dezembro 01, 2015

EVOLUÇÃO DAS POLÍTICAS DE GÉNERO NA EMIGRAÇÃO PORTUGUESA

DA EXPANSÃO Á EMIGRAÇÃO

A Expansão - Uma Aventura no masculino

A Expansão portuguesa, que antecedeu infindáveis ciclos migratórios, foi uma aventura de homens. Sabemos que já no século XVI envolveu cerca de um terço da população total, que rondava um milhão (Serrão, 1977: 93), e que apenas um reduzido número de mulheres foi autorizado a partir para o norte de África (onde se vivia em clima de permanente insegurança), ou nas longas e perigosas viagens da carreira das Índias. Mesmo assim, algumas mulheres deixaram o seu nome nas crónicas sobre a defesa das praças norte africanas e dos domínios orientais, onde se distinguiram pela coragem (SILVA, 1989), qualidade que é, certamente, comum a ambos os sexos, mas que os cronistas louvavam sempre como "varonil"... Não são, porém, as heroínas, as exceções, que podem fazer, só por si, a história coletiva das mulheres (1), enquanto a metade da humanidade a quem queremos dar visibilidade, “vez e voz", como propugna o movimento que aqui, hoje, nos convoca a uma reflexão para mudar todo um estado de coisas.
Vamos, pois, olhar essa metade da humanidade, que as políticas de Estado, neste como em outros domínios, deixaram sistematicamente numa zona marginal ou penumbrosa
Podemos afirmar que a mais antiga e invariável caraterística das políticas de colonização e de emigração, no caso português, é a proibição geral da saída de mulheres, faceta misógina, em grau tal de extremismo, que só encontrará paralelo em culturas não europeias, com as quais, aliás, a nossa conviveu intimamente, antes e depois do princípio do êxodo sem fim dos Portugueses, à escala planetária.
As leis e as práticas em que se traduziu esta política discriminatória, sob uma capa do protecionismo, não suscitaram oposição pública, nem entre populares nem a nível de elites académicas ou políticas
Um historiador que muito se interessou pela abordagem desta matéria, CR Boxer, dedicou-lhe especial atenção numa série de palestras, publicadas em 1975, com o título original de "Mary and Misoginy" , que foram traduzidas para o português dois anos depois (curiosamente, sem qualquer menção a misogenia no cabeçalho).Nessa coletânea, (Boxer, 1977) não poupa críticas à situação das mulheres portuguesas, enclausuradas dentro de suas casas por pais ou maridos, tal como nas fronteiras do território por imposição estatal, em contraste com o que acontecia no resto da península, sob o mando Castela.  É certo que compara, sobretudo, a colonização castelhana das Américas com a nossa presença no Império do Oriente, e que o número e proporção de mulheres envolvidas no desenvolvimento do Brasil, em condições de vida mais semelhantes às do reino, são bastante superiores, como ele próprio não deixa de reconhecer.
Nem por isso a fundamental divergência política se atenua: a Coroa castelhana fomentava a colonização por famílias inteiras, a portuguesa cerceava a participação de mulheres portuguesas e baseava-se na miscigenação, através de casamento ou uniões de facto dos homens com companheiras nativas. Castela legislou, recorrentemente, sobre a obrigação de os homens chamarem as esposas para junto de si, ou regressarem ao Reino para fazerem "vida de casados". Preocupação humanista - ou feminista – omnipresente no plano de povoamento do Novo Mundo de fala castelhana, que servia, em simultâneo, outros obetivos essenciais, como o da expansão da língua e da cultura. Dimensão ausente nas políticas dos monarcas portugueses, aparentemente insensíveis face à sorte das mulheres, ou ao que hoje chamamos o direito à reunificação familiar, e, bem assim, à sua importância na transmissão dos valores da cultura nacional (2)
Exceções também as houve, inflexões desta orientação da Coroa, em nome dos seus interesses, que não no das mulheres - experiências intermitentes, sem carater sistemático, como o do envio para a Índia, e outras possessões, em viagens sem regresso, das “órfãs d’ El Rey, (Néry, 2012), jovens dadas em casamento a compatriotas a troco de um dote, terras de cultivo, emprego no funcionalismo público (3). O mesmo se diga do povoamento por casais, ensaiado, por exemplo, em Angola, no sul do Brasil ou nas ilhas atlânticas. (Boxer, 1977:78-84)
A extensão e relevância destas medidas no contexto global da colonização constitui matéria que está longe de ser pacífica. Inquestionável é a persistência, como regra geral, de uma política repressiva da expatriação das mulheres.

