setembro 08, 2025
LENINHA E XANA sobre a Tia Mariazinha
Maria Madalena Godinho do Amaral Barbosa de Aguiar
Com o seu carismático carácter e férreo temperamento, conseguiu uma proeza épica: Agregar toda a família AGUIAR. Dos mais aos menos jovens todos temos momentos agradáveis para recordar. Ao seu lado era fácil passar do sorriso às gargalhadas; o tempo passava depressa quando nos contava histórias do passado; e o imenso carinho e respeito que nos ensinava a ter por todos os parentes que foram os personagens dessas histórias.
A sua força de viver fazia-nos pensar que afinal a vida é um filme onde nós, os protagonistas, devemos investir toda a força de vontade, para que o fim seja a nosso contento.
Nunca a esqueceremos querida tia Giginha!
Leninha
Maria Alexandra Aguiar da Fonseca
Querida Tia
Q saudades!
Saudades daqueles sábados em que se comia broa de Avintes, com muito vinho verde. Que saudades dos pequenos almoços à 1.00 da tarde, na Latina, em Espinho. Que saudades de ouvir a Tia quando me falava no dia dos meus anos e invariavelmente dizia:"Não te esqueças que quem fez o paro foi o Tio Manuel, mas quem cortou o cordão umbilical fui eu..."
Mas Tia, estou zangada com a Tia, porque dias antes de ter partido falámos ao telefone e a Tia prometeu-me que esperava por mim para o seu 100º aniversário. Eu cumpri, cá estou, mas a Tia foi embora, sem me dizer nada. Contudo, como a Tia nunca se despedia com um "adeus", mas sim com um "até logo", penso que logo nos havemos de rever.
Até logo!
Xana
Se os meu olhos te incomodam
Quando estou na tua frente,
Hei-de arranca-los um dia,
Para te amar cegamente
Se me deixares, eu digo
O contrário a toda a gente.
E neste mundo de enganos
Fala verdade quem mente.
Afirmas que a vida é breve.
Mentira! A vida é comprida.
Cabe nela amor eterno
E ainda sobeja vida...
Há apenas mais um soneto:
Eu amo os olhos tristes de gazela
E o silêncio nostálgico do mar.
A chuva branda, a rir e a cantar
E o meigo cintilar de cada estrela.
Eu amo a luz, tão dolorida e bela
No silêncio da tarde a agonizar
E o vento, sem repouso, que, a chorar,
A sua dor fantástica revela.
Mas, acima de todos os fulgores
Eu amo esses teus olhos sonhadores
- gotas de mel em límpidas opalas!
E ao vento, à chuva, à onda murmurante,
Prefiro o sortlégio perturbante
Da música, sem par, das tuas falas...
E este poema, com um "final feliz":
Rosas murchas, são murchas, são sequinhas
Como as folhas que morrem no outono
E que andam, tristemente, ao abandono,
Correndo pelo céu sem andorinhas
Rosas murchas, imagens denegridas
De tanto sonho e dor, tanta alegria
E aos sentimentais da litania
Lembrando o ardor ditoso de outras vidas
São estes pobres versos que eu te mando.
Nada valem, eu sei, mas quando os leias
Quebra da minha dor as mil cadeias,
Sorri de compaixão, de quando em quando.
A cinza de uma flor é sempre flor
E o seu sorriso, que eu procuro
Em místicos jardins, os do futuro,
Talvez façam florir rosas de amor!
À DESCOBERTA DE RUTH ESCOBAR
Ruth Escobar foi no Brasil, a mais destacada mulher portuguesa da sua geração, nome grande do teatro, da cultura, da política.
Maria Ruth dos Santos nasceu no Porto, em Campanhã, viveu na rua do Bonjardim, foi aluna do Liceu Carolina Michaelis, onde se estreou a representar todos os diabos de Gil Vicente. Tinha 16 anos quando a mãe a levou numa viagem sem retorno para o Brasil.
Nas suas próprias palavras: "quando embarquei para o Brasil, no Serpa Pinto, com a minha mãe, levava também a certeza de um destino, pois soube que tudo o que sucedeu na minha vida, mesmo antes do meu nascimento, estava moldado por uma força universal, cósmica, transcendente".
No Rio, no Colégio Roosevelt, como antes no liceu portuense, o seu talento em palco, conferiu-lhe o título de "rainha" do colégio. Passou nos exames, mas trocou os estudos pelo trabalho, a vender a "Revista das Indústrias". Já ganhava mais do que a progenitora, e logo deu um passo em frente: aos 18 anos, com apoios da comunidade portuguesa, lançou a sua própria revista, "Ala Arriba". Na sua veste de jornalista amadora, apercebeu-se das ameaças à presença portuguesa na Índia e propõs-se defende-la, a nível planetário. Com o patrocínio dos compatriotas de S Paulo, partiu na sua volta ao mundo e ombreou com os melhores correspondentes de imprensa internacional, entrevistando uma longa lista de celebridades, como Foster Dulles, Christian Pinaud, Bulganin, Krushev, o Principe Norodan Sihanouk, o presidente das Filipinas, os primeiros-ministros da Turquia e da Tailândia, e o mítico Nasser - a única a ter esse privilégio, no meio de quinhentos jornalistas presentes no Cairo! No mundo português foi recebida pelos governadores de Macau e da Índia e, na capital, pelo ditador Salazar! Os seus exclusivos eram disputados por revistas como a "Life" e por grandes jornais brasileiros e portugueses. Em Lisboa, foi convidada a integrar a comitiva do Presidente Craveiro Lopes na visita oficial a Moçambique, mas acabou expulsa por ato considerado subversivo - a revelação perante os "media" nacionais e internacionais de um acidente aéreo, que a propaganda do regime queria ocultar. Foi o primeiro de muitos gritos de liberdade, pelos quais nunca hesitou em arriscar tudo.
Aos 20 vinte anos, estreou-se como empresária, produtora teatral e atriz. Construiu um teatro com o seu nome na cidade de São Paulo. Na década de sessenta fundou o Teatro Nacional Popular para levar ao interior da Estado espetáculos de qualidade (Martins Pera, Suassuna) …
Não era menos exuberante a sua vida fora de cena, com quatro filhos em três casamentos (o primeiro, breve, para se autonomizar da mãe, o segundo com o poeta e dramaturgo Escobar, o terceiro com o arquiteto Wladimir Cardoso, que viria a ser o cenógrafo das suas peças de enorme sucesso, como " O cemitério de automóveis" de Arrabal com montagem do argentino Vitor Garcia e encenação sua. Uma dupla que, em 1969, com "O balcão" de Jean Genet, venceu todos os prémios brasileiros.
A partir de 1984, Ruth (na casa dos 30 anos) afronta a ditadura em que o Brasil se afunda. O seu Teatro converte-se em palco de luta pela liberdade, resistindo a ameaças, as pressões, ataques de comandos paramilitares, violência sobre os atores. Na sua autobiografia escreve que perdeu a conta ao número de prisões e interrogatórios, aos quais ia respondendo no seu estilo excessivo e provocatório. De uma das vezes, foi Cacilda Becker, sua mentora e amiga, que interveio junto do prefeito de São Paulo para a libertar: "Prefeito, temos de tirar a Ruth, aquela portuguesa vai pôr fogo no quartel, é um serviço que o Senhor vai prestar às Forças Armadas, tire-a de lá quanto antes". E ele tirou...
Nessa década, trouxe a Portugal alguns dos seus maiores êxitos "Missa leiga", "Cemitério de automóveis". A Censura proíbe o espetáculo em Lisboa, mas autoriza-o em Cascais, porventura vista mais inacessível a camadas populares...
Aí Ruth conhece as três Marias, lê "As novas cartas portuguesas", Simone de Beauvoir, e converte-se ao feminismo! A nova causa abre-lhe outros palcos, os da política. Candidatou-se, ao abrigo do Tratado de Igualdade de Direitos entre Portugueses e Brasileiros (nunca se naturalizou brasileira), e tornou-se a primeira mulher a ser eleita e reeleita Deputada à Assembleia do Estado de São Paulo, a primeira Presidente do "Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres" e a primeira Representante do Brasil nas Nações Unidas para o acompanhamento da Convenção contra a discriminação das Mulheres.
Entretanto casara, uma última vez, e tivera o seu quinto filho.
Em 1974, organizou o primeiro Festival Internacional de Teatro, que levou a São Paulo, o que de melhor se fazia nas grandes capitais do mundo. Iniciativa que repetiu em 1976, vendo-se reconhecida como a grande renovadora da arte dramática brasileira.
Conheci Ruth Escobar, em 1982, na residência do nosso Cônsul, durante um jantar em que fiquei a seu lado. Éramos ambas deputadas, feministas, portuenses, falámos da nossa cidade, do nosso liceu, da nossa juventude, da misoginia da ditadura. Pouco depois reencontrei-a em S Paulo, na companhia de Natália Correia. Imaginem como me diverti entre duas mulheres de génio, iguais no carisma e na graça natural…
Em outro de muitos encontros, tive a sorte de assistir, em pleno São Paulo, à sua última produção, tão audaciosa como as primeiras. Pôs em cena "Os Lusíadas"!
E assim Ruth Escobar deixou uma herança teatral única, enraizada no Gil Vicente da sua juventude e no vanguardismo com que mudou a face do teatro brasileiro.
O seu trajeto artístico, cívico e político foi reconhecido com as mais altas condecorações brasileiras. com a Legião de Honra e a Ordem das Artes e das Letras, de França, onde estudou arte dramática. E até Portugal a distinguiu com a Ordem do Infante D Henrique.
É um nome lendário no Brasil, mas no Porto e em Portugal continua a ser uma desconhecida. Será que a Pátria vai descobrir, um dia. esta emigrante ilustre? Eu ainda não perdi a esperança
A TRAIÇÃO AMERICANA
1 – Assistimos nestes últimos dias ao mais ignóbil ato de traição de que me lembro, desde que acompanho a política internacional. Uma traição americana. A traição de Trump à Ucrânia, sobretudo à Ucrânia e toda a Europa. Esse ato, que ficará entre os mais abjetos da história da humanidade, pôs em causa, de um dia para o outro, à resistência heroica de um povo que lutava há mais de três anos, sempre com fraco e tardio apoio de timoratos aliados, mas com sucesso feito de valentia e de inteligência, contra as forças invasoras do império russo.
Putin invadira a Ucrânia, com o plano militar de conquista em escassos dias. Três anos depois, tinha o seu próprio território ocupado, e continuava os avanços e recuos nos “oblasts” de leste. De repente, entrou em cena o amigo americano e deu-lhe tudo o que queria em poucas horas!
Como?
