agosto 11, 2016

Foi há quatro anos, na Maia

quarta-feira, 24 de outubro de 2012 Congressismo feminino No Encontro Mundial da Maia, procuramos ir às raízes de um movimento pela intervenção cívica da Mulher, que, a nosso modo e nosso tempo, continuamos, olhando em especial as mulheres da Diáspora. O que nos une e reúne, como há um século aconteceu, com as feministas da 1ª República, é a convicção de que só a acção colectiva pode levar a mudanças essenciais a uma transformação da sociedade no sentido da maior igualdade de género. O poderoso associativismo feminino, que se projectou no tempo dessas precursoras, é irrepetível e do que, na mesma época, traduziu formas inéditas de solidariedade entre as portuguesas emigradas (muito em particular na Califórnia, a nível do movimento mutualista) o mesmo se poderá dizer. É certo que há ainda lugar - sobretudo no campo tradicional da acção social e da beneficência - para organizações exclusivamente compostas por mulheres, que desempenham um papel muito importante, como é o caso da Sociedades das Damas Portuguesas da Venezuela, da Liga da Mulher da África do Sul e da Associação da Mulher Migrante Portuguesa da Argentina, de todas a mais recente. Mas na Califórnia, as pioneiras Sociedade Rainha Santa Isabel e União Protectora Portuguesa do Estado da Califórnia passaram a aceitar a filiação de membros do outro sexo e a fusão com outras sociedades fraternais. No século XXI, na nossa perspectiva, a prioridade terá de ser dada ao acesso das mulheres ao dirigismo nas organizações em que se estruturam as comunidades portuguesas e em que elas estão, em regra, ainda marginalizadas - o que para além de representar uma inaceitável discriminação sexista, prejudica a expansão e a renovação das próprias instituições, como é crescentemente reconhecido. Por isso, consideramos que o "congressismo", outra das heranças feministas do início de novecentos - entendido em sentido lato, para abranger o esforço de informação, debate, reflexão, crítica, testemunho, troca de experiências, reivindicação em múltiplos "fora" e, genericamente, eventos com projecção mediática- é um dos mais eficazes instrumentos actuais ao serviço do objectivo de mobilizar as portuguesas para a intervenção nas comunidades do estrangeiro. A organização dos vários Encontros Mundiais de Mulheres Migrantes, a partir de 1985, e de conferências, seminários, debates sobre a temática de género ligada à emigração portuguesa, enquadra-se nesta visão das coisas e tem sido, muito frequentemente, iniciativa conjunta, ainda que através de fórmulas diversas, do governo e das ONG's (penso sobretudo, nas que vêm sendo levadas a cabo, desde 1994, pela "Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade"). Nesta comunicação breve, limito-me a assinalar algumas das singularidades do exemplo português na luta pela afirmação da cidadania das mulheres e da recorrência de "diferenças" ou originalidades nossas, em épocas tão distintas como foram o início e o final do Século XX, com o propósito muito pragmático de delas tirar ensinamentos e de, correndo, embora, os riscos sempre inerentes à extrapolação, virtualidades actuais de mudança rápida do "status quo" - à portuguesa... 1 - Considerações sobre o movimento feminista de novecentos O movimento feminista foi, em Portugal, surpreendentemente, moderno e vanguardista na medida soube resistir à tentação (datada) do radicalismo, aos excessos de uma "guerra de sexos", por um lado, e, por outro, ao mimetismo dos paradigmas masculinos, em favor de uma assumpção plena do "feminismo feminino", na expressão de Carolina Beatriz Ângelo. As nossas Avós sufragistas, reclamaram, lucidamente, os mesmos direitos e deveres na "res publica", com a sua própria maneira de ser e de actuar, tal qual eram - em caminhada democrática e solidária, lado a lado, com os homens, numa vivência da ideia da "paridade", que teorizaram e quiseram por em prática muito antes da palavra ter feito o seu curso nas Constituições e nas leis, traduzindo uma ideia nossa contemporânea de cidadania e de igualdade de género. As feministas portuguesas partilhavam a utopia igualitária que inspirava os movimentos de luta pela libertação das mulheres um pouco por toda a Europa, na América do norte- mas moldaram-na à sua feição, com a força da esperança numa mutação de regime, imediatamente antes e durante o processo de consolidação da Republica. De facto, entre nós, as questões de género e a questão de regime entrelaçaram-se, num mesmo desígnio de liberdade e progresso, que parecia capaz de resolver a primeira pelo simples facto de resolver a segunda – embora, de facto, esse escol de mulheres, feministas e republicanas estivesse destinado a grandes desilusões. Esta dupla pertença foi, a meu ver, a argamassa, a base da especial cumplicidade que as unia aos revolucionários do sexo oposto, e as levava a situarem, claramente, a problemática da mulher no quadro global das transformações do Estado