Emigração - A continuidade das políticas restritivas

Se na própria colonização promovida pelo Estado o papel das portuguesas foi subavaliado, não era de esperar que o fosse menos na fase de emigração, em sentido restrito, depois que passou a dirigir-se a um país estrangeiro - o Brasil que, após a independência, atraía as tradicionais correntes migratórias, em enorme e crescente proporção.
Com isso, ao longo dos tempos, desde o Século XVI, terão perdido todos, os portugueses e Portugal. Di-lo, com meridiana clareza, Lokchart, ao comparar os modelos de colonização peninsulares: […] grandes regiões da América espanhola tinham mulheres em número suficiente para permitir manter intactas a cultura e tradições ibéricas, ao contrário do que aconteceu em muitos estabelecimentos portugueses, onde elas eram poucas ou nenhumas, e onde a língua, a religião e a cultura dos portugueses se reduziram drasticamente (Boxer, 1977:37)
Foi, sem dúvida, o que aconteceu por todo o Oriente, onde se salvaram apenas alguns pequenos núcleos de lusofonia, que a fé cristã, a pertença religiosa e, através dela, os laços culturais e afetivos vêm mantendo até hoje (pensemos, por exemplo, em Malaca, onde o próprio falar, originário do português quinhentista, tomou a designação de “kristang” (Marbeck, 2004). Em muitas outras antigas possessões resta a memória, na pedra dos monumentos e, porventura, nos apelidos de um grande número de luso descendentes, que poderiam ser, e não são, parte da Diáspora (4)
O português manteve, como sabemos, o seu estatuto de “língua franca”, por quase um século, após o declínio do Império do Oriente. Mas isso mostra, justamente, que se tornara veículo de comunicação no mundo das transações comerciais, um reduto masculino…
A exclusão das mulheres de uma participação significativa nas andanças da exploração dos mares e das terras terá sido, antes de mais, fruto de uma visão tradicional do lugar da mulher na sociedade, em que a sua influência e o seu possível contributo na construção de sociedades inter culturais foram sub estimados.  Menor ainda era o papel que lhe atribuíam na emigração, vista apenas como meio de ganhos materiais, com total desvalorização da relevância social e cultural das comunidades nascidas de sucessivas vagas migratórias.
Mas as portuguesas partiram, sempre que foi preciso, contra leis extensivas aos dois sexos, contudo, com gradações de tolerância diversa (favorecendo, sempre a circulação de homens sós, com intenção de regresso). Esta era a forma de o Estado assegurar, durante todo o tempo de ausência, o envio de remessas para as famílias retidas em Portugal. O montante atingido por essas verbas – uma infinidade de pequenas poupanças que representavam grandes sacrifícios, a acrescer ao sofrimento da separação familiar dos dois lados do oceano – era de tal ordem, que delas dependia o equilíbrio da balança de pagamentos com o exterior.
A reunificação familiar significava o fim das remessas (divisas). E mais: pressentia-se que as mulheres subvertiam, perigosamente, o projeto migratório, no sentido do não retorno, contribuindo para o enraizamento em terra estrangeira. Um mal absoluto! Os académicos foram os primeiros a configurá-lo e a denuncia-lo nas sua obras científicas. Afonso Costa, por exemplo, escrevia que a abalada de mulheres era “uma depreciação do fenómeno migratório”. “…é quando a família fica na terra que ele envia mais regularmente as suas economias” (Costa, 1913:182). Emídio da Silva, por seu lado, afirmava que a nova tendência de saída maciça de mulheres era “uma constatação tremenda”, acentuando os perigos de “desnacionalização” e “cessação de remessas” (Silva:1917:132)) Fazedores de opinião, de políticas, numa avaliação puramente economicista das vantagens da emigração.
Porém, não houve discurso, nem lei ou autoridade que conseguisse estancar o êxodo, nem desviá-lo da rota brasileira para as colónias que restavam… Depois que o preço das viagens se tornou mais acessível, na primeira década do século passado, aumentou substancialmente, o número quer dos clandestinos, quer dos legais, que abandonavam o velho continente. As portuguesas, os filhos que as acompanhavam, constituíam, então, cerca de 30%, do total de saídas, um acréscimo de 107%, segundo o Prof. Emygdio da Silva, percentagem, que, ao longo do século, aumentou, progressivamente, atingindo a quase igualdade na emigração europeia, a partir de 1950/60.