A mera suspensão de fornecimento de armas, (aliás, ilegal, contra decisões bipartidárias do Congresso, para ele coisa de somenos) não bastava. O exército ucraniano tinha armamento para alguns meses e a Europa preparava-se para o rearmar. No seu mortal “jogo de cartas”, Trump jogou a carta decisiva: o corte dos sistemas de comunicação por satélite, sobre os quais se baseiam, ao minuto, todas as operações militares de ataque e defesa! É assim, a guerra no século XXI!…
Com a Ucrânia no “buraco negro”, por falência dos recursos para a guerra eletrónica, Putin chacina e devasta o inimigo a sei bel-prazer, nas vésperas das cinicamente chamadas “negociações de paz”. Falta saber se Trump não foi ainda mais longe, fornecendo ao amigo Putin dados sobre operações ucranianas, nomeadamente em Kursk. De qualquer modo, manietou Zellensky e deu ao amigo russo “licença para matar”.
Eu tinha de falar sobre o caso, porque não suporto o silêncio que se faz à sua volta, a “normalização” dos crimes que estão a ser cometidos contra um povo cada vez mais indefeso! É arrepiante o silêncio, a passividade da Europa e da própria América democrática no contexto da farsa das “negociações de paz”. Praticamente só me chegou a voz do Senador Mark Kelly, do Arizona, um antigo astronauta, com um currículo feito de missões no espaço. Durante à recente visita à Ucrânia, ao dar-se conta do que ali se passa e por culpa de quem, denunciou veementemente Elon Musk como um “traidor”. É, é um traidor, mas não é o único. O ator principal é Trump.
Ele não é apenas o vulgar criminoso condenado pela justiça americana em muitos processos, desde agressões sexuais, a falências fraudulentas. Um criminoso que escapou aos processos maiores, fazendo-se reeleger presidente (penso na invasão do Capitólio, na tentativa de manipulação de resultados eleitorais). É, também, um político que já ganhou o seu lugar na nave dos loucos dos grandes psicopatas. Como Nero ou como Hitler. Não foi por acaso, que o seu Vive Presidente JD Vance, (quando estava no campo oposto, antes de se juntar aos “maus”) o comparou Hitler. É uma ótima comparação – dois narcisistas, sedentos de poder e capazes do pior. O que revela duas coisas: o jovem Vance lera uns livros, nomeadamente sobre Hitler, e até tinha escrito um, assim mostrando os seus dotes e pretensões intelectuais. Como homem, porém, não presta para nada, porque, para singrar na vida e na política, não hesitou em fazer equipa com quem considerava um Hitler americano!
O ato infamante de Trump, é doravante um aviso sério a todos os aliados (ou antigos aliados) dos EUA: este homem não é confiável! Nunca o será - é um duplo de Putin Durante o seu mandato, a cooperação estratégica com os EUA está irremediavelmente minada, mesmo que dependência europeia não permita ruturas imediatas - fornecer informação secreta a Trump ou a Putin vai, provavelmente, dar ao mesmo… A ligação íntima dos dois vem de muito longe, ainda que seja enigmática, e vai continuar.
E depois de Trump? Depois, não sei se o regime dos oligarcas americanos está para ficar, ou se a América é recuperável para uma vivência decente e democrática. Todavia, penso que não voltará a ser para a Europa o que já foi - figura tutelar, aliada de todas as horas.
2 – Chegámos ao fim de uma era. Ao fim da “pax americana”, que durava desde o termo da II Guerra Mundial, (há 80 longos e remansosos anos). Ao fim da NATO - talvez não oficialmente (só Trump a pode declarar extinta, os outros, por medo, vão fazer de conta que ainda tem alguma serventia, mas não tem, o art.º 5 tornou-se inaplicável e a “intelligence” insegura. Putin e Trump vão instalando o seu cerco à Europa – não somente à Ucrânia, a toda a Europa, ao que se chamava dantes, o mundo livre, o mundo ocidental.
A Europa, do ponto de vista da sua defesa e segurança, acordou, subitamente, de um longo sono de 80 anos! Eu tinha pouco mais de dois anos quando a II Grande Guerra acabou. Sempre vivi no conforto e harmonia da paz atlântica. E o mesmo acontece com os milhões de europeus que são mais jovens do que eu, a esmagadora maioria da população do nosso continente.
Acordámos incrédulos, com uma única certeza; tudo vai mudar! Estamos sozinhos. Contudo, temos meios. Alguns de imediato, outros a prazo. É um caminho sem retorno, quaisquer que sejam as posições das próximas administrações americana. É o caminho da nossa independência, não só económica ou científica, mas militar. Cooperação com aliados, sim, em todos os domínios, mas de igual para igual, sem submissão!
Finalmente, neste histórico ano de 2025, a Europa reagiu depressa e bem (falta saber se é para continuar assim). À falta de um novo Churchill, de um novo De Gaulle (que muito antes teriam lido os sinais de ameaça…) tomaram a liderança o britânico Keir Starmer e o francês Macron. O serem potências nucleares dá-lhes esse estatuto, cabe-lhes substituir o papel dos EUA na missão de dissuasão, onde quer que seja necessário, na Alemanha, na Polónia…
O desafio maior que se segue é escolher um modelo institucional, que possa funcionar de forma inteligente e eficaz. Um modelo que se ajuste, com pragmatismo e rigor, à realidade (para quem gosta de futebol, o equivalente a dizer que o sistema tem de assentar na avaliação das capacidades de cada membro concretamente disponível e não em sistemas de jogo perfeitos, para os quais não há jogadores…). A urgência de alcançar resultados a tanto obriga
No caso europeu é ainda uma oportunidade de conseguir outras mais valias.
A primeira é redesenhar uma fronteira “civilizacional” (por tal se entendendo Estado de Direito, democracia, Direitos Humanos) que, no interior, reaproxima a União Europeia do Reino Unido, da Noruega, do Canadá, da Turquia (?), e, também de países de outros continentes, como o Japão, e a Austrália.
A segunda é excluir, à partida, do núcleo central os países que estão dentro da EU como verdadeiros cavalos de Troia – a Hungria, a Eslováquia e outros Estados pouco ou nada confiáveis.
A terceira será, espero, expurgar de acordos futuros, todas as regras que, no dia a dia, têm mostrado, a sua eficácia de paralisar decisões (antes de mais, a regra da unanimidade).
Ideal seria introduzir na orgânica da nova Aliança (nesta fase transitória, porventura, sem formalização…) flexibilidade, diversidade de estatutos de parceria e cooperação, enquanto se intensifica o investimento nas indústrias de defesa, nos sistemas de comunicação e na ciência.
Nesta fase, os europeus manterão um discurso oficial prudente e a fantasia da cooperação euro-americana… A diplomacia tem de ir por aí, mas, pela minha parte saúdo os que, como o Presidente Marcelo, vão mostrando o desassombro de chamar a Trump o “ex-aliado”.
3 – Terminarei esta breve reflexão, lembrando uma instituição do passado recente, de que não ouvi ninguém falar: A União da Europa Ocidental, instituição pioneira da cooperação intereuropeia no pós guerra, que, após a constituição do Conselho da Europa se concentrou no domínio de Defesa e Segurança da Europa, fundada no Tratado de Bruxelas modificado, (cujo art.º 5º ia além do art. 5º do Tratado de Washington (NATO) no compromisso de defesa mútua!). Ou seja, com capacidade para se tornar no “pilar europeu” da NATO. Insensatamente a EU, (já então pouco homogénea nestas matérias, com um terço de países neutrais) nãos descansou até extinguir o UEO, como, aliás, desejavam os americanos…
A meu ver, é um modelo muito semelhante o que veio propor Keir Starmer, na recente cimeira de Londres, ao definir, magistralmente. a “Europa da Defesa” como “a coalition of the willing”. Esta coligação reúne aqueles que estão prontos a assumir o compromisso de defesa mútua. Tal como há décadas não cabe nas fronteiras da UE – estão lá o Reino Unido, a Noruega, o Canadá, desejavelmente a Turquia. E não estarão os governos putinistas da EU, (os Orbans de hoje e de amanhã). Uma Europa de valores e de boa vontade!
QUESTÕES DE GÉNERO NAS POLÍTICAS DE EMIGRAÇÃO
RESUMO
As primeiras medidas políticas de diferenciação de sexo, no domínio da emigração, vão, como regra geral, no sentido de proibir ou limitar mais fortemente a expatriação das mulheres, mesmo para fins de reunificação familiar. Só após 1974 elas vêm reconhecido o direito de emigrar livremente, e o de conservar a nacionalidade em caso de casamento com um estrangeiro.
A igualdade perante a lei converte-se, porém, em pretexto para desvalorizar ou ignorar as especificidades da sua situação, padronizando-se, neste quadro jurídico e fáctico, a emigração portuguesa no masculino.
A convocação do primeiro encontro mundial de mulheres emigrantes, em 1985, e a realização de novos congressos e encontros, ainda que com periodicidade espaçada, através de parcerias entre o Estado e o movimento associativo (sobretudo o feminino), tem contribuído para uma maior consciência da questão de género, ancorada na audição e na crescente visibilidade dada às cidadãs do estrangeiro. A aplicação da "regra da paridade", em 2007, às eleições para o Conselho das Comunidades Portuguesas constituiu uma primeira medida jurídica concreta de promoção da participação das migrantes na vida coletiva das comunidades.
A aprovação da Resolução nº 32/2010, pela Assembleia da República, na linha de muitas das propostas dos referidos congressos e encontros de mulheres da "Diáspora", é reveladora de uma nova perceção da importância da componente de género nas políticas da emigração.
I -AFLORAMENTOS DA "QUESTÃO DE GÉNERO" NAS POLÍTICAS DE EMIGRAÇÃO
(Medidas discriminatórias, proibitivas ou limitativas)
Tradicionalmente, emigrar era uma "aventura masculina". As Portuguesas viram-se, desde os séculos XVI e XVII, especialmente limitadas no que hoje diríamos o seu direito à emigração ou à reunificação familiar. E se até ao regime nascido no 25 de Abril de 1974 nunca foi verdadeiramente livre, para todos, a saída do país, o certo é que os obstáculos foram sempre maiores para as mulheres.
