maio 22, 2012


Literatura e Solidariedade – um estudo de Brasil, Fronteira da África,
de Maria Archer
Elisabeth Battista1
Em meados do século passado a circulação literária entre Brasil e África, continente que
tanto mexeu com a imaginação de leitores, era praticamente inexistente. Tendo inaugurado seu
destino viajante por terras africanas em 1910, com apenas dez anos de idade, a escritora lusitana
Maria Archer lançou em 1957, durante o seu exílio no Brasil, na capital de São Paulo, a obra Brasil
Fronteira da África, dedicado ao público-leitor brasileiro e sul-americano. No horizonte do nosso
interesse está a busca por compreender como a captação da alma de um povo se materializa na obra da escritora, assim como, naquela altura, em que poucos falavam sobre a África no Brasil, Maria Archer contribuiu para o estímulo ao diálogo entre as literaturas brasileira e africana.
A escritora e jornalista Maria Archer, nome marcante da vida e cultura portuguesas, viveu
também em Angola, Guiné-Bissau, Niassa, Luanda e, a partir de 1955, no Brasil.
Sua presença, também, era regular em jornais e revistas, aliás, muitos de seus textos de
temática africana aparecem inicialmente na imprensa periódica lusitana. Esse detalhe da biografia
de Maria Archer ajudará a compreender a sua vasta bibliografia de temática colonial publicada ora
em livros, ora em periódicos, ora, ainda, em revistas especializadas como: O Mundo Português,
Portugal Colonial e Ultramar.
Assim, a consolidação de sua atividade como escritora e jornalista de matérias
coloniais foi fruto do interesse de uma época em que viu reunidas as condições necessárias
à produção e ao consumo desse gênero de literatura.
O repertório da autora, entretanto, não se reduz aos textos laborados para os Cadernos
Coloniais, como classificam alguns seguimentos da crítica, no sistema literário e sócio-histórico cultural, dado que se segue uma vida de intensa produção literária e intelectual ainda pouco
exploradas.
É, não obstante, em 1944 que produz o primeiro e seu mais importante romance Ela é
Apenas Mulher2, obra decididamente escandalosa para a moral da época. Não só pelo tema que


1Estágio Pós-Doutoral/Universidade de Lisboa – Bolsa de Investigação/CAPES, sob a Supervisão da Profa. Dra.
Inocência Mata, FLUL/Portugal. Docente no Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – PPGEL, da
Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT/Brasil.
2Segundo Maria Tereza Horta cita no prefácio de Ela é Apenas Mulher (2001, p. VII). Este romance é um dos melhores retratos da situação das mulheres portuguesas da primeira metade do século XX, “o único retrato autêntico de corpo inteiro”.


continua atual no que diz respeito à condição feminina, mas porque, como mulher, encontrou a
forma adequada para abordar o assunto a que se propunha: o domínio da palavra.
Há, contudo, um período enigmático em sua vida: o período em que a escritora foi em
exílio para o Brasil, nos anos de Salazar e essa é uma das razões que nos inclinam a nos deter
também no corpus estabelecido para este trabalho.
Partimos de um diversificado painel de pontos de interesses aparentemente divergentes, no
conjunto da produção literária da autora nos países de língua portuguesa, cujas obras transcendem
as fronteiras nacionais e étnicas –África/Portugal/Brasil –, podendo encontrar um farto repertório
temático à disposição dos leitores, consubstanciado na maior riqueza de gêneros, desde livros
infantis, novelas de cunho sentimental, romances, ensaios, crônicas, relatos de viagens, até teatro e
traduções.
Com base em sua vivência e conhecimento sobre a África, Maria Archer, na época em que
esteve radicada no Brasil, publicou:
Terras Onde se Fala Português (1957), prefaciada por Júlio Gouveia3, diz “embora sejam
nele apenas convidados os jovens à sua leitura, os adultos também podem aproveitar, se a viagem
começa como um conto de carochinha e acaba como uma aventura fantástica”. Um roteiro
ensaístico e descritivo, onde apresenta um estudo dos aspectos geográficos, étnicos, históricos e
culturais dos territórios africanos que tem o português como língua de comunicação;
Os Últimos Dias do Fascismo Português (1959), da editora Liberdade e Cultura. A 1ª
edição publicada em 1959 foi de três mil exemplares e a sua reedição, que parece não ter contado
com o consentimento da autora, ter-se-á destinado (Archer, 1972, p.3)4, “para a contribuição dos
comunistas para não sei que movimento, aí em Portugal”. São apontamentos tomados durante as
audiências do julgamento do Capitão Henrique Galvão, conforme memórias do processo político,
julgado no 1º Tribunal Militar Territorial, (Santa Clara) em Lisboa, em Dezembro de 1952;
África Sem Luz (1962), coletânea de contos e narrativas africanas densas de mistérios e
sortilégios na qual nos dá conta de um mundo poderoso e ingênuo, forte e primitivo;
Brasil, Fronteira da África (1963), em que apresenta aos brasileiros a África de expressão
portuguesa, sobretudo Angola em guerra pela independência do colonialismo salazarista; conclama
ao Brasil para que assuma o papel de “paladino” da Língua Portuguesa, comum aos três países e
impeça o seu aniquilamento como também da cultura portuguesa em Angola.
Um olhar sobre a temática deste livro, estruturado em seis capítulos, verifica-se a apresentação da condição sócio-político-cultural do povo angolano em conflito. Apresentou com base em dados históricos, a outra face do processo de colonização. A partir da vivência da guerra, a