Mesmo para destinos próximos, os homens iam à frente, mas os tempos eram outros, com o reagrupamento familiar a ser permitido, na Europa, em nome de direitos humanos fundamentais. E, quando a crise económica e mundial, a partir de 1973-74, quase fez cessar a emigração masculina, a feminina cresceu, ao abrigo daqueles princípios humanitários. Falava-se de “feminização da emigração”.
O “Estado Novo” abrandava a aplicação de regras restritivas, e, em1971, criava o Secretariado Nacional da Emigração (SNE) e, seguidamente, os primeiros serviços de apoio social no estrangeiro (Gomes, 2014:7). Contudo as mulheres, que se reuniam aos maridos, ficavam, em muitos países europeus, sujeitas a um estatuto jurídico de dependência, impedidas de aceder ao mercado de trabalho. Foi de uma forma gradual que venceram esses obstáculos e penetraram no mundo laboral. (Ramos, 2009:47) O trabalho salariado mudou o seu destino, e, também, o das comunidades portuguesas. As famílias, com dois salários e um relacionamento mais igual e mais aberto entre si e com os outros, compatriotas ou estrangeiros, integraram-se mais rapidamente e melhor – o casal e os filhos, em simultâneo (Leandro, 1995:50 )
O mundo associativo refletia (e, em muitos casos, promovia) esta realidade, com a recriação de espaços extra- territoriais de língua e de costumes portugueses, que, em muitos casos, progressivamente se abriram à sociedade local. A participação de mulheres, de famílias inteiras foi determinante na transformação de clubes masculinos – pontos de encontro, como as tabernas ou cafés de aldeia - em autênticos centros de cultura popular, com o folclore, o teatro, o restaurante de sabores caseiros, o desporto, e até as escolas, quando não existiam, por iniciativa pública. É de notar que o envolvimento das mulheres na liderança associativa (muito raro, em França, e por todo o lado, nas décadas de 60 a 80) se ficou a dever, sobretudo, ao propósito de organizar o ensino da língua – atividade em que, como docentes, quase sempre tiveram papel preponderante.
Deveremos, pois, concluir que, no passado longínquo, como no recente (na chamada “emigração a salto”), elas contribuíram para a inclusão social da comunidade familiar no país de destino, para o alongamento das estadas, e, igualmente, para uma tendência de não retorno, em sintonia com as segundas gerações. (Ramos, 2009:49) Por isso, ao contrário do que se esperava, nem todos regressaram no refluxo migratório que, até ao fim dos anos 80, trouxe de volta ao país, mais de meio milhão de portugueses. E, em compensação, nas comunidades do estrangeiro, elas tornaram-se as guardiãs da língua, da memória das origens, das tradições e dos modos de estar, de que se tecem, discretamente, as malhas, não do Império, que é sempre obra do Estado, mas da Diáspora, da Expansão cultural, que são feitos de pura sociedade civil.
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 2 - LIBERDADE DE EMIGRAR E POLÍTICAS INDIFERENCIADAS

A história das políticas de emigração em Portugal mostra que mais facilmente mudaram os regimes do que as recorrentes medidas de controlo e condicionamento dos fluxos de saída, de captação de remessas, de omissão de apoios significativos fora das fronteiras territoriais. Da monarquia tradicional à constitucional, do regime monárquico à Republica e desta à ditadura do "Estado Novo", neste campo, pouco foi o que mudou.
Os serviços iam sendo criados - Comissariado da Emigração, em 1919, Junta de Emigração em 1948- para prosseguir, essencialmente, objetivos semelhantes
As primeiras medidas de proteção foram tomadas para responder a críticas, de que a imprensa se fazia eco, às péssimas condições de transporte marítimo, a doenças e mortes a bordo e limitavam-se ao acompanhamento durante a viagem transoceânica " (políticas do trajeto de ida", na expressiva formulação de Maria Beatriz Rocha Trindade). Os prenúncios de viragem, embrião de políticas de apoio social, foram protagonizados pelo Secretariado Nacional da Emigração, e ficaram a dever-se, do mesmo modo, ao dramatismo da situação. ao crescente conhecimento público da sua dimensão, das condições de exploração salarial e de alojamento nos tristemente célebres “bidonvilles” dos subúrbios de Paris e outras grandes cidades.