No período da "expansão", nem para acompanhar os maridos isso lhes era, em princípio, permitido - só a título excecional e por favor régio. Política diametralmente oposta foi, por exemplo, seguida em Castela, que sempre privilegiou a emigração de casais para as colónias da América do Sul. (C R Boxer, 1977:34). No nosso caso, houve, sim, algumas exceções determinadas pela vontade de promover o enraizamento de populações europeias em determinadas regiões do Império. Com essa finalidade, saíram para a África e o Oriente, as chamadas "Órfãs d’El-Rei" - jovens recolhidas em orfanatos, que eram dadas em casamento a soldados e outros potenciais povoadores, mediante um determinado dote, nomeadamente terras de cultivo ou empregos públicos...). Também o povoamento por casais foi promovido, em casos contados, ao longo de diferentes épocas, mas nunca de forma generalizada e sistemática. (C R Boxer, 1977: 78-84)
Mais tarde, no século XIX, em contexto puramente migratório, poderemos apontar um caso particularmente bem documentado de emigração familiar para as antigas Ilhas Sandwich, enquadrada num acordo bilateral entre os reinos de Portugal e do Havai. A partir da Madeira e dos Açores aportaram nessas ilhas do Pacífico, muitas mulheres e homens, que quase sempre levavam consigo uma prole numerosa, e deixavam a terra sem esperança de voltar. (Felix, 1978: 28-30)
Porém, à margem de qualquer incitamento ou facilitação do processo, grande número de mulheres iam juntar-se a maridos e familiares, por sua vontade, contrariando estratégias, leis e determinações das autoridades. Em oitocentos e no início do século seguinte, acentuou-se a tendência para o aumento das que assim reagiam à solidão em que se viam, partindo ao encontro dos homens, em regra, depois de eles estarem integrados na nova sociedade - o que era causa de desmedida preocupação dos especialistas neste domínio, tanto de académicos como de decisores e responsáveis pela execução das políticas de emigração. (1)
São representativas do pensamento da época as opiniões de investigadores, como Afonso Costa e Emygdio da Silva. Para o primeiro, a emigração feminina é mesmo considerada uma "depreciação do fenómeno migratório", o que tem de se compreender na lógica de considerar o emigrante, essencialmente, como fonte de divisas. Nas suas próprias palavras: "[...] é quando a família fica na Pátria que ele envia mais regularmente as suas economias". (Costa, 1913:182). Para o segundo, o êxodo das portuguesas era "uma constatação tremenda". Reportando-se a este fenómeno no início do século XX, entre 1906 e 1913, um período em que se regista um crescimento de 127% das saídas de mulheres, os perigos para que aponta são, antes de mais, a "desnacionalização" e a "cessação de remessas". (Silva, 1917:132).
Não surpreende, assim, que a discriminação entre os sexos fosse evidenciada na própria definição de emigrante: o passageiro homem que viajava na 3ª classe dos navios, e a mulher que seguisse desacompanhada, qualquer que fosse a classe escolhida para o transporte, ficando sujeita a todas as restrições que a qualificação implicava... Essa diferença de tratamento denunciava a clara consciência da "questão de género", a constatação da influência da presença da mulher no curso do projeto migratório, no seu destino final, com maior probabilidade de uma opção pela integração e pelo não retorno – a suscitar a intervenção autoritária, vertida em medidas jurídicas e práticas administrativas. De facto, a emigração familiar reforçava, como ainda hoje indubitavelmente reforça, a tendência para a fixação definitiva no país de acolhimento. E não se perspetivava outro tipo de ganho, que pode ser maior e mais duradouro do que a entrada de divisas para equilibrar as contas com o exterior. Por exemplo, a criação de comunidades, portuguesas pela cultura e pelo afeto, (indissociáveis de uma forte componente feminina), que eram, então, pouco mais do que ignoradas ou depreciadas como meros “guetos” transitórios, onde se enclausurava, por escolha própria, a primeira geração de emigrantes.
Haveria também, já, o assomo de alguma preocupação com a situação de especial vulnerabilidade das mulheres, pelo receio de que sós, em terra estranha, pudessem ser vítimas de exploração no trabalho. O que obviamente não havia, ainda, era a ideia de que as mulheres, tal como os homens, têm direitos - e muito menos a aceitação de que pudessem ter, neste como noutros domínios, direitos absolutamente iguais.
II - DA IGUALDADE NA LEI ÀS DESIGUALDADES DE FACTO
1 - Em 1974, depois da revolução do 25 de Abril, a liberdade de circulação dentro e para fora do território nacional é restabelecida (ou melhor, estabelecida…) e vem a ser consagrada na Constituição de 1976. Esse foi um tempo de tão assertiva afirmação de princípios, que levou a uma natural sobrevalorização do plano puramente jurídico, como se as leis vanguardistas tivessem, de per si, o poder de transformar ditames em factos do quotidiano. Assistimos, por isso, a uma diluição da problemática feminina, perante leis que as não discriminavam, com o que isso representava de positivo, face ao passado, mas também com a faceta negativa de ser "padronizado” no masculino todo e qualquer trajecto migratório - assim se tornando opaco, e permanecendo desconhecido, o que especificamente dizia respeito às mulheres migrantes.
No "país do território" sentiu-se a necessidade de ir abrindo caminho à igualdade efetiva entre os sexos, para além da mera proclamação de princípios, dando às políticas uma base operacional própria em serviços ou departamentos com competências genéricas ou sectoriais (a "Comissão para a Igualdade", cuja designação foi variando, sem verdadeiras ruturas na sua atuação, exemplifica aquela primeira categoria, a Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego - CITE - a segunda). Pelo contrário, no "Portugal da Diáspora" a atitude foi de descaso das autoridades nacionais no respeitante à situação das portuguesas no estrangeiro, às eventuais singularidades da sua integração no mercado de trabalho e na comunidade de destino, não obstante a Constituição, no art.º 9º, e, a partir da revisão de 1997, também no art.º 109º, impor ao Estado a tarefa de promover da igualdade entre os sexos no que respeita á participação cívica e política, sem restringir essa incumbência ao território nacional. Descaso tanto mais criticável quando se receava que as emigrantes fossem, na sociedade de acolhimento, duplamente discriminadas, como mulheres e como estrangeiras - ainda por cima, numa conjuntura em que se acentuava a “feminização” da emigração, devido à crise económica, que viera interromper a chamada de trabalhadores ativos e apenas tolerava movimentos migratórios para efeito de reagrupamento familiar.
A partir da meia década de 70, a percentagem de mulheres nas comunidades do estrangeiro aproximava-se da dos homens. E, apesar das restrições que inicialmente, um pouco por todo o lado, se colocavam à sua atividade profissional, a maioria acabou por aceder, como os homens, ao mercado de trabalho, ainda que não, normalmente, no mesmo tipo de empregos. Em qualquer caso, a possibilidade de profissionalização, logo aproveitada, maciçamente, converteu-se numa autêntica via de emancipação destas mulheres, dando-lhes importância do ponto de vista económico, social e cultural, e, do mesmo passo, independência e igualdade, quando não supremacia dentro da família. Face às mulheres não emigrantes, as que tinham saído do país gozavam, em regra, não só de maior prosperidade económica, como de um estatuto profissional e familiar privilegiado (Leandro, 1995:51). E mesmo em relação aos homens emigrados nem sempre perdiam no confronto. (2)
A tese da "dupla discriminação" perdeu o seu carácter de evidência. Se existe, sob diversas formas, acaba sendo, frequentemente, superada. Conclusão a que se chega quando se perspetiva a vida das emigrantes ao longo de décadas - como realidade complexa e dinâmica - e quando se entra em linha de conta com a sua provável situação em caso de não emigração. (Aguiar, 2008: 1257)) Em boa verdade, o sucesso, no longo prazo, da geração de 60 e 70 (a do "salto" para a Europa...) não é só da metade masculina, mas também da feminina (Leandro, 1998: 22). E às próprias mulheres se fica a dever, não ao sustentáculo moral e material ou a quaisquer formas de ajuda do seu país. (3)
2 - No aspeto legislativo, é de salientar que, na década de 80, subsistia ainda, contra a letra e o espírito da Constituição de 1976, uma capitis diminutio das mulheres portuguesas - na maioria mulheres emigrantes, embora não pelo facto de o serem, mas sim pelo de residirem num lugar geográfico mais propício ao convívio com não nacionais: refiro-me à lei que retirava a nacionalidade portuguesa, automaticamente, às cidadãs que casassem com estrangeiros. A Lei nº 37/81 veio permitir-lhes não só conservarem a nacionalidade, independentemente da do cônjuge, como transmiti-la, em igualdade de condições, à sua descendência e recuperar o estatuto de cidadania portuguesa perdido "ex lege". No entanto, note-se, a reaquisição desse estatuto facilitada e com eficácia retroativa, só viria a ser assegurada pela Lei nº1/2004 de 15 de Janeiro, ou seja, cerca de trinta anos depois da revolução do 25 de Abril... (4)
3 - Olhámos a emigração do passado, mas, tratando-se de um movimento que nunca cessou e reassumiu, sobretudo na última década, uma desmesurada dimensão, convém, igualmente, considera-lo no presente. Embora isso não tenha, ainda, reconhecimento bastante, há, de facto, um recrudescimento das vagas migratórias, no conjunto menos dramáticas, menos visíveis do que as das décadas de 60 e 70, e, também, mais difíceis de quantificar na sua exata extensão, porque se dirigem, em larga medida, a um espaço europeu de liberdade de circulação... As mulheres estão envolvidas no processo por vontade e direito próprio, autonomamente, e, tal como os homens, são cada vez mais qualificadas. Segundo o sociólogo Eduardo Victor Rodrigues "[...] já não correspondem ao paradigma da mulher da aldeia que sai para acompanhar o marido; são bastante escolarizadas e procuram melhores condições de vida". (5. É um êxodo, também no feminino, que escapa ao paradigma tradicional e que é necessário conhecer melhor, e apoiar, como reivindica a Assembleia da República numa Resolução, aprovada no primeiro trimestre deste ano, que irei expor adiante.
Alguns estudos têm sido desenvolvidos nesta área, por cientistas, a título individual, em projetos de centros de investigação, e também em comunicações e debates de congressos, encontros, seminários, como é o caso do que aqui nos reúne. Fala-se em “congressismo”, para englobar este último tipo de iniciativas. É uma palavra que não encontraremos em muitos dicionários, mas que permite classificar, expressivamente, um instrumento, que tem tido influência basilar na elucidação e na procura de respostas para a "questão de género", em Portugal, no nosso século, tal como noutros países e noutros tempos, pelo menos desde que Elizabeth Caddon- Stanton fez história do feminismo nos lendários encontros de Seneca Falls.
Nos anais da luta feminista, como nos da luta pela valorização do papel da Mulher no universo da emigração, o "congressismo", assim entendido, tem podido concertar a vertente académica com a da partilha de experiências vivenciais, visando a ação concreta e a mudança. Em Portugal, no presente, através dele se tem vindo a executar uma parte do programa de governo para as comunidades portuguesas do estrangeiro, em matéria de género. (Aguiar, 2009, 41). Os “Encontros para a Cidadania foram anunciados e efetuados nesse preciso enquadramento, a partir de 2005. (6)
4 - Um parêntesis, para salientar a absoluta necessidade de recorrer ao conhecimento científico a fim de fundamentar novas políticas de emigração. É uma evidência nem sempre vista como tal. Em largos períodos do passado recente, governo e universidades viveram dissociados, com os efeitos que se conhecem, em particular a tardia reação das autoridades perante inesperados reinícios de surtos migratórios e, muitas vezes, casos graves de exploração dos expatriados, dos quais a opinião pública e o governo tomam conhecimento, em simultâneo, pela imprensa... Por isso se regista como positiva a retoma de colaboração, que, previsivelmente, permitirá inspirar e delinear decisões e medidas de pronto e atento acompanhamento de movimentos emergentes. Exemplo de uma relação mais estreita entre estes dois mundos, o académico e o político, é o estabelecimento da parceria entre a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas e um centro de investigação universitário (do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa - ISCTE), para levar a cabo um projeto de análise e caracterização do fenómeno migratório, através do "Observatório da Emigração". (7)
Resta saber em que medida se preocupará o “Observatório” com a problemática de género e tornará mais ou menos dispensável a recomendação, repetidamente feita ao governo, de criar um observatório das migrações femininas. (8)
III - AS PRIMEIRAS INICIATIVAS DE AUDIÇÃO DE MULHERES EMIGRADAS
1 – Como vemos, foi regra geral, até data recente, a indiferença dos Governos por tudo o que respeita às particularidades da integração das emigrantes no sector profissional e no universo associativo - este dirigido e representado - nunca é demais salientá-lo… - quase em exclusivo, por homens, no período que se seguiu à proclamação jurídica da igualdade plena entre os sexos, nomeadamente no Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), desde 1981.
