso arrefecesse a minha "condição de incondicional" de tudo o que dizia e fazia? Quanto ao que me esperava, isso já não era assim tão misterioso, porque os jornais falavam do meu nome para várias pastas. Sá Carneiro recebeu-me à hora exacta - não cheguei a sentar-me na sala de espera. Com um sorriso luminoso, que começava no seu olhar claro! Assim sempre o recordo, em todos os encontros que se seguiram. Quando
a ele me dirigi pelo seu título de chefe do Governo, atalhou: "Não me
chame Primeiro Ministro". Ao que eu respondi: "Desculpe, mas é como o vou chamar, porque me dá imensa satisfação que seja Primeiro- Ministro, e esperei anos para o poder tratar assim". O que cumpri! Todavia, tratamento cerimonioso àparte, a conversa tomou o rumo de uma alegre informalidade. Dei-lhe respostas um pouco insólitas, no tom que tantas vezes usei com outros políticos de quem era amiga de longa data. Sá Carneiro fez-me sempre sentir absolutamente à vontade. Ao que sei, havia quem se sentisse inibido na sua presença. Eu, pelo contrário, ficava eufórica (o carisma é assim, induz excessos de sentido vário...). O Doutor Sá Carneiro foi, para mim uma fascinante surpresa! A outra, veio do pelouro que me propôs: a emigração, num Ministério onde jamais tinha entrado, o de Negócios Estrangeiros.

No governo da AD, em 1980, havia apenas três Secretárias de Estado,
uma de cada um dos partidos, a Margarida Borges de Carvalho pelo PPM, a Teresa Costa Macedo pelo CDS e eu pelo PSD (num impulso, filiei-me nessa altura, sem nenhuma pressão para o fazer).

A emigração, ou melhor dizendo, a Diáspora Portuguesa (persistente em espaços de cultura, mantidos ao longo de gerações)) foi, para mim, uma esplêndida descoberta - de comunidade em comunidade distante me reencontrava em Portugal, pela via de um verdadeiro fenómeno de extra-territorialidade nacional.
Mundo associativo espantoso, porém um mundo de homens. Eu era,a
primeira mulher que, junto deles, representava o governo da Pátria.Se
tinha dúvida quanto à reacção que provocaria. logo os receios se
desvaneceram  - receberam-me  com alegria e simpatia. Não fiz
unanimidade, é claro, mas os afrontamentos que houve foram sempre
devidos a questões políticas, não a questões de género. Trataram-me tão bem, que me deram aquilo que tanto me faltava: um "superavit"
de confiança. Mesmo em hostes poíticas adversárias, encontrei, quase
sempre, boa vontade para trabalhar em conjunto, até no, por vezes, agitado Conselho das Comunidades, que me coube organizar e presidir, desde1981 (era então um forum associativo, de perfil masculino, politicamente dividido entre uma Europa mais contestria e uma Diáspora transoceânica bem mais próxima das preocupações do governo). Acredito que ser mulher tornou mais fácil a minha missão.
Logo em 82, quem me fez  primeiramente ver isso, foi um jornalista de S Diego, Paulo Goulart. No fim de uma entrevista, ao almoço, disse-me: "Sabe, aqui só há dois políticos de quem gostamos: é de si e do João Lima", (antigo Secretário de Estado da Emigração, então deputado pelo PS). Fez uma pausa, como quem avalia e compara os seus dois eleitos,  e acrescentou:"Pensando bem, o João Lima até tem mais mérito, porque é homem e socialista".