e da sociedade. Era a refundação do País que idealizavam, sem duvidar de que ela comportaria o fim de todos os privilégios, entre eles, os de sexo, assegurando, em simultâneo, a plena emancipação da metade feminina. Não era uma luta em causa própria, em favor de uma minoria - a elite da cultura ou da fortuna, a que quase todas pertenciam - mas em favor de todas as mulheres, e, mais latamente, da sociedade portuguesa. Viam o momento de explosão revolucionária, como um tempo de grandes oportunidades, para que estavam, porém, como o futuro demonstraria, bem mais preparadas do que os homens seus correlegionários... E sabiam que nada aconteceria sem esforço, sem a comprovação da importância do seu contributo, muito concreto, num combate que só poderia ser ganho pela força da organização colectiva, pelo associativismo, e pela consequente demonstração pública da inteligência, da coragem, e capacidade de decisão e de intervenção cívica de toda uma geração, não apenas de mulheres extraordinárias. Algumas mulheres conseguiram, a título excepcional, resistir ao absoluto anonimato a que estavam destinadas em razão do sexo na História escrita pelos homens - mulheres chefes de Estado, rainhas influentes nos negócios do Reino (nos domínios da diplomacia, da cultura, da saúde, da educação) heroínas de revoltas populares e de guerra, sobretudo nas praças de África, no Oriente... algumas raras escritoras ou artistas imortalizadas pelo talento. O que é raridade não conta: não destruíram estereótipos de inaptidão geral para a coisa pública não influenciaram o estatuto e os direitos da generalidade das mulheres, como a elite de novecentos se preparava para conseguir. A tomada da palavra perante multidões, um pouco por todo o país, com um discurso coerente e convincente de nomes consagrados e de tantas jovens desconhecidas- em comícios, em "fora" de reflexão e debate, em acções de propaganda - foi o grande momento de viragem. Foi assim no campo de acção ou de luta designado por “congressismo”, que fizeram a passagem, súbita, inesperada, do círculo doméstico, onde os costumes as confinavam, para a esfera pública, onde abriram caminhos, que levariam décadas a percorrer - e que são ainda hoje a senda para um trajecto em curso. Outra das singularidades nossas, há que destaca-la, foi o papel dos homens neste processo. Os líderes republicanos apelaram, eles próprios, à participação activa das mulheres, deram-lhe, nessa primeira década de novecentos, um papel a representar no palco das sessões de propaganda. Até aí o movimento nascia mais semelhante ao de outros países europeus - mais tardio, mais discreto, porventura, mas avançando, à margem de solicitações partidárias, com já então notáveis republicanas, como Ana de Castro Osório e Adelaide Cabete, mas também com algumas ilustres monárquicas, como Olga Morais Sarmento Silveira, Branca de Gonta Colaço ou Domitília de Carvalho (que haveria de ser, durante o Estado Novo, uma das primeiras deputadas da Nação). As primeiras tomadas de posição, com pouca visibilidade popular, estão ligadas a organizações pacifistas (como a Liga Portuguesa da Paz, de Alice Pestana, que cria, em 1906, a sua "Secção Feminista" e é responsável pela que se poderá considerar a primeira sessão pública de um grupo feminista, contando com a presença de Teófilo Braga). A data é de salientar, porquanto, pouco antes, no ano de 1902, uma das participantes activas nessas iniciativas, Carolina Michaelis de Vasconcelos, olhando, com a sua mentalidade germânica, e, naturalmente com muita preocupação, o país do sul onde gostava de viver, escrevera o seguinte: "O combate das massas feministas, em vista de melhores condições sociais, está inteiramente por organizar"[...] "O aparecimento de uma mulher na política seria considerado uma monstruosidade". Pois bem: dois anos depois,em 1904, Adelaide Cabete, Maria Veleda e outras fazem-se ouvir no I Congresso do Livre Pensamento. Em 1906, a própria Carolina Michaelis é uma das impulsionadoras da Liga Portuguesa da Paz, norteada para a problemática feminina, e, a partir do ano seguinte acentua-se a convergência entre feminismo e republicanismo e a entrada de muitas mulheres em lojas maçónicas. É de ressaltar a fantástica aceleração do processo de participação feminina, neste período, a revelar as contradições, os anacronismos e a espantosa capacidade de os superar de que, de vez em quando, dá provas a sociedade portuguesa, dotada de uma plasticidade, de uma subtil maleabilidade, que não se adivinha de fora e é preciso saber descobrir, de dentro.. Ainda por cima, em geral, o inesperado protagonismo feminino, essa suposta "monstruosidade" despertava nas massas um enorme entusiasmo e aplauso, pois as afinidades ideológicas logo varreram quaisquer preconceitos. Por parte do povo era reacção espontânea, por parte das lideranças, a utilização das mulheres era parte de uma estratégia política.

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