Dos grupos que tradicionalmente viam, pela especificidade das suas situações, supostamente no seu próprio interesse, dificultada a saída do país, mulheres e jovens, só estes últimos têm estado no centro da atenção dos políticos, antes de mais, através da organização de programas de ensino da língua e cultura portuguesas, mas também de ações de intercâmbio, estágios de formação profissional, encontros, debates - do que designamos por "congressismo". Na última reestruturação do CCP – Lei nº 66-A/2007 de 11 de dezembro – o legislador foi mais longe com a instituição de um “Conselho Consultivo da Juventude”, com competência “nas questões relativas à política da juventude para as comunidades portuguesas”, e nas “questões relacionadas com a participação cívica e integração social e económica dos jovens emigrantes e luso-descendentes nos países de acolhimento”. Nada de comparável está previsto para o associativismo feminino... Alguns responsáveis políticos justificarão esta diferença com a opção pela "paridade" de género no CCP, nos termos que, adiante, explicitaremos, em alternativa a esta outra forma de dar representação específica a determinados segmentos ou grupos das comunidades. Julgo, porém, válido contra-argumentar que a verdadeira paridade é um objetivo a prazo incerto, provavelmente a longo prazo, pelo que, no imediato, a metade feminina da emigração ficará longe de ter a metade dos assentos do Conselho.
Por outro lado, a vertente de "género" não tem sequer sido valorada - e deveria sê-lo… - nos critérios de concessão de apoios do Estado às iniciativas de instituições da "Diáspora", parecendo contar pouco o facto de o crescimento da rede de clubes e centros culturais, em que se estruturam as comunidades, se dever, em muito, à participação de famílias inteiras, com as mulheres a assumirem, funções simétricas, no círculo estreito do lar e no círculo alargado na coletividade - neste permanecendo, quase sempre, uma discreta "dona da casa", que se encarrega da arte da culinária, da decoração, da organização dos bastidores da festa e do convívio quotidiano, fatores insubstituíveis de agregação e de desenvolvimento... Um papel vital, mas redutor, de que se vai libertando, para exercer, alternativa ou cumulativamente, quaisquer outros - para já, mais em determinados países do que na generalidade do universo da Diáspora portuguesa.
Estamos num domínio da vida em sociedade em que, segundo a opinião dos que defendem, em absoluto, o princípio da não interferência, o Estado não deve intrometer-se. Todavia, não é disso que se trata – trata-se não de condicionar ilegitimamente a independência das instituições, mas de velar pela aplicação de direitos fundamentais, que nenhuma tradição ou costume, que invoque, pode subverter. Há que incentivar boas práticas dentro de cada associação portuguesa do estrangeiro, apelando à vivência igualitária da cidadania, como, de resto, quer o próprio legislador constitucional. A verdade é que, com recurso aos mais variados pretextos, sucessivos governos, no pós 25 de Abril de 1974, descuraram a prossecução do objetivo da igualdade de acesso a atividades cívicas e políticas, no espaço da emigração.
2 – A vontade de romper este quadro de inércia foi divulgada, logo no início de funções, pelo Secretário de Estado António Braga no 1º Encontro da Cidadania, em novembro de 2005, ao falar do “desígnio”, que presidia a essa reunião de " [...] retomar da questão de género, que tem andado esquecida ao longo dos anos […]", e ao admitir que "Portugal não tem tratado do papel da mulher nas comunidades de acolhimento à luz dos seus direitos de participação cívica, cultural e política". (9). Era, de facto, um "retomar" a questão de género, que havia tido, apenas, um momento breve de afirmação, na meia década de 80. No arranque desta primeira fase está uma recomendação do CCP, que se fica a dever à visão e sensibilidade de uma das raras mulheres que nele tinha voz. O Conselho, criado pelo Decreto-lei nº 373/80 de 12 de setembro, órgão consultivo do governo, era eleito de entre os líderes das associações e formado, como disse, na sua quase totalidade, por homens, à imagem do próprio dirigismo associativo de então. Maria Alice Ribeiro, "mulher-exceção", na qualidade de representante dos media do Canadá no CCP, obteve, em fins de 1984, na reunião regional desse órgão, realizada em Danbury, Connecticut, consenso para a sua proposta de convocação de um congresso mundial de portuguesas emigradas. (10)
A Secretaria de Estado da Emigração aceitou o desafio e o "1º Encontro de Mulheres no Associativismo e no Jornalismo" aconteceu no ano seguinte. Trinta e seis portuguesas dos cinco continentes foram convidadas, através das embaixadas e consulados de Portugal, a apresentar comunicações: jornalistas, professoras, investigadoras, sindicalistas, empresárias, estudantes, dirigentes de coletividades… Mulheres de formação muito diversa, todas elas ativas das suas comunidades - no ensino, na ação social, no teatro, na dança, na música, no desporto... (11). A seleção desse grupo de personalidades convidadas não teve tanto a preocupação de assegurar um equilíbrio regional entre as grandes concentrações de emigrantes, como de refletir a participação das mulheres, tal com à época se verificava, em comunidades com origem, idade e tradições de organização e ação femininas muito diversas. Assim, com uma representação mais em qualidade do que em quantidade, tendo como interlocutores vários membros do governo da República e dos governos regionais dos Açores e da Madeira, e, também, da sociedade civil, se realizou, em junho de 1985, em Viana do Castelo, a reunião matricial.
1985 era o ano de encerramento da "Década" das Nações Unidas dedicada à Mulher, facto que não havia sido determinante na recomendação do CCP, embora a coincidência tenha contribuído, a par do carácter inédito da iniciativa portuguesa, para que o "Encontro" tivesse o alto patrocínio da UNESCO. Não havia, realmente, memória de organização, por parte do governo de um país de diáspora, de um fórum semelhante, apesar de, na altura, alguns, poucos, já disporem de mecanismos para audição geral dos seus expatriados.
A menção do Conselho das Comunidades torna-se incontornável no historial deste congresso, não só por lhe pertencer a autoria da proposta da convocatória, mas também porque o desenrolar dos trabalhos se inspirou nos seus moldes de debate e decisão, contou com parceiros oficiais do mesmo nível e fez apelo ao envolvimento do associativismo e dos media (precisamente como sucedia no próprio "Conselho"). Assim, as "conselheiras", a título informal, puderam dialogar com os mais altos responsáveis pelas políticas para a emigração, transmitir-lhes os seus pontos de vista e, seguidamente, deliberar, entre si, conclusões e recomendações. Nas conclusões gerais, realçaram (como António Braga haveria de fazer, duas décadas depois – sinal da longa paragem do processo então encetado... - " […] a pouca audição que tem sido dada às mulheres portuguesas no estrangeiro". E, naturalmente, no final dos trabalhos quiseram enfatizar " […] o entusiasmo e a expectativa gerada pelo Encontro". (12). Para audição futura, e para a chamada das mulheres à intervenção cívica, propunham a criação de uma associação internacional própria.
Na escolha de temas para debate, no modo de historiar o passado e olhar o presente, e nas recomendações para a mudança de um "estado de coisas", colocaram a tónica em dois grandes objetivos indissociáveis: o de serem consultadas sobre a realidade global das comunidades e o seu futuro, tal como o viam e queriam legitimamente influenciar; o de repensarem o seu próprio papel na família, na vida coletiva, no trabalho profissional e no associativismo, a fim de passarem à execução de projetos de mudança.
Nos anos que se seguiram, a estrutura internacional autónoma para que apontavam não viria a formar-se – por falta assunção da liderança, decerto por causa da dispersão, da distância, das dificuldades de contacto. Mais pragmática e fácil de implementar teria sido a proposta de inclusão da problemática feminina na agenda do CCP, para convocatória de novas reuniões... Em 1987, perante o impasse em que se caíra, a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas enveredou por essa via, no contexto de uma reestruturação do CCP. Previa-se a organização, não na orgânica, mas na órbita do "Conselho" - por simples despacho do presidente do CCP, que era, então, um membro do Governo - de várias "conferências" temáticas, em áreas prioritárias, entre elas, uma "Conferência para a Promoção e Participação de Mulheres Portuguesas do Estrangeiro". (13)
A queda e substituição desse Executivo, no verão de 87, implicaram a marginalização imediata do CCP, enquanto organismo de consulta, e as "conferências" não foram nunca convocadas, tal como os plenários do "Conselho".
2- Cerca de uma década depois, a memória das expectativas geradas em 1985 e a convicção de que seria ainda necessário e possível satisfaze-las, levou um pequeno número de participantes do "Encontro" de Viana, a constituir uma associação que reclamou a herança desse projeto em demorada hibernação: a "Mulher Migrante - Associação de Estudo, Solidariedade e Cooperação".(Gomes, 2007: 99)
A "Mulher Migrante" manifestou, desde logo, uma vontade de cooperação com governo e com ONG’s interessadas na promoção de estudos e de reuniões ou Congressos periódicos, a fim de fazer o ponto da situação das mulheres migrantes e de abrir caminhos para a igualdade. De algum modo, ainda que sem uma base institucional, no seu modo de funcionamento, inspira-se no modelo do CCP originário, que tinha raízes na comunidade (em sentido orgânico) e se inseria numa estratégia de cooperação "Estado -Sociedade Civil". Não será de todo excessivo, ver, não na "Mulher Migrante", em si, mas na "plataforma de diálogo" que, com o governo e instituições ou personalidades das comunidades do estrangeiro foi sendo mantida, essa vocação de se converter numa espécie de "Conselho" no feminino, (assinaladamente no período em que decorreram os "Encontros Para a Cidadania - a Igualdade entre Mulheres e Homens". (14)
IV - OS "ENCONTROS PARA A CIDADANIA", PARADIGMA DE MOBILIZAÇÃO PARA A IGUALDADE ENTRE MULHERES E HOMENS" (2005-2009)
Em 2005, por altura do 20º aniversário do "Encontro" de Viana, a "Mulher Migrante" apresentou ao Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas uma proposta de comemoração dessa efeméride, através da retoma de audições sistemáticas das emigrantes, inseridas numa estratégia de mobilização para a intervenção cívica. Proposta que ele aceitou, patrocinando, de uma forma sistemática, campanhas, com esse escopo, nas maiores comunidades da Diáspora, numa acção conjunta com ONG´s de Portugal e das comunidades, que foram levadas a cabo nos referidos "Encontros", realizados, sucessivamente, na América do Sul, em Buenos Aires (2005), na Europa, em Estocolmo (2006), no Canadá, em Toronto (2006), na África do Sul, em Joanesburgo (2008) e nos EUA, Berkeley (2008).