A revolução de 1974, foi a primeira das revoluções que repercutiu, de imediato, no cerne das políticas de emigração, com a liberdade de sair e regressar, o reconhecimento da igualdade de direitos para os expatriados - direitos de participação política, direito à proteção do Estado - e com a criação de uma Secretaria de Estado da Emigração, responsável pela definição e execução de políticas inovadoras. Contudo, estas não se dirigiam ainda às migrações femininas, com a consciência e reconhecimento das suas especificidades, a par das especificidades das migrações masculina.
Para todos, a Constituição proclamava a igualdade de direitos, impondo ao Estado a criação de condições para a sua efetivação, “maxime” no que respeita à participação dos dois sexos na vida pública. Porém, o organismo que foi constituído, em Lisboa, para esse fim, uma comissão para a igualdade (designação genérica que aqui adotamos para um departamento cuja denominação tem variado bastante mais do que os seus objetivos, nas últimas quatro décadas) desenvolveu a sua ação centrada no território, sem olhar as comunidades do exterior, como poderia ter feito, articulando estratégias e planos com os serviços da Secretaria de Estado da Emigração, que, por seu lado, ignorando as situações concretas das migrantes, não suscitaram, para lhes dar resposta a colaboração de sucessivas comissões para a igualdade de género. Assim foi, pelo menos até à meia década de 80.
O mesmo descaso é patente nas reivindicações do órgão instituído, em 1980, para a co-participação na definição de políticas públicas neste campo, o Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP)
Pode perguntar-se o porquê dessa omissão persistente, num tempo de “feminização” das correntes migratórias, com conhecidas dificuldades de inserção, que começavam na precariedade do seu estatuto jurídico. De facto, era, então, um lugar comum destacar a "dupla discriminação" das mulheres, enquanto mulheres e enquanto estrangeiras. Discriminações para as quais muitas mulheres tinham sabido encontrar saídas engenhosas .o que, porém, só viria a tornar-se  conhecido com a publicação dos primeiros estudos científicos sobre famílias portuguesas, realizados na região de Paris (Leandro, 1995)
Uma das explicações para a inação dos governos poderá encontrar-se na falta de um paradigma, em termos de direito comparado, visto que a audiência e representação política das migrantes eram igualmente descuradas nos outros países de emigração do sul da Europa
Outro fator que pesou negativamente foi o desinteresse do movimento associativo pelas questões de género. Concretamente, o desinteresse dos seus dirigentes (quase só homens), que se somava à marginalização da situação das mulheres migrantes nos movimentos feministas de inícios do século passado (Aguiar, 2008:1248) e ao distanciamento do associativismo feminino das comunidades face às questões de sufragismo e empoderamento feminino, (concentrando esforços nas áreas mais tradicionalmente femininas da solidariedade e da beneficência).
Esta realidade refletiu-se no funcionamento do Conselho das Comunidades Portuguesas, enquanto órgão consultivo do governo, cujos membros provinham do universo associativo. Não havia uma única conselheira eleita no 1º Conselho, que reuniu em abril de 1981, nem houve uma única recomendação sobre os problemas da emigração feminina (5)
Uma segunda eleição, em 1983, trouxe ao CCP duas jornalistas e a uma delas, Maria Alice Ribeiro, de Toronto, se deve a primeira chamada de atenção para as carências de audição das mulheres. Na reunião regional da América do Norte, em outubro de 1984, submeteu a debate uma proposta inédita de convocação de um encontro mundial de mulheres, que obteve fácil aprovação. O governo deu imediata sequência à ideia e o encontro teve lugar em Viana do Castelo, em Junho de 1985, com a presença de portuguesas que, nas principais comunidades dispersas pelo mundo, se dedicavam ao jornalismo e ao associativismo (as duas componentes do CCP). e que aí fizeram um amplo levantamento de situações e de potencialidades, olhando as comunidades nas suas múltiplas componentes, incluindo a de género. No fim, apresentaram recomendações e conclusões, convertendo a reunião numa espécie de CCP no feminino, com um discurso muito focado em aspetos culturais e sociais e, por isso, aberto e consensual. E manifestaram a intenção de constituir uma organização internacional feminina da Diáspora, que pudesse continuar o diálogo com o governo, para repensar as grandes linhas de políticas futuras.