3Júlio Gouveia, Prefácio ao livro de Maria Archer, Terras Onde se Fala Português, 2ª. Ed., São Paulo, Ed. Casa do Estudante do Brasil e Carlos de Assumpção Neves, 1957, p. 17.
4 Excerto da carta enviada ao sobrinho Professor Fernando de Pádua, na referida data.


produtora textual descortinou o panorama de um movimento bélico que ceifou mais de uma centena
de milhar de vidas. A escritora e jornalista portuguesa Maria Archer inseriu na pauta do público leitor algumas reflexões sobre a resistência da África atlântica que se expressa em idioma fraterno,
como atesta o prefácio:
O título deste livro é um brado, uma chamada. “Brasil, fronteira da África” foi publicado para lembrar aos brasileiros essa África que existe, muralhada no mistério e nas distâncias, esplendente nos longes onde nasce o sol, além, na outra margem do mare nostrum Atlântico, de olhos voltados para o Brasil. (p.5)
Trago à presença dos brasileiros, só e somente, a terra e gentes de Angola. Da África de expressão portuguesa é ela a colônia mais ensangüentada e dorida. As suas gentes, em guerra contra o colonialismo salazarista, consideram o Brasil um paradigma de liberdade, uma polarização sócio-política que as fascina. E o Brasil ignora-as. (…) O meu livro pretende ser a ponte que aproxima os povos das margens do Atlântico irmanados pelo sangue bantu. Guardei nele imagens em vias
de se diluírem na efervescência dos dias de hoje. (p.7)
A obra coloca-se como um esforço no sentido de dar visibilidade à condição dos países
africanos de que tem o Português como língua de comunicação, e um lança o apelo ao Brasil, à
manutenção da coesão social, pela solidariedade e a força unificadora da Língua Portuguesa.
A imagem da aproximação das margens do Atlântico é muito rica e fornece campo à
reflexão e o estabelecimento de paralelos entre África e o Brasil, do ponto de vista linguístico, dos
seus espaços socioculturais, da captação das dinâmicas do universo cultural, de seus imaginários
levando-os para a reflexão acerca que o teorizou o crítico brasileiro Benjamin Abdala Jr.5, acerca do “comparatismo da solidariedade”.
O código enunciativo da obra que se coloca como uma contribuição literária e um documento histórico, revela que as circunstâncias do exílio impuseram à escritora viajante e viajada a redefinição e a reconstrução de um conceito de identidade, entre os países que se comunicam
através da língua portuguesa. Na nova visada, ainda que o vínculo com o projeto estético do
passado pudesse ser mais ou menos mantido, a revisão de valores foi inevitável, num processo de
reorientação dos rumos de sua produção criativa, substancialmente, no âmbito do seu eixo temático estilístico, que agora volta-se, com intenso interesse, para a resistência ao regime político vigente em Portugal.
A nova postura adotada, pensada e vivida por Maria Archer, pode ser pressentida no teor
anticolonialista logo no prefácio da obra, onde apela à mobilização dos países e a solidariedade
entre as nações, fundada na íntima conexão dos seus destinos.
A construção da simpatia e solidariedade pelos temas da África, expressa na sua escritura,