O Governo fez-se representar em todas essas reuniões, a alto nível político - pelo Secretário de Estado das Comunidades, António Braga, ou pelo Secretário de Estado, que tutelava a "Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género" Jorge Lacão. (15). A Jorge Lacão coube, na "Conferência para a Igualdade", em Toronto, fazer uma ampla explanação doutrinal sobre as novas "políticas de género" para a emigração. Na abertura dessa Conferência, assegurou, com meridiana clareza, que "{…]as tarefas fundamentais do Estado Português" para a promoção da igualdade se não podem limitar à ação junto das portuguesas e dos portugueses residentes no território […]. Segundo ele, a letra da Constituição não deixa margem para dúvidas, ao não excecionar o campo de atuação além-fronteiras, como é, aliás, esclarecido no Programa do XVII Governo Constitucional. O Governo compromete-se a "[…] estimular a participação cívica dos membros das comunidades portuguesas, tendo como princípio orientador a Igualdade de Oportunidades entre todos os portugueses e todas as portuguesas, nomeadamente a Igualdade de Género, independentemente de serem ou não residentes em Portugal”. Mais longe foi ainda ao trazer à luz do dia o papel, sempre tão envolto na sombra do anonimato, das mulheres migrantes, admitindo que as políticas que as chamam a uma linha da frente " [...] configuram uma dinâmica de valorização destas comunidades e de proximidade entre o Estado e as comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo". Proximidade que o governo, certamente, buscava, marcando presença e tomando a palavra naquele "Encontro", com um discurso muito assertivo. Em perfeita consonância com o programa do XVII Governo, que assinalava " […] a importância das políticas da igualdade não só para as próprias mulheres, mas para as comunidades e para o aprofundamento da estratégia de aproximação entre estas e o país". Todavia, para que o seu texto não ficasse letra morta, era imprescindível o esforço de comunicação com as pessoas, para que os destinatários do chamamento soubessem ao que eram solicitados, e tivessem a oportunidade real de aderir a uma bem urdida estratégia... Lacão foi ao cerne da questão, ao lembrar que, aquém dos objetivos programáticos do governo, " [...] as mulheres se encontram sub-representadas nas instâncias de decisão dos movimentos associativos, pelo que os seus pontos de vista e necessidade se arriscam a não ser tidos em conta". E, de seguida, alistou o equilíbrio das componentes feminina e masculina na vida associativa e na das comunidades - ideia chave para a "paridade" - como essencial aos objetivos do próprio programa do governo: “ [...] a participação equilibrada de mulheres e homens no movimento associativo e nos seus órgãos de tomada de decisão, bem como nas suas comunidades, é condição essencial para a defesa dos direitos, bem como para uma tomada de consciência das suas necessidades". (Lacão, 2009:11)
A palavra ganhou, ali, de facto, força num ato de diálogo no interior de uma das maiores comunidades do estrangeiro, com mulheres e homens representativos do movimento associativo, onde estas teses praticamente nunca haviam sido afloradas, nem de uma forma espontânea, nem por parte do governo. Foi bem sublinhado o significado que se atribuía à ação das mulheres, para garantia de preservação das instituições, tanto quanto para alcançar melhores condições de defesa dos direitos e interesses individuais e coletivos.
3 - Neste e nos demais "Encontros " se pretendeu levar a efeito um levantamento o mais abrangente possível do posicionamento e da atuação cívica das portuguesas no mundo, com um propósito de estimular a mudança. Isto é, não apenas de constatar, mas de agir, ou interagir. O Secretário de Estado das Comunidades acentuaria, em Joanesburgo, ao anunciar a preparação de um novo congresso mundial de mulheres emigradas, que "[...] estas iniciativas são um claro sinal da firme disposição do Governo de Lisboa em promover encontros mundiais [...] pela importância que atribui à necessidade de reforçar os laços com Portugal". (Braga, 2009:132)
A partir desse Congresso terão, ou não, continuidade estas formas de audição, regionais ou mundiais, ensaiadas entre 2005 a 2009? E passarão pelo movimento associativo, pela colaboração com as ONG's, como se viu neste quadriénio? Não é de modo algum seguro antecipar que sim. O programa do atual Governo, no ponto referente a Negócios Estrangeiros, Comunidades Portuguesas e Cooperação, ao contrário do que acontecia com o anterior, é omisso no que respeita à problemática da igualdade de género e às iniciativas, havidas ou a haver, na área das "Comunidades" e na relevância genérica de parcerias com as ONG's, neste domínio. (16) Ou será antes pelo CCP, que passará o eixo central das políticas com a componente de género?
Só a resposta a estas perguntas, a obter dentro dos próximos anos, permitirá concluir se estamos, ou não, no limiar de uma estratégia para as comunidades portuguesas do estrangeiro, assente na chamada das mulheres à participação cívica igualitária.
V - MEDIDAS JURÌDICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE NO SÈCULO XXI
1 – A norma que determina a aplicação do princípio da paridade, imposto nas eleições legislativa e autárquicas, à eleição do CCP (o nº 4 do art.º 11º e a alínea a) do nº1 do art.º 37º da Lei nº 66-A/207) é, no plano jurídico-político, uma medida excecional de promoção da igualdade de género na história da emigração portuguesa, dando cumprimento da letra e do espírito da Constituição da República. O anúncio da sua (então) próxima entrada em vigor foi feito na Conferência de Toronto por Jorge Lacão, como prova da vontade do governo de garantir a audição efetiva das mulheres num órgão onde sempre haviam sido uma pequeníssima minoria, e, na prática, sem acesso à sua instância de cúpula, o "Conselho Permanente". As listas para o CCP viriam, de facto, no ano de 2008, a assegurar, em observância da lei, a inclusão de um terço de mulheres. E como os atos eleitorais para a Assembleia da República e para as autarquias ocorreram no ano seguinte, acabou por constituir como que um "ensaio geral" do sistema de quotas - bem-sucedido, pois redundou no aumento, que era previsível, do número e percentagem de conselheiras e, também, na sua ascensão ao Conselho Permanente. A presença feminina, globalmente, no CCP, nas diversas Comissões e na instância de coordenação, é quantificável, com todo o rigor (sabendo-se que está ainda longe de uma verdadeira igualdade), mas a importância real que terá no maior equilíbrio de participação de ambos os sexos na vida das comunidades do estrangeiro vai depender, diretamente, do uso que as eleitas farão da sua capacidade de influenciar os processos de funcionamento e de decisão do "Conselho", e, indiretamente, do papel que venha a ser o desta instituição - que tem tido, como afirmei, um percurso acidentado e irregular, enquanto fórum de consulta do Governo e de representação dos emigrantes.
2 - Posterior à legislação que impõe a recomposição mais igualitária do CCP, bem como ao termo dos "Encontros para a cidadania", é uma tomada de posição da Assembleia da República sobre a "problemática da mulher emigrante", em forma de resolução - a Resolução nº 32/2010, de 19 de Março - que visa o mesmos resultados das referidas estratégias e ações governamentais. Muito embora não lhes faça qualquer alusão, parece querer dar-lhes seguimento, no futuro imediato, ao definir um conjunto de medidas “destinadas ao desenvolvimento da cidadania das mulheres portuguesas do estrangeiro" e ao prever a utilização de instrumentos e metodologias idênticas, apontando para a efetivação de "seminários, campanhas de sensibilização, ações formativas e informativas junto das comunidades, incentivos a estudos e investigações... Na Resolução nº 31/2010, aprovada na mesma data, os parlamentares recomendam ao Governo que " […] proceda ao estudo quantitativo e qualitativo da nova diáspora portuguesa do mundo.” E fazem sua uma ideia chave do Programa do XVII Governo : preparar as medidas da sua política externa, em concertação com outros ministérios, "[…]no sentido de revelar uma mudança de paradigma face a esta nova diáspora portuguesa, colocando-a no centro das suas ações, fazendo dela uma verdadeira linha avançada da nossa diplomacia um pouco por todo o mundo”.
Por seu lado, a Resolução destina-se a contribuir para “ o desenvolvimento da cidadania das mulheres portuguesas residentes no estrangeiro “, visando: “Promover a igualdade efetiva entre homens e mulheres no universo das comunidades portuguesas no Mundo; Combater situações de violência de género; Desenvolver modalidades de inserção profissional das mulheres portuguesas no estrangeiro”. (Ponto 2, alíneas a), b) e c). Objetivos, todos eles, traçados no programa do atual governo, no capítulo respeitante às políticas sociais de igualdade de género, porém, sem qualquer referência expressa ao caso das mulheres expatriadas, pelo que não será desapropriado concluir que a "Resolução" procura transpor o conteúdo das medidas ali delineadas, em termos gerais, para a situação particular das emigrantes. A Resolução não é, evidentemente, muito inovadora, pelo que recomenda. É-o pelo facto de ser a primeira vez que os Deputados chamam a atenção para os deveres do Estado na consecução da igualdade de mulheres e homens, para além das fronteiras territoriais, como manda o art.º 109º da Constituição.
Se a resposta do Executivo for o relançamento, de uma forma constante e consistente, do trajeto de diálogo e cooperação já empreendido - sem que tenha ainda atingido a generalização e eficácia plenas, a exigir esforço incessante, sem fim à vista - estaremos no limiar de efetivação de políticas de emigração, com a componente de género.
NOTAS
(1) O Estado, de um modo geral, privilegiou, de jure e de facto, a emigração de homens sós, assim como a miscigenação consentida ou encorajada nas colónias, a fim de reter no Reino as mulheres... E terá sido à atitude de desafio destas “viúvas” de maridos vivos, que decidiram partir ao encontro dos ausentes, que se ficou, fundamentalmente, a dever a matriz cultural portuguesa dessas colónias de povoamento. Segundo CR Boxer, a Coroa Portuguesa terá sido, geralmente, mais permissiva no que respeita â saída de mulheres para o Brasil, do que para África ou o Oriente.
(2) Maria Engrácia Leandro foi uma das primeiras investigadoras a evidenciar formas desta insuspeitada realidade, tendo centrando os seus estudos nas comunidades portuguesas da região parisiense.
(3) É certo que algumas medidas pontuais se podem destacar. Um exemplo: aquando da adesão de Portugal à CEE, no âmbito das comparticipações comunitárias, a SECP organizou diversas ações no domínio da formação profissional destinadas a mulheres - o que constituiu uma diligência pioneira, ainda que desenvolvida num universo limitado, e, por isso, sem decisivo impacte na vida da generalidade das portuguesas.
(4) A Lei nº37/81 de 3 de Outubro foi, a meu ver, descaracterizada, pela via da regulamentação, que admitia, inclusive, a oposição do Estado em processo de reaquisição da nacionalidade pela mulher casada com estrangeiro. A Lei Orgânica nº1/2004 de 15 de janeiro, no art.ºº. 30º veio permitir a recuperação da nacionalidade, por mera declaração. Na parte final do nº2º do mesmo artigo estipula-se que a reaquisição "[…] produz efeitos desde a data do casamento".