O Encontro de 1985 coincidia com o fim da década das Nações Unidas para a Mulher e Portugal tornava-se, através dele, e das soluções aí expressas, um país pioneiro nas políticas de “empoderamento” das mulheres, que seria, dez anos depois, uma das principais recomendações da IV Conferência das Nações Unidas (Rego, 2012:96,)
Em 1987, a organização internacional prefigurada nas conclusões do Encontro de Viana, ainda não estava estabelecida e a proporção de mulheres no CCP não aumentara expressivamente. Neste quadro, a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas tomou a iniciativa de promover uma conferência para a participação das mulheres", que, funcionaria, com carater periódico, a par de várias conferências sectoriais, na órbita do CCP. A queda do governo, nesse ano, levou a grandes alterações na vida do Conselho, que acabaria por ser extinto, e, com ele, se perdeu a estratégia de mobilização subjacente às "conferências". A experiência pioneira de promover políticas mais inclusivas em termos de género foi, assim, abruptamente interrompida, num longo interregno, que adiou por décadas o desenvolvimento de ações positivas destinadas às migrantes.


POLÍTICAS PARA A PARTICIPAÇÃO CÍVICA E POLÍTICA DAS MULHERES EMIGRANTES

O impulso para o relançamento das políticas públicas neste sector veio, novamente, da sociedade civil, através de uma associação ("Mulher Migrante - Associação de estudo, cooperação e solidariedade), formada, em1993, por algumas das participantes do Encontro de Viana, ligadas à emigração por laços diversos - emigrantes, funcionárias e funcionários dos serviços da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, investigadoras e investigadores, jornalistas, militantes de movimentos feministas ou de sindicatos - todos liderados por uma portuguesa do Brasil, então a residir temporariamente em Lisboa, a Eng.ª Fernanda Ramos ( 6). 
A associação, apesar da sua pequenez inicial, conseguiu concretizar, a par e passo, o objetivo principal, que era o despertar a consciência para um vazio de atuação pública, neste terreno, perante o desinteresse geral da sociedade portuguesa, e até também das comunidades do estrangeiro, inspirando-se nos ensinamentos do 1º Encontro mundial e no paradigma, aí testado, de diálogo e de cooperação Estado - sociedade civil, Foi, assim, obtendo a anuência dos interlocutores para propostas irrecusáveis, desde logo porque permitiam a entidades oficiais vencer a inércia em matérias da sua competência.
Durante um primeiro ciclo, entre 1993 e 2005, a cooperação estabeleceu-se, sobretudo, com a comissão para a igualdade, sedeada junto do Conselho de Ministros. Esta centrava, como referimos, a sua ação prioritária dentro de fronteiras -  havendo a mencionar, contudo, pelo menos um caso exemplar de boa colaboração da “Comissão” numa iniciativa da SECP desenvolvida na sequência da adesão do país à CEE::uma série de cursos de formação profissional para mulheres, realizados nas principais comunidades portuguesas da Europa (Paiva, 2005:15)
A primeira iniciativa da Comissão que abarcara as portuguesas do exterior fora, em 1994, sob a presidência de Ana Vicente, a realização de um colóquio internacional sobre "O rosto feminino da Expansão portuguesa", com muitas dezenas de personalidades do mundo académico lusófono, (embora com poucas representantes da emigração contemporânea), e um enfoque principal no tempo passado. Uma década depois, em 2003, a Presidente Maria Amélia Paiva, abriu o seu mandato, com um colóquio internacional sobre "Mulheres Migrantes Duas faces de uma Realidade", dizendo: “[…] é a primeira vez que, em Portugal, um serviço do Estado organiza em colaboração com outros organismos e instituições um seminário sobre mulheres migrantes” (Paiva, 2005: 14).Ou seja, abrangendo as estrangeiras em Portugal e as portuguesas no estrangeiro.
Anteriormente, como dissemos, a "Comissão" limitara-se a subsidiar, nesta área, estudos, colóquios, debates, ações de sensibilização promovidos pela Associação “Mulher Migrante”, sem, contudo, as ter enquadrado como um eixo principal da sua programação. As emigrantes portuguesas permaneciam, pois, numa "terra de ninguém" das políticas públicas, visto que a SECP persistia em ignorar as particularidades da sua situação no estrangeiro, e o CCP também, depois que ressurgira em 1996., em novos moldes, com eleições realizadas por sufrágio direto e universal. A adoção desta forma de eleição tinha trazido a cena um pequeno número de mulheres, que, contudo, não logravam pôr na ordem do dia dos plenários as questões da igualdade. É de realçar que o fizeram, com sucesso, ao nível de alguns países, sobretudo na América do Norte (7).
