setembro 08, 2025

À DESCOBERTA DE RUTH ESCOBAR Ruth Escobar foi no Brasil, a mais destacada mulher portuguesa da sua geração, nome grande do teatro, da cultura, da política. Maria Ruth dos Santos nasceu no Porto, em Campanhã, viveu na rua do Bonjardim, foi aluna do Liceu Carolina Michaelis, onde se estreou a representar todos os diabos de Gil Vicente. Tinha 16 anos quando a mãe a levou numa viagem sem retorno para o Brasil. Nas suas próprias palavras: "quando embarquei para o Brasil, no Serpa Pinto, com a minha mãe, levava também a certeza de um destino, pois soube que tudo o que sucedeu na minha vida, mesmo antes do meu nascimento, estava moldado por uma força universal, cósmica, transcendente". No Rio, no Colégio Roosevelt, como antes no liceu portuense, o seu talento em palco, conferiu-lhe o título de "rainha" do colégio. Passou nos exames, mas trocou os estudos pelo trabalho, a vender a "Revista das Indústrias". Já ganhava mais do que a progenitora, e logo deu um passo em frente: aos 18 anos, com apoios da comunidade portuguesa, lançou a sua própria revista, "Ala Arriba". Na sua veste de jornalista amadora, apercebeu-se das ameaças à presença portuguesa na Índia e propõs-se defende-la, a nível planetário. Com o patrocínio dos compatriotas de S Paulo, partiu na sua volta ao mundo e ombreou com os melhores correspondentes de imprensa internacional, entrevistando uma longa lista de celebridades, como Foster Dulles, Christian Pinaud, Bulganin, Krushev, o Principe Norodan Sihanouk, o presidente das Filipinas, os primeiros-ministros da Turquia e da Tailândia, e o mítico Nasser - a única a ter esse privilégio, no meio de quinhentos jornalistas presentes no Cairo! No mundo português foi recebida pelos governadores de Macau e da Índia e, na capital, pelo ditador Salazar! Os seus exclusivos eram disputados por revistas como a "Life" e por grandes jornais brasileiros e portugueses. Em Lisboa, foi convidada a integrar a comitiva do Presidente Craveiro Lopes na visita oficial a Moçambique, mas acabou expulsa por ato considerado subversivo - a revelação perante os "media" nacionais e internacionais de um acidente aéreo, que a propaganda do regime queria ocultar. Foi o primeiro de muitos gritos de liberdade, pelos quais nunca hesitou em arriscar tudo. Aos 20 vinte anos, estreou-se como empresária, produtora teatral e atriz. Construiu um teatro com o seu nome na cidade de São Paulo. Na década de sessenta fundou o Teatro Nacional Popular para levar ao interior da Estado espetáculos de qualidade (Martins Pera, Suassuna) … Não era menos exuberante a sua vida fora de cena, com quatro filhos em três casamentos (o primeiro, breve, para se autonomizar da mãe, o segundo com o poeta e dramaturgo Escobar, o terceiro com o arquiteto Wladimir Cardoso, que viria a ser o cenógrafo das suas peças de enorme sucesso, como " O cemitério de automóveis" de Arrabal com montagem do argentino Vitor Garcia e encenação sua. Uma dupla que, em 1969, com "O balcão" de Jean Genet, venceu todos os prémios brasileiros. A partir de 1984, Ruth (na casa dos 30 anos) afronta a ditadura em que o Brasil se afunda. O seu Teatro converte-se em palco de luta pela liberdade, resistindo a ameaças, as pressões, ataques de comandos paramilitares, violência sobre os atores. Na sua autobiografia escreve que perdeu a conta ao número de prisões e interrogatórios, aos quais ia respondendo no seu estilo excessivo e provocatório. De uma das vezes, foi Cacilda Becker, sua mentora e amiga, que interveio junto do prefeito de São Paulo para a libertar: "Prefeito, temos de tirar a Ruth, aquela portuguesa vai pôr fogo no quartel, é um serviço que o Senhor vai prestar às Forças Armadas, tire-a de lá quanto antes". E ele tirou... Nessa década, trouxe a Portugal alguns dos seus maiores êxitos "Missa leiga", "Cemitério de automóveis". A Censura proíbe o espetáculo em Lisboa, mas autoriza-o em Cascais, porventura vista mais inacessível a camadas populares... Aí Ruth conhece as três Marias, lê "As novas cartas portuguesas", Simone de Beauvoir, e converte-se ao feminismo! A nova causa abre-lhe outros palcos, os da política. Candidatou-se, ao abrigo do Tratado de Igualdade de Direitos entre Portugueses e Brasileiros (nunca se naturalizou brasileira), e tornou-se a primeira mulher a ser eleita e reeleita Deputada à Assembleia do Estado de São Paulo, a primeira Presidente do "Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres" e a primeira Representante do Brasil nas Nações Unidas para o acompanhamento da Convenção contra a discriminação das Mulheres. Entretanto casara, uma última vez, e tivera o seu quinto filho. Em 1974, organizou o primeiro Festival Internacional de Teatro, que levou a São Paulo, o que de melhor se fazia nas grandes capitais do mundo. Iniciativa que repetiu em 1976, vendo-se reconhecida como a grande renovadora da arte dramática brasileira. Conheci Ruth Escobar, em 1982, na residência do nosso Cônsul, durante um jantar em que fiquei a seu lado. Éramos ambas deputadas, feministas, portuenses, falámos da nossa cidade, do nosso liceu, da nossa juventude, da misoginia da ditadura. Pouco depois reencontrei-a em S Paulo, na companhia de Natália Correia. Imaginem como me diverti entre duas mulheres de génio, iguais no carisma e na graça natural… Em outro de muitos encontros, tive a sorte de assistir, em pleno São Paulo, à sua última produção, tão audaciosa como as primeiras. Pôs em cena "Os Lusíadas"! E assim Ruth Escobar deixou uma herança teatral única, enraizada no Gil Vicente da sua juventude e no vanguardismo com que mudou a face do teatro brasileiro. O seu trajeto artístico, cívico e político foi reconhecido com as mais altas condecorações brasileiras. com a Legião de Honra e a Ordem das Artes e das Letras, de França, onde estudou arte dramática. E até Portugal a distinguiu com a Ordem do Infante D Henrique. É um nome lendário no Brasil, mas no Porto e em Portugal continua a ser uma desconhecida. Será que a Pátria vai descobrir, um dia. esta emigrante ilustre? Eu ainda não perdi a esperança

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