(5) Afirmações do sociólogo Eduardo Victor Rodrigues, proferidas no encerramento do Encontro “Cidadãs da Diáspora”, em Espinho, tiveram eco nos media das comunidades, nomeadamente no Canadá. Citamos um artigo de 9 de março de 2009 do jornal "Voice", intitulado justamente "Mudanças nos Hábitos dos Emigrantes Portugueses".
(6) No primeiro comunicado de imprensa sobre os "Encontros para a Cidadania" dizia-se, expressamente, que um dos seus objetivos era "o cumprimento do programa do XVII Governo (capítulo V, ponto 7) ".
(7) Não é nova a preocupação de estimar e analisar, de forma sistemática, os movimentos migratórios nacionais. Portugal participou, ativamente, desde os tempos do "Secretariado Nacional da Emigração", no Serviço de Observação Permanente das Migrações - SOPEMI - da OCDE – colaboração a que, na década de 80, era ainda dada uma grande importância.
(8) Nos "Encontros Para A Cidadania", sobretudo nos de Buenos Aires e de Estocolmo, foi insistentemente avançada essa recomendação. Tendo sido, em data posterior, criado o Observatório da Emigração, para evitar dispersão de esforços, o mais razoável parece ser agora uma insistência para que nele se venha a incluir o estudo das particularidades das migrações femininas. Objetivo necessário para desocultar de disparidades e injustiças, se poderá desencadear a alteração de mentalidades e atitudes.
(9) Declarações de António Braga em entrevista transcrita na publicação sobre o "Congresso online", promovido em 2009 pela “Mulher Migrante”. Um quarto de século antes, eu própria, encerrei o Encontro de Viana com um discurso semelhante, notando, no que às mulheres respeita, "[...] ausência de participação, de voz, de reconhecimento, de poder, ao menos de poder formal, nas instituições [...]" Posições concordantes, separadas por um longo hiato de duas décadas de inação política, neste campo ...
(10) A génese dos Encontros para a Igualdade, vem sumariada, num artigo com esse título, na edição sobre "O Congresso online".
(11) "Jornalismo" considerado no seu sentido mais amplo, incluindo profissionais, correspondentes de meios de comunicação de âmbito europeu, (“BBC”, “Radio France Internacional”, quotidianos parisienses), ou americano (“CBS”), a par de produtoras ou diretoras e colaboradoras de programas "étnicos".
As trinta e seis participantes - das quais 14 jornalistas - procediam de dez países, dos cinco continentes, com predominância das do norte da América, Canadá e EUA, sobretudo, da Califórnia, onde o associativismo feminino tem uma existência quase centenária.
(12) Nas conclusões, in fine as participantes quiseram marcar esse carácter pioneiro, ao destacarem o seguinte: " […] Não se tem conhecimento que algum país de emigração tenha alguma vez organizado um Encontro deste tipo. As mulheres portuguesas no estrangeiro tiveram voz, usaram-na e partiram animadas por uma nova vontade de fazer. Em Portugal ficou o eco do que disseram". Na verdade, nem governo nem as convidadas para o "Encontro" tinham modelo estrangeiro, no qual buscar inspiração - salvo em iniciativas padronizadas no homem migrante...
(13) Uma breve referência às conferências é feita na publicação "Mulher Migrante - O Congresso on line" (p.8).
(14) A "Associação Mulher Migrante", converteu-se, desde a meia década de 90, num parceiro preferencial de vários departamentos governamentais, nomeadamente da "comissão para igualdade", a da SECP,
(15) Na organização dos “Encontros”, a par da "Mulher Migrante" estiveram a Fundação Pro Dignitate, através da Doutora Maria Barroso, Presidente de Honra dos "Encontros", a Universidade Aberta, o "CEMRI", a "Rede Jovem para a Igualdade" e, em cada comunidade, uma ou várias ONG's responsáveis pela implementação do projecto: na América do Sul, a Associação Mulher Migrante Portuguesa da Argentina; na Europa, a federação "PIKO", com sede na Suécia: no Canadá, a "Working Women" e outras, com particular envolvimento da Cônsul Geral de Portugal; na África, a "Liga da Mulher Portuguesa"; nos EUA, o departamento de português da Universidade de Berkeley.
(16) A omissão contrasta com a relevância que é dada a parcerias com as ONG's em sede de cooperação, no ponto referente ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. (Programa do XXVIII Governo, p. 127).
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BIENAL DE GAIA
A criação artística, como expressão cultural da cidadania tem, assumidamente, o seu lugar no mundo da 3º Bienal Internacional de Arte de Gaia. Com esta exposição temática, "Mulheres e Cidadania", e o colóquio sobre o mesmo tema, procuramos, em diálogo, mundividências de migrantes, de estrangeiras, ou seja, diferentes olhares de mulheres de outros países e culturas sobre si mesmas, as suas sociedades, a particularidade das suas vivências, enquanto parte emergente da Humanidade, após um silenciamento milenar, do qual tão poucas lograram libertar-se.
As Mulheres chegaram, na nossa época, a este como a outros domínios, para ocupar o vazio da sua própria ausência, ou relativa ausência, num universo dominado por padrões masculinos. Desde sempre artífices de múltiplas formas de produção artística - artesãs, cultoras anónimas do esteticamente belo na esfera privada, das máscaras primitivas aos trajes, à decoração ou à pintura - só com a entrada na esfera pública, começaram a ser reconhecidas. Porém, com que dificuldade, com que suplemento de esforço, de audácia e de talento, conseguem fazer caminho? E de que modo essa vontade de transcendência, a par de outras especificidades, se reflete no trabalho artístico? Pode ele constituir-se, não só em instrumento de construção do "eu", de auto-afirmação, mas, também, de reconstrução social? Será um meio, por excelência, de representação do feminino e da intervenção cívica? E há, verdadeiramente, uma "Arte no feminino" - um modo diferente de estar no terreno das Artes e das Letras, da Música, tal como do Desporto, ou da Ciência? Ou nada é de resposta fácil e evidente no processo que se desenha entre a natureza invariável do sexo e as condicionantes essencialmente mutáveis de género?
Visível e incontornável é, ainda, a discriminação, que marginaliza, em todos os campos, o "feminino". Certa é a importância da sua inclusão progressiva no "Todo", significando duplicação de contributos, de criatividade, de génio, uma dinâmica nova, em absoluto, um "avanço civilizacional", como dizia Emmeline Pankhurst.Se a Arte quer ascender a uma dimensão universal não pode prescindir da presença e da interlocução entre géneros, bem como entre povos e suas variadas e fascinantes heranças culturais, que o fenómeno histórico de infindáveis migrações serviu para pôr em contacto e progresso.
Uma mostra simbólica de obras de mulheres migrantes ou estrangeiras (e estrangeiras foram, tradicionalmente, todas no seu próprio País, que lhes negava direitos e pública aceitação...) pretende, antes de mais, no espaço e no tempo da Bienal, dar livre curso ao questionamento do presente e às possíveis reconfigurações do futuro.
1920 - NA MARGEM NORTE DO DOURO, EM GONDOMAR
Maria Antónia, que viria a ser a Musa do Poeta e a sua Mulher por mais de meio século, nasceu em Gondomar, a 28 de agosto de 1920, pouco depois de ele ter festejado os seus dois anos no lugar do Paço, em Avintes, do outro lado do rio.
A Vila Maria. (a casa grande que fez parte da sua vida, com estatuto de afetos e pertença, como se fosse um membro da família), estava ainda em construção. Era coisa imponente, cuja evolução a vila acompanhava de perto. Os mais afoitos entravam e vinham contar o que viam, causando especial espanto a enorme sala de banho do último andar ocupava a parte de trás da casa a norte, sul e poente..com sete janelas panorâmicas em todas as direções-.
Os pais, Maria e António Aguiar, preparavam o regresso do Brasil. António, com quase 30 anos de estrangeiro, Maria com uma década, pontuada por constantes viagens a Portugal. Na última travessia transoceânica, estava grávida. Nesse estado tinha vindo três vezes a São Cosme, para que os filhos fossem gondomarenses de naturalidade. A menina que, invisível, trazia consigo na primeira classe de um paquete de luxo. O marido era extremamente seletivo, não arriscava cruza o Atlântico em qualquer navio, escolhia sempre os melhores, mesmo que, para isso, tivesse de adiar a partida. Maria Antónia, nunca teria oportunidade de fazer o percurso de retorno, mas considerava-se tão brasileira, como os três irmãos dados à luz na radiosa cidade do Rio de Janeiro, no centro, na Rua 7 de Setembro, onde nasceu Carolina, a primeira filha, depois em Santa Teresa. O pai manteria o vai-vem solitário, por mais algum tempo, a fechar os negócios, onde se tinha feito um homem rico, ou, como se dizia, em fins do século XX, durante o "cavaquismo", um empresário de sucesso", com joalharia na Rua do Ouvidor. e, nessa década de 20, com o projeto de integrar uma sociedade bancária, que a morte prematura iria inviabilizar. Fez a derradeira travessia no paquete Lipari, da companhia "Chargeurs Réunis",.em 17 de fevereiro de 1926.
De Gondomar partira aos 16 anos, Era dos mais novos de 15 irmãos e aceitou o conselho do irmão João Pereira de Aguiar, um dos mais velhos, já solidamente estabelecido no Rio. Anos depois, casaria com uma brasileira de "boas famílias", a lindíssima, Judith, que, a partir de 1910, seria a melhor amiga da cunhada Maria. Quem se une com brasileira, como João, não volta mais. Tendo procurado noiva portuguesa, António para Gondomar voltou, já na casa dos quarenta, preparado para recomeçar, tranquilamente, um percurso empresarial, investindo em Portugal.
Embora descrevesse o Rio como um paraíso e os anos aí passados como os mais felizes da sua vida, Maria Aguiar sentia saudades dos pais e amigos. O exotismo tropical era interessante para experimentar intensa, mas brevemente. Incomodava-o calor excessivo, durante dois a três meses no verão austral mudava-se para Teresópolis, com os meninos, a gozar a frescura serrana, e o marido deambulava, para lá e para cá, sempre que os compromissos de negócios o chamavam. Arrendava casa, na montanha, como na cidade, não investia em aquisições. Comprar propriedades é, para um português emigrado, regra geral, sinal que aponta à integração. Dos dois irmãos, só João mandou construir um belo palacete na Rua de Payssandú, A fotografia da elegante mansão foi por ele enviada à família, exatamente como muitas outras vezes lhes oferecia as suas próprias fotos. Os filhos continuaram no mundo dos negócios, ou enveredaram pela política e pela diplomacia. Eles, e toda a descendência direta, são brasileiros, depois da morte da geração mais velha, sem ligação com as origens lusas - excetuando na década de cinquenta, o curto período em que José Augusto, o quarto filho de António e Maria, e um dos naturais do Rio, aí viveu, antes de reemigrar, com passaporte brasileiro, para Nova York. Retomou, então, por poucos anos. uma relação familiar com elegantes e simpáticas primas, hoje provavelmente já desaparecidas.