A rotura com esta atitude de indiferença dos poderes públicos verifica-se no ano de 2005 e parte de uma proposta apresentada pela Associação Mulher Migrante ao Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas António Braga para a organização de um 2º Encontro mundial de Mulheres da Diáspora. Era uma forma de comemorar a passagem do 20 º aniversário do Encontro de Viana e de lhe dar prossecução, a nível governamental
António Braga aceitou a ideia de imediato, mas imprimiu ao projeto um desenho original, começando por convocar, ao longo de quatro anos, reuniões nas grandes regiões do mundo, onde as migrações no feminino apresentam caraterísticas muito diversas, para terminar com um congresso mundial em Portugal, no ano de 2009.
Embora o governo fosse o impulsionador da iniciativa, preferiu manter-se como o principal interlocutor em grandes Encontros, cuja preparação e execução ficavam diretamente a cargo de ONG's - a associação”  Mulher Migrante “e outras organizações atuantes dentro do país, na área dos direitos da mulher e dos direitos humanos, em estreita colaboração com as associações das comunidades em cada uma das regiões. O ciclo iniciou-se na América do Sul (Buenos Aires, 2005), prosseguiu na Europa (Estocolmo, 2006), na América do Norte, costa leste (Toronto, 2007),na África (Joanesburgo, 2008), e na América do Norte, costa oeste (Berkeley, 2008), terminado com um  Encontro internacional (em Espinho,) com a participação de relatoras de cada uma das reuniões regionais. (Aguiar, 2009:33-44).
Em todas elas estiveram envolvidas as missões diplomáticas portuguesas e presente o governo, através do Secretario de Estado das Comunidades, António Braga ou do Secretário de Estado da Presidência, Jorge Lacão, que detinha a tutela da comissão para a igualdade. Tratou-se, assim, de uma verdadeira parceria Estado/ Sociedade Civil. Em cada região e país, as responsabilidades foram partilhadas por embaixadas e consulados, por instituições privadas - a Associação da Mulher Migrante Portuguesa da Argentina, a Federação das Associações de Mulheres Lusófonas (PIKO), na Suécia, a associação "Working Women" e outras, no Canadá, a Liga das Mulheres Portuguesas na África do Sul, e o Departamento de Estudos Europeus da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos EUA.
Indiciador do estado de autêntica dormência em que se haviam mantido as políticas de género nas comunidades do estrangeiro, durante cerca de duas décadas, é a consonância nos discursos dos Secretários de Estado das Comunidades Portuguesas em 1985 e em 2005, reconhecendo, do mesmo modo, e quase com as mesmas palavras, a falta de atenção de que as portuguesas expatriadas se podiam queixar.
Em 2005, António Braga manifestava a intenção de "retomar" nas políticas públicas, "a questão de género que tem andado esquecida ao longo dos anos" (8)
Jorge Lacão, no Encontro de 2006 e na Conferência para a Igualdade em Toronto, com a mesma compreensão, assumia que o dever constitucional imposto ao governo de promover a igualdade entre mulheres e homens se estende ao espaço da emigração, dizendo que: “No seu programa, o XVII governo português comprometeu-se a estimular a participação cívica dos membros das comunidades portuguesas, tendo como princípio orientador a Igualdade de Oportunidades entre todos os portugueses e todas as portuguesas, nomeadamente a igualdade de género, independentemente de serem ou não residentes em Portugal" . E foi mais longe ao reconhecer que a igualdade de género ganhara o seu lugar central, “através da transversalização da perspetiva de género em todas as áreas prioritárias de política social, económica e cultural (gender mainsteaming), ao qual se associam medidas de carater positivo onde persistem notórias assimetrias de género”.(Lacão, 2009:9)
Era esse, notoriamente, o caso da (não) participação igualitária no mundo associativo da Diáspora, que, na maior parte dos países de destino, sobrelevava eventuais discriminações persistentes em sociedades estrangeiras, onde, aliás, a integração não só é conseguida, mas frequentemente, impulsionada pelas mulheres (Ramos, 2009:49). Por isso, o enfoque prioritário do programa para a igualdade 2005/2009 foi posto nas questões de cidadania, de inclusão no plano da intervenção cívica e política, da liderança do movimento associativo.