5 ABDALA Jr. Benjamin. De Voos e Ilhas – Literatura e Comunitarismos. 2° ed., 2008. ISBN:85-
7480-168-2


constrói-se desde a sua primeira viagem à África, conforme obra publicada no Brasil, em 1963,
onde narra a experiência, na qual se foi formando a atitude de afeição à aquele continente:
No 1º quartel deste século, era eu menina, meu pai foi colocado na agência de um banco em Moçambique. Daí derivou a minha odisséia de africanista. Indo e vindo, passando uns tempos em Portugal e outros em África, foram-se quatorze anos da minha vida na terra tropical, que só reencontrei no Brasil. (p.121)
Pouco a pouco, a experiência compartilhada entre os mundos em que viveu, levou a
escritora e jornalista ao encontro de uma maneira de pensar que tendia a desconstruir os paradigmas
do conhecimento ocidental, num mundo crescente marcado pela visão anti-colonialista. A crítica
tem apontado essa condição de uma forma particular de exílio vivida por muitos intelectuais
contemporâneos, geradora de um pensamento que se esforça por articular mundos e universos
culturais diferentes.
Na outra margem do Atlântico, Maria Archer, na intenção de manifestar o seu descontentamento diante de posições, atitudes e posturas políticas que julgava incorretas, escreveu para alguns jornais, nomeadamente O ESP, Semanário e Portugal Democrático. Nas duas décadas que no Brasil viveu produziu artigos que contribuíram vivamente para a composição do movimento de resistência ao regime conservador e autoritário vigente em Portugal. Nasce dessa iniciativa conjunta com vários exilados portugueses o periódico Portugal Democrático (1955-1974), que pretendia divulgar a situação que se vivia em Portugal, e seria a concretização da aspiração de se constituir como grupo de anti-salazaristas, a partir do exílio.
Neste sentido, o olhar sobre a contribuição de Maria Archer para a imprensa de Língua
Portuguesa durante o período de exílio, além de levar-nos ao encontro com as obras acima
referenciadas colocou-nos frente a um sem número de colaborações que a autora endereçou às
publicações em jornais, sendo delas o conjunto mais representativo aquele que produziu para o
jornal OESP (1955-1957). Evidencia-se, portanto que a vida literária corria paralela à sua atuação no jornalismo.
Deste modo, ao entrar em contato vida e a obra desta mulher exuberante, autodidata, viajante e viajada, uma representante da literatura escrita por mulheres, deparei-me com um fato curioso que corroborou ainda mais a minha reflexão: O fato de, tendo ela nascido no limiar do século XX, e tendo contatado direta ou indiretamente com as correntes de pensamento que influenciaram, ou afetaram de forma intensa o ambiente político cultural português até meados dos anos cinquenta do século passado, e ser, não obstante, pouco estudada pela historiografia literária da Literatura Portuguesa.
Sem enveredar pelos meandros da reflexão sobre o percurso oneroso da mulher que se
quisesse escritora na primeira metade do século XX, reporto-me, a um registro feito por uma das
mentes mais conservadoras e carismáticas do Século XX, peço licença para expor alguns excertos
da Carta às mulheres, do Papa João Paulo II.
Carta às mulheres – Papa João Paulo II 6
Infelizmente, somos herdeiros de uma história com imensos condicionalismos que, em todos os
tempos e latitudes, tornaram difícil o caminho da mulher, ignorada na sua dignidade, deturpada nas
suas prerrogativas, não raro marginalizada e, até mesmo, reduzida à escravidão. Isto impediu-a de
ser profundamente ela mesma e empobreceu a humanidade inteira de autênticas riquezas
espirituais. […]
Assim, o meu “obrigado” às mulheres, converte-se num premente apelo a que, da parte de todos,
particularmente do Estado e das Instituições Internacionais, se faça o que for preciso para devolver
à mulher o pleno respeito da sua dignidade e do seu papel. […]
Não posso deixar de manifestar a minha admiração pelas mulheres de boa vontade que se dedicaram a defender a dignidade da condição feminina, através da conquista de direitos
fundamentais sociais, econômicos e políticos, e assumiram corajosamente tais iniciativas em
épocas em que este seu empenho era considerado um acto de transgressão, um sinal de falta de
feminilidade, uma manifestação de exibicionismo, e talvez, um pecado”
Este evento7 pode ser traduzido também, como um tributo de gratidão e reconhecimento e vem, até certo ponto, colmatar uma falha que pesa sobre o nome da autora, e não merece ser deixada ao abandono dos investigadores, tanto mais que é amplamente reconhecida pelo público-leitor.


6 Excerto extraído do Fórum Mulher, n° 3, Edição das ONG do Conselho Consultivo da CIDM.
7 Vida e Obra de Maria Archer – Uma Mulher da Diáspora foi uma iniciativa da Associação Mulher
Migrante, em parceria com a Fundação INATEL, A Câmara Municipal de Espinho e a Fundação Professor
Fernando de Pádua e realizado em 29 de Março de 2012, quinta-feira, no Teatro da Trindade – Salão Nobre– em Lisboa.

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