O casarão de António seria em Gondomar. A sua intenção era comprar um solar do século XVI e a quinta, onde há umas décadas se instalou o colégio dos Frades Franciscanos. A Mulher não quis. Para ela, a quinta era isolada e sombria. O seu sonho era uma vivenda ampla e moderna, no coração da vila, perto de todos e de tudo. E foi feita a sua vontade, não obstante ser de mais difícil concretização. O centro de São Cosme, atravessado por uma estrada principal, do Souto a Quintã, era ainda uma vila de caminhos estreitos, pinhais e campos a perder de vista, desde o Monte Crasto. e de grandes casas de lavoura de pedra e cal, com amplos pátios, exemplos de uma arquitetura tradicional, sólida e harmoniosa. Os campos não estavam à venda. Pertenciam a lavradores abastados, com orgulho em proclamar que "não vendiam terras, compravam". Acabaram por vender ao amigo António, a preço alto e por especial favor, o espaço onde se implantou a única imponente mansão de "brasileiro" de São Cosme, com os seus jardins circundantes e, atrás, uma quinta agrícola, que, embora o fosse, nunca deu por esse nome. Ao gosto da época, chamou-se ao conjunto, simplesmente, "Villa Maria". Situada na rua principal, a dois passos do Souto, preenchia os requisitos postos por uma jovem mãe de família grande e que crescia. A última filha, Maria Madalena, já nasceria aí, em 1926, apenas 3 mese antes da morte do pai. No ano de 1920, era ainda o sogro, o tabelião Joaquim Mendes Barboza, quem, por procuração, ultimava os contratos de aquisição da propriedade, que incorporava várias parcelas, desenhadas em longas linhas retas, como as recentes fronteiras de África.
2 - GONDOMAR, TERRA BENDITA
Maria Antónia viveu os primeiros dias de vida na casa dos Avós, Joaquim, que o roteiro profissional trouxera de Paredes, e da Avó Carolina, gondomarense de várias gerações - como ela mesma teria sempre orgulho em se afirmar Do lado materno, como do paterno, as suas raízes profundas eram dali, daquele lugar, cuja beleza os seus antepassado tinham celebrado, em prosa e verso. Seu tio José Barbosa Ramos, era o Autor da letra do hino de Gondomar, com música composta por José Moura ( que viria a ser o seu primeiro professor de piano).
"Gondomar, terra bendita
Rincão formoso e fecundo
O nosso Crasto frondoso
Não tem, não, rival no mundo.
Filigranas delicadas,
Verdes prados cinge a serra.
Cantam fontes e avezinhas
Eis os dons
Da nossa terra.
Gondomar é o nosso berço
Beija-o a brisa fagueira
Cantemos por Gondomar,
É divisa da bandeira
Cantar, cantar,
A linda terra de Gondomar".
Na geração seguinte, seu irmão Manuel glosou o tema, num convívio de amigos dos seus verdes anos, em pleno Monte Crasto. Um jornalista registou-o nas páginas do "Correio de Gondomar" de 17-3-34 (e a Maria Antónia guardou o recorte nas suas gavetas, onde foi encontrado já depois de ter partido).
"E o Castro
Belo e frondoso
Erguendo-se majestoso
Na terra que nos foi mãe,
No sino da igreja além,
Trindades oiço tocar
Como é linda a minha terra
Como é linda a verde serra
Como é lindo Gondomar!"
Os poemas têm assinatura, mas retratam o estado de alma de uma família inteira, a olhar quotidianamente, com orgulho incontido, as belezas naturais de São Cosme. O chamado progresso do cimento e do betão vedou aos vindouros essa comunhão com a gentileza de um meio ambiente, hoje definitivamente perdida (nem mesmo o Monte Crasto, último bastião, que resiste, é tão frondoso quanto era nessa idade de ouro.. ). Perdeu-se também, na populosa "cidade-dormitório do Porto", a dimensão de uma comunidade autêntica e convivial, quando os dias corriam devagar e todos fruíam dos recantos rurais, todos se conheciam, nos clubes e tertúlias, na partilha de tradições, de um pesado sotaque nortenho e uma fala com as singularidades, em que o "povo-povo" facilmente superava as elites letradas. Nos apontamentos de Maria Antónia, excelente aluna a Geografia e História, desde sempre muito dada a recolhas cripto etnográficas, vocação em que não parece ter tido precedentes no círculo próximo, nem mestres no colégio (coisa inteiramente sua), anota lugares, que faziam os seus encantos (o Barroco, a represa de Cascaneira, entre a Gândra e Ramalde, Bouça Cova, Azenha, Ermentão, Rio Carreiro, Fontela, Ponte Real, São Miguel, Pevidal, Santo André...), e, também, expressões populares, nomes e alcunhas, que lhe despertavam a curiosidade, como Pojeiras, Restivos, Cabaças, Jeque-Jeque, Tarré, Fome Negra, Caga Troços, Carriças, Pilha Galinhas, Patacas, Pirabeca, Arregalados, Folhetas, Estabões, Bagulho, Parraxila, Chasco, Varetas, Melros, Pisco, Choco, Pimpão, Pinguinhas, Pombalinos, Toca- certo... Menos invulgar o nome de Isidro Izidoro, que, todavia, fez sensação, quando deixou dito que, nas exéquias, queria levar um cravo vermelho na lapela. Maria Antónia, criança pequena, conseguiu que a levassem a vê-lo, talvez uma benigna criada, deixando a mãe da menina na ignorância da escapadela.
A família materno, tal como a paterno se encontravam afortunadamente livres de qualquer alcunha, fosse ela trocista ou amável, embora as antepassadas da bisavó Carolina, que pareciam algumas das formidáveis figuras femininas do universo ficcional de Agustina, ficassem conhecidas como "as Alexandras". Nome bonito, adotado, aliás, também no masculino, ainda hoje. em sextas ou sétimas gerações dos seus descendentes, que, contudo, não aparece nas pesquisas genealógicas do século XIX. Há, sim, entre tias e primas, alguns outros de ressonância greco-latina, como Lavínia, Leocádia, Violante, Blandina ou germânica, como Guiomar...
No dicionário de palavras esquisitas, em voga nas camadas populares, apontou, dando sempre o sinónimo, palavras ou expressões como: vasculho (malandro), paspalhão (desajeitado), dar uma topada (tropeçar), encatrapiada (aleijada), pimpineira (aldrabice), pixote (pequenino). "embaçado" (envergonhado). ou ditos antigos, por exemplo: "estás a olhar para ontem, que já lá vai", ou "estás a ver navios" (distração): "Deus nos dê muito e nos abone com pouco": "estreminguei um pé" (torci) "vim da outra banda" (do outro lado) "estou triste como a noite"...
Tudo o que era, ou. pelo menos, considerava ser, particularidade da terra e das gentes de Gondomar lhe parecia dar a certeza de estar onde e com quem mais queria. Ligavam-na à longa herança de ancestrais, que certezas semelhantes tinham enraízado ali, mesmo quando, como aconteceu com seu pai, se aventuravam, por muitos anos para além das fronteiras do concelho, do país, ou do mar... Sempre sem perder a vontade de voltar à melhor de todas as vilas e cidades erguidas no planeta - a vila de Gondomar, dos Mendes Barboza, dos Ferreira Ramos e dos Pereira de Aguiar...
3 - OS MENDES BARBOZA E OS FERREIRA RAMOS
O único forasteiro foi esse avô de porte aristocrático, JOAQUIM MENDES BARBOZA, vindo de um norte não muito longínquo, natural de Santa Maria Madalena de Paredes, filho de António Mendes e de Joaquina Roza Coelho Barboza, Estudara no seminário, que depressa trocaria pelo ensino das Leis. Veio a ser o primeiro tabelião de Gondomar. A secretária onde trabalhava ainda ali existe, na casa de uma bisneta chamada Maria Madalena.
Em 2 de maio de 1870, aos 30 anos, casou na capela de Nossa Senhora Mãe dos Homens, em São Cosme, com CAROLINA FERREIRA RAMOS. A noiva. de 26 anos teve por madrinha a irmã Joanna, outra das lindas e voluntariosas filhas de Anna Pereira (cujos pais, José Pereira e Thereza d' Almeida, eram ambos oriundos de São Cosme) e de Joaquim Ferreira Ramos, (filho de Francisco Ferreira Ramos e de Catharina Alves, de Valbom). De Francisco e de Catharina, não se sabe coisa alguma. Do filho, JOAQUIM FERREIRA RAMOS supõe-se ter sido um abastado comerciante, ou não teria podido comprar, aquando da mudança de Valbom para São Cosme, a quinta da Bela Vista e a sua casa apalaçada. De ANNA PEREIRA há uma única fotografia, num traje de lavradeira rica, de chapéu preto e lenço de seda, ignorando- se o foi, de verdade - podia estar fantasiada para o entrudo, então muito festejado. O pormenor de estar de livro aberto na mão, apontará, porém, para a primeira hipótese, assim como a lenda das "Alexandras", ligada a heranças e ambição de terras, e a uma avó que queria vizinho rico para a filha, quase sequestrada em casa para não casar com rapaz mais pobre do que ela, até ao dia em que, ajudada pelos criados e pelo pároco, escapou de manhã cedo para a Igreja, e casou, apressadamente, com a benção de Deus, mas não com a da mãe. Esta suspeitando do que se passava ( a filha levara-lhe à cama, ela própria, bandeja do pequeno almoço, mas não fora ouvida nem vista depois de não ter vindo recolher a bandeja), também correu para o templo, mas chegou tarde demais e, em incontrolada fúria, restou-lhe apedrejar o cortejo nupcial, já de saída, a atravessar o adro...
De Joaquim, seu marido, também há um só retrato, em idade já avançada. Nele vemos um senhor distinto, de olhos claros, e uma extraordinária parecença com o que terá sido o mais bonito e brilhante dos seus bisnetos, Manuel Joaquim, legatório de uns cristalinos olhos azuis e do seu nome próprio, que era, também o do avô minhoto, o eterno enamorado de Carolina. Este não teria, segundo o registo chegado até nós, de início, sido muito bem recebido na Quinta da Bela Vista - nada de apedrejamentos, é certo, no mais brando meio de uma burguesia comercial. Educação, boas maneiras e ascendência ainda não contavam tanto, todavia, como haveres materiais, em que o jovem notário, era parco... Belo rapaz, letrado, amável, romântico, encantou Carolina, que não desistiu da sua escolha, na melhor tradição das "Alexandras". Rapidamente, porém, o adorariam, só faltando pô-lo altar, eles e toda a sociedade gondomarense. Tanto as memórias das filhas, como a monografia do Concelho de Gondomar, escrita pelo seu amigo Camilo de Oliveira, o apresentam do mesmo modo, que se pode sintetizar numa palavra: um senhor exemplar! O cidadão, o profissional, o homem de família. Foi longo e feliz o casamento com Carolina, elegante jovem e, depois de oito vezes grávida ( a última das quais já quase na casa dos 50 para dar à luz Maria da Conceição) imponente matriarca e, em caráter e temperamento, comedida das temíveis antepassadas. Há um pequeno episódio (e são poucos e fragmentados os diálogos concretos que a narrativa oral trouxe até nós), pequeno mas revelador de uma permanente vontade e facilidade de concórdia na vida do casal: num tempo em que os apelidos dados aos recém nascidos eram de livre escolha de quem os registava, os quatro primeiros rapazes nascidos daquela união perfeita receberam apenas os do pai (Mendes Barboza). Só quando estava à espera do quinto, Carolina se deu conta disso e comentou: "Os meus filhos não têm o meu nome!". Não ocorrera ao marido, que sempre a tratava carinhosamente por "mamã", ter isso especial relevância para ela.. Daí em diante, não só reparou a omissão, como tratou de colocar o apelido da mulher no último lugar - no nosso sistema português, o comummente dominante. Os quatro filhos mais novos são, portanto, Barboza Ramos...