Achei muita graça à sua franqueza e, espantada,  apercebi-me de que, em algumas situações, mesmo em ambientes dominados pelo poder masculino, o ser Mulher pode constituir vantagem! Porque é a desafiante excepção? Porque há, no fundo, reconhecimento de que as mulheres fazem falta? Muitas hipóteses, para uma só certeza: no meu caso, senti adesão e apoio desde o primeiro momento, de um sem número de homens influentes e das raras mulheres, que, então, já se faziam ouvir - Mary Giglitto, Benvinda Maria, Maria Alice Ribeiro, Manuela Chaplin, Manuela da Rosa, Berta Madeira...
Quando deixei o governo, depois de cinco sucessivas esperiências -
sendo a última aquela em que os Secretrários de Estado passaram a ser considerdos "ajuntos de ministro"-  o imprevisto estava, de novo, à minha espera na AR, onde tinha o meu lugar pelo círculo do Porto: o convite do PSD para ser candidata à 1ª Vice-Presidência da Assembleia. Aceitei, como acontecera, anteriormente,  não muito segura de me sair bem, em representação das mulheres do meu País... Eram de facto, a primeira Mulher a ocupar aquele cargo protocolar (segunda figura na ordem de sucessão do Presidente da República), a  presidir às sessões plenárias do parlamento, à Conferência de líderes, a Delegações parlamentares - (comecei pelo Japão, que tirocínio..,). Após 4 anos nesse cargo que, quando não assumido por uma mulher, sempre fora discreto, apesar da sua relevância protocolar, fui, finalmente, eleita para um lugar que verdadeiramente queria: representante da Assembleia na APCE (Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa). Aí, me mantive até abandonar o Parlamento nacional em 2005. Fui bem mais feliz e bem sucedida lá fora do que dentro de fronteiras (tanto na emigração como nas organizações internacionais, a APCE. e a AUEO. Havia menos jogos políticos de bastidores, não se sabia o significado de disciplina partidária, era, por isso, larga a margem de iniciativa pessoal, para intervir, para propor recomendações... Presidi à Comissão das Migrações, Refugiados e Demografia, à Subcomissão da Igualdade e a outras, fui relatora em inúmeras propostas, sobretudo naqueles dois domínios.  Defendi a dupla nacinalidade, o estatuto dos expatriados, a não expulsão de imigrantes, o reagrupamento familiar, insurgi-me contra a guerra do Iraque, denunciei a discriminação de género  no desporto... Fui presidente, entre 2002 e 2005,  da Dlegação Portuguesa à APCE e á Assembleia da UEO, (organização pioneira na União da Europa no pós guerra, cuja experiência do terreno e excelência académica, em matéria de defesa, a Europa subestimou, ao extingui-la recentemente, passando as suas competências para uma UE, sem suficiente coesão neste domínio .
Um outro inesperado e insistente convite me levou, depois de deixar a AR, à vereação da Câmara da cidade onde vivo, Espinho... Fui vereadora da Cultura no ano do centenário da República e isso permitiu fazer coisas diferentes, pondo o enfoque das comemorações no movimento feminista e republicano. Não que eu seja
republicana, hoje, mas tenho a crteza que o teria sido em 1910, na
companhia da Carolina Beatriz Àngelo, Ana de Castro Osório ou Adelaide Cabete. E feminista, sou e sem nunca ter tido medo da palavra. Sou-o no sentido preciso que lhe davam as nossas sufragistas, que queriam libertar a Mulher e o Homem, em simultâneo, numa mesma luta civilizacional.
Nunca tive o complexo de preencher o espaço aberto pela "quota", 
mais ou menos explicita. No meu caso, não muito explicita, nem mesmo no cargo de VP da AR, sempre rejeitada pelos opositores das quotas, em especial, no meu partido  Qundo eu dizia: escolheram-me para  Vice-Presidente da AR, porque queriam uma Mulher (o que para mim era evidente, estava certo e só pecava por ser decisão tardia), respondiam-me:  "Manuela, não diga isso! Está nas funções pelo seu mérito"

O meu mérito não era para ali chamado - poucas vezes o é, nas escolhas partidárias, seja qual for o género... Mais me preocupava mostrar o mérito do sistema de quotas, que em nada contende com o valor ou
capacidade pessoal, antes pelo contrário o pressupõe, mesmo quando
porventura se revele um erro. Erros de "casting" não faltam, à margem do sistema de quotas.


PELA PARIDADE, PELAS QUOTAS


Assim vou terminar: Quando há avaliações objectivas dos candidatos, o sistema de quotas é inaceitável. Exemplo: o  acesso à universidade Devem entrar os que têm as melhores notas. Por sinal, entre nós, são maioritariamente as mulheres... 
Ora a falta de educação, de formação seria o único fundamento de uma desigual participação feminina na vida pública. Se a situação
é de igualdade ou supremacia das Mulheres no Ensino, nas Universidades, a sua ausência na Política suscita, impõe uma
presunção de discriminação. A  Lei da Paridade torna essa presunção
inilidível e é, a meu ver, com base nela que determina uma quota
mínima de participação, em função do género.

A igualdade de mérito presume-se e a realidade tem vindo a comprova-la, onde quer que o sistema seja praticado de boa fé, com
honestidade: no norte da Europa, onde o sistema nasceu, ou no sul,
onde chegou com atraso. Portugal não é excepção.
Imprescindível é que a aplicação da Lei da Paridade seja objecto de avaliação, como a própria Lei impõe, ao fim de cinco anos
(artº 8º). Sete anos depois da entrada em vigor da lei, a obrigação
de cumprir o preceituado no artº 8º anda esquecida! Onde estão os
estudos sobre a progressão das mulheres, a nível do parlamento e das
autarquias locais? Estranho! Ou talvez não, porque as questões de género continuam marginalizadas na agenda política ,em Portugal.
Aqui fica uma chamada de atenção ao Governo e ao Parlamento, seja para, eventualmente, poderem pensar alterações à lei nº 3/2006, com vista a mais paridade, seja para conferirem mais visibilidade ao percurso que as mulheres vêm fazendo, no caminho que a Lei lhe tem aberto, contra regras não escritas e práticas discriminatórias vigentes nos aparelhos partidários. E quanto à frase com que comecei para me definir como feminista, devo dizer que não a li nim livro, nem a ouvi num congresso - vi-a, há muitos anos, numa placa de um carro que atravessava o centro de Boston, iluminado pelo sol:


FEMINISM IS THE RADICAL NOTION THAT WOMEN ARE PEOPLE

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