O CCP, como órgão consulta e de representação dos portugueses do estrangeiro, onde, como constatámos, o papel das mulheres fora sempre secundarizado, tornou-se o alvo da primeira aplicação da "Lei da Paridade",. Voltou, assim, a fazer história das políticas de género, apesar dos resultados, até hoje algo dececionantes da aplicação da Lei na sua composição e funcionamento
Um novo passo, de valor grande simbólico, foi dado na Assembleia da República com o debate e a aprovação da Resolução nº 32/2010 sobre a igualdade de género na emigração.
Nunca antes o parlamento português se debruçara sobre esta problemática, instando o governo a ação imediata e continuada, apontando a via da cooperação estreita entre Estado e ONG's das comunidades, fazendo do "congressismo" - colóquios, debates, jornadas de reflexão . um dos instrumentos privilegiados de sensibilização para a igualdade.
O XIX governo constitucional, empossado em 2011, com o Secretário de Estado José Cesário (que, na qualidade de deputado, havia sido o autor da referida proposta de recomendação), reiniciou, prontamente, o diálogo com as associações - a “Mulher Migrante” e outras - com vista à prossecução das políticas para a Igualdade e patrocinou, logo em novembro desse ano, um Encontro Mundial realizado na cidade da Maia.
Retomada foi também a alternância entre reuniões nas diversas comunidades e congressos mundiais em Portugal (o último dos quais, até à data, decorreu em 2013, em Lisboa, no Palácio das Necessidades), seguido em 2014 de uma série de colóquios em Portugal e no estrangeiro, sobre o impacte da revolução de 1974 e do restabelecimento da democracia no campo das migrações. Como tem vindo a acontecer no “congressismo” de que falamos, é importante pôr em diálogo e interação dois mundos que nem sempre convivem facilmente: o associativo e o político, por um lado, e o académico, por outro
Ao longo desta última década, a mais fértil em medidas positivas, consequentes à assunção pelo Estado dos seus deveres promover a igualdade decorrentes do art. 9, conjugado com o art. 109, da Constituição, não só dentro como fora dos limites territoriais, o acento foi muitas vezes colocado na cultura, no ensino, onde as mulheres migrantes mais têm acedido à igualdade. E, também, no conhecimento, na investigação, na análise das migrações femininas, cuja escassez no passado distante, como no ainda recente, muito prejudicaram a eficácia das políticas, o seu ajustamento às realidades plurais e em rápida mudança, pela invisibilidade das mulheres e dos seus problemas.
A terminar, queria renovar o agradecimento pelo convite da Prof. Doutora Maria da Conceição Ramos para participar na sessão de encerramento de mais um esplêndido congresso "A Vez e a Voz da Mulher".O êxito e continuidade destes congressos, ao longo dos anos e em diversos continentes, deram ao movimento, nascido e desenvolvido na sociedade civil, uma expansão internacional, que a par da sua qualidade intelectual e científica, o singularizam no universo da diáspora portuguesa (e não só da diáspora feminina). Um paradigma que mulheres de grande cultura e saber, de grande visão, oferecem ao país, e aos seus governos, dizendo-lhes com a sua Voz que é tempo das Mulheres terem a sua Vez, no centro das políticas e da vida das sociedades do século XXI.

Notas

(1) A Comissão da Condição Feminina, sempre mais preocupada com a condição das portuguesas residentes no território, ao lançar um primeiro olhar sobre o fenómeno de expatriação feminina, começa justamente por estas grandes mulheres, que, longe de solo pátrio, deixaram o seu nome na História.
Nas duas décadas que se seguiram à Revolução de 1974, apenas uma das publicações da Comissão incide sobre a temática da emigração – o14º Caderno da Condição Feminina (1982), da autoria de Karin Wall – “A outra face da emigração: estudo sobre a situação das mulheres que ficam no país de origem”. Note-se o enfoque nas mulheres que ficaram, não nas que partiram…
(2) O Autor destaca, em vários trechos da sua publicação, a total oposição entre as políticas dos dois Estados peninsulares, referindo as sucessivas medidas legislativas de Castela para promover a reunificação das famílias, no Reino ou no ultramar   a sua modernidade, mesmo por padrões de hoje -   e a inexistência dessa preocupação em Portugal - à época, já um verdadeiro anacronismo.
(3 Júlia Néry tem, para além dos seus reconhecidos méritos literários, a virtude de nos levar a pensar nas “orfãs”,  não como mero tessitura de experimentação política, no caso de políticas de europeização da nossa colonização, mas como pessoas com os seus sentimentos, medos, resistência ou sujeição a duras condições, preconceitos, imposições… Ficção sugestiva do que terá sido destino de muitas jovens. O preço humano das políticas, numa leitura feminista.
(4) Joan Margaret Marbeck foi bolseira da Gulbenkian e continua hoje a desenvolver uma luta constante pela sobrevivência de uma fala em risco de se perder, como expressão de uma comunidade euro asiática, luso malaia, em que a tradição cristã impera – e daí a sua designação como “Kristang ”
(5) A recolha e tratamento das recomendações do CCP nos seus primeiros anos de funcionamento (1981-1985) publicada pela Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas é reveladora da invisibilidade da mulher, da sua situação, dos seus problemas no órgão oficial de co-participação nas políticas para a emigração, então, como vimos, eleito no universo associativo. As mulheres estão duplamente ausentes do CCP:
na ausência física, (apenas em 1983 surgem as primeiras conselheiras, jornalistas com o estatuto de “observadoras” – que era o dos jornalistas, na economia do diploma fundador do CCP . o DL 373/8 de 12 de setembro); na ausência como destinatárias de propostas concretas. Num total de 268 recomendações analisadas, a palavra “mulher” surge apenas uma vez na parte relativa a “condições de trabalho e estadia nos países de acolhimento”, na recomendação 35, que aconselha o governo a “sensibilizar as famílias que pretendem emigrar para a Austrália para a eventualidade de o cônjuge (mulher) ter um melhor acesso ao mercado de trabalho do que o outro cônjuge, por forma a evitar situações familiares e sociais conflituosas.
 “Mulher” surge, assim, entre parênteses e num contexto negativo, ao exprimir a preocupação de ela poder vir a gozar de uma situação laboral demasiadamente boa… O Governo, como era de esperar, declinou o conselho. De positivo, nesta singular exortação, apenas o revelar que, ao contrário do que sempre se prevê, nem sempre a mulher, por ser mulher, é objeto de discriminação no país de acolhimento.
 De salientar que é justamente neste capítulo que algumas, poucas, recomendações, embora falem de “cônjuge” se referem ao estatuto jurídico da mulher, no quadro da reunificação familiar. Ao invés do que acontece com as mulheres, os filhos, os jovens são mencionados expressamente no texto de várias recomendações
(6) Fernanda Ramos, grande empresária em Minas Gerais, viúva e mãe de nove filhos, era senhora de um vasto curriculum no associativismo, em Belo Horizonte e em todo o Brasil, tendo sido a primeira mulher eleita presidente do Elos Clube Internaciona

(7) No Canada, o coordenador do CCP, Conselheiro Manuel Leal, teve uma ação notável neste campo, promovendo uma série de seminários e ações de sensibilização para a igualdade, acompanhado, sobretudo pela Conselheira Maria Alice Ribeiro. Nos EUA, foi a Conselheira Manuela Chaplin quem desenvolveu iniciativas semelhantes, com o apoio do coordenador do CCP neste país, conselheiro João Morais.
 Na América do Sul distinguiu-se o Conselheiro Luís Panasco Caetano, que representava o Uruguai e um conjunto de outros países com pequenos núcleos de portugueses , e mantinha contactos  estreitos com o movimento associativo no sul do Brasil e Argentina (é um dos históricos dinamizadores dos “Encontros do Cone Sul”).. Em vários desses países, foi ele que diligenciou uma multiplicidade de encontros informais, visando o envolvimento das mulheres no associativismo, em colaboração com a associação “Mulher Migrante”
(8) António Braga reconhecia, em Buenos Aires, em novembro de 2005 quanto a questão de género tinha “andado esquecida ao longo dos anos, como, 20 anos antes, no encerramento do Encontro de Viana, a sua antecessora no cargo, eu mesma, tinha sublinhado a "[...] ausência de participação, de voz, de reconhecimento, de poder, ao menos de poder formal nas instituições",. Também, as participantes no Encontro de 1985 denunciaram, com veemência, "a pouca audição que tem sido dada às mulheres portuguesas no estrangeiro".


                                                                               
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