Homem realizado na vila onde se converteu em figura central, discreto e confiável, dando de si, nas muitas fotografias em que perdura, a imagem da pessoa serena e gentil, que sempre foi, para os mais poderosos como para os mais pobres e mais fracos. "Um santo!", nas palavras da filha Rozaura (Barboza Ramos). O seu nome, que se distingue pela raridade, foi escolhido por ele. Quando a menina nasceu. acabava de ler um romance de amor entre uma heroína assim chamada e um ilustre fidalgo, com o longo título de "Retiro de Cuidados e Vida de Carlos, e Rozaura". 352 densas páginas de uma elaborada escrita antiga, dificultando ás novas gerações a sua leitura. Começa auspiciosamente numa madrugada ( "Rompia a aurora..." , continua na infindável narrativa de guerras, conflitos e mil e um obstáculos à união dos jovens, só alcançada no final feliz, com a etnográfica descrição do cortejo nupcial em direção à Igreja: "levando a Marqueza Rozaura da mão e Dom Manrique a Carlos ao lado direitto e assistiao ao seu recebimento e quando voltaram por quantas ruas passarao choviam infinitas flores das janelas, com repetidos vivas. Cedo com sua espoza Rozaura para Rezzo virao. Laus Deo".
Rozaura Barboza Ramos não teria tão vistoso casamento, nem iria para Rezzo, ficar-se- ia por Gondomar, também feliz, com um viúvo chamado Manuel Marques, tendo recebido o pesado livro de capas de couro como presente, que legaria a sua afilhada Maria Antónia, diligente guardadora de quaisquer preciosidades de valor afetivo..
Joaquim Mendes Barboza, o cultor de histórias de cavalaria, monárquico regenerador e dedicado homem de família, com as origens (Bitarães. Penafiel, Paredes), parece ele ter mantido escassos contactos. É provável que os pais tivessem já falecido, em 1970. Certo é que deles não há presença em crónicas de família, com a exceção de um sobrinho, que era Visconde de Paredes (ou um dos filhos do Visconde) e namorou a filha mais nova, Maria da Conceição. Vinha, garboso e galante, a cavalo, namoravam no mirante, mas ela, após alguma hesitação, preferiu o "brasileiro" António Carlos, que, segundo disse muitas vezes, a admirava com uns grandes e expressivos olhos verdes, como jamais vira outros.
Os demais antepassados de Maria Antónia têm, invariavelmente, raízes antigas e fundas em Gondomar, a (então) pacata vila que recebera, antes da fundação do reino de Portugal, o nome de um rei godo. Do lado paterno, os Pereira e Aguiar da Gandra, do materno, os bisavós Anna e Joaquim, da Quinta da Bela Vista, (quinta na geração seguinte, vendida a estranhos, não se sabe ao certo quando, mas largas décadas antes da sua demolição, durante a presidência do Major Valentim Loureiro, que terá manobrado no sentido de a "desclassificar" pela retirada do selo protetor de património de interesse público)
Alguns dos numerosos irmãos de Carolina, seguiram as pisadas do pai, e, com a sua vocação empresarial, enriqueceram, caso de MANUEL GUEDES (Ferreira Ramos), que dá o nome à praça do Município em Gondomar, e ANTÓNIO FERREIRA RAMOS, emigrado para o Brasil, onde lançou com um Salgado Zenha (decerto antepassado do que ficou na história da nossa democracia) uma sociedade próspera, a "Ramos e Zenha". Desse Tio gostava muito a Maria da Conceição (que viria a ser Maria Aguiar). Com ele manteve correspondência assídua e trocou retratos, seguindo o seu percurso e o dos filhos, que ocupam várias páginas num gracioso álbum de capa de veludo arroxeado. Este António casou com Carolina Silveira Martins, (irmã do notável Governador do Rio Grande do Sul, que se notabilizou nos primeiros anos da República brasileira). e tornou-se um verdadeiro patriarca. A sua descendência é incontável e está hoje espalhada pelo sul do Brasil, de Bagé, onde morou, a São Paulo, e aos confins do Uruguai. Desses inúmeros primos que, separados pelo oceano, se desconhecem, só dois se encontrariam, um dia, em fins do século XX, em Brasília, os primos Maria Manuela Aguiar, Vice-Presidente da Assembleia da República Portuguesa, e Sá Azambuja, Senador da República Federativa do Brasil, ambos descendentes diretos, e no mesmo grau, de Anna e Joaquim..
Um outro ANTÓNIO FERREIRA RAMOS era filho de Manuel Guedes, e foi também muito próximo da prima direita Maria da Conceição. A vida levou-o para longe, embora um longe menos longínquo, (Lisboa), depois do casamento com uma filha de Ramalho Ortigão, de quem descendem todos os Ortigão Ramos, Foi, entre outras coisas, proprietário do teatro que é hoje o São Luís e, tal como o pai, um benfeitor da terra mátria. Camilo de Oliveira, nas memórias de Gondomar, lembra que instituiu bolsas de estudos, em igual quantidade e montante para rapazes e raparigas. A instrução feminina foi uma das causas republicanas, defendida pelo movimento feminista, mas, em boa verdade, também por muitos homens, companheiros de crenças revolucionárias, como este gondomarense, genro de Ramalho.
. Manuel Guedes ficou conhecido pelo republicanismo militante, e, embora não chegasse a ver o fim do regime monárquico, o seu nome não foi esquecida, tendo sido dado, nos alvores do novo regime, à Praça onde tivera, antes de se fixar no Porto, uma loja comercial, no casarão, de azulejos, que ainda lá está, em frente à Câmara - o que, infelizmente, se não pode dizer da Vila Maria, ou da Quinta da Boavista, da qual resta um pequeno lago de pedra, transplantado para junto da capela do Monte Crasto, a crer numa história contada, no café do Castro, num dia de sol em que uma Joana do século XXI fez a comunhão solene, por um simpático velhinho anónimo, que se gabava de ter frequentado a propriedade.
Os filhos de Carolina e Joaquim afastaram-se do mundo de atividades empresariais, que tinha feito a fortuna de avós e parentes.Tal como o pai enveredaram, quase todos, por carreiras do funcionalismo público, os três mais velhos, Alberto, António e Alexandre e o mais novo, José Barbosa Ramos, advogado e deputado pelo Porto, que acabaria por ingressar na magistratura judicial. Em vez de servir o Estado, AMÉRICO dedicou-se ao serviço de Deus, e foi um padre muito bondoso e querido dos paroquianos. Temperamentalmente, com certeza, o mais próximo do pai....
ALEXANDRE MENDES BARBOZA começou como Secretário da Administração e, mais tarde, seria Administrador do Concelho. Sempre envolvido na vida cultural de São Cosme, esteve entre os fundadores do Clube Gondomarense e pertenceu aos seus executivos, Era alto, bonito e elegante, apreciador de teatro, assíduo frequentador do Sá da Bandeira e das tertúlias da "Brasileira". E, ocasionalmente, poeta, também, embora dos seus versos, só uma quadra tenha sido conservada pela sobrinha Maria Antónia:
"Morre um afeto, outro nasce
Passa um desejo, outro vem
Depois de um sonho, outro sonho
De tantos que a vida tem"
Afetos femininos não lhe terão faltado na juventude, era, entre os seus elegantes irmãos, o mais bem parecido... Casou com HERMÍNIA, uma senhora alegre e recatada, que aceitava, de bom grado, a sua constante intervenção cívica e cultural. Um só grande desgosto na vida a dois, a morte da única filha, ainda pequenina. Ambos gostavam muito de crianças e dedicaram-se aos sobrinhos, filhos da irmã/cunhada Maria, que tão cedo enviuvou, sobretudo, à mais nova, Maria Madalena, com apenas 3 meses quando o pai morreu. Foi criada mais com eles do que com a própria mãe. O convívio era facilitado por morarem em frente à Vila Maria. O ambiente de concórdia e serenidade do seu lar, de tal modo moldou o espírito da pequena Madalena e o seu modo de estar na vida, que nem se diria parte do grupo dos buliçosos irmãos e irmãs Barbosa Aguiar. Parecia realmente filha da Tia Hermínia, na sua postura sereníssima e até na sua dedicação a todos os animais, em geral, e a gatinhos, em especial.
Deste tio falecido pouco depois de acabar a 2ª Grande Guerra, mal se lembram os sobrinhos netos, mas conhecem o insólito da sua conversão. ou reconversão, à fé católica, na hora de partir. Um cancro de pulmão. doença de fumadores inveterados, como ele, dava.lhe a certeza de que o fim estava próximo. Mandou chamar o pároco e com ele ficou longamente, em confissão e em conversa. Foi o Abade Andrade que ouviu as suas últimas palavras. Saiu do quarto, comovido, e disse à família ali reunida . "Acaba de morrer um santo". Os amigos republicanos, como foi, e laico, como fora até aos momentos derradeiros, diriam o mesmo, de outra forma. Talvez: "morreu um justo". Os sobrinhos Aguiar choravam a partida do seu segundo pai
Igualmente republicano, mas mais revolucionário no campo da luta, era António, o anarquista, que foi, várias vezes, preso no Aljube, e, durante o consulado de Sidónio, esteve degredado em Angola. O degredo foi, porém, não só uma pausa nas escaramuças políticas, como oportunidade de conhecer outras paisagens e costumes, com os quais se deu bem, e até de se lançar em negócios razoavelmente rentáveis. Que ramo de negócios? Lá não se sabe, cá, após o retorno, parece ter investido num "café - concerto", onde terá falhado a aventura empresarial. Voltou a um emprego de funcionário... e continuou frequentador do meio, onde recrutava as companheiras espanholas, a última das quais, Teresita, lhe sobreviveu.
. Também ALBERTO MENDES BARBOZA esteve preso no Aljube, ainda rapaz solteiro, Casou com a simpática ZARITA, foi um mais pacato pai de família - pai de um médico e sogro de um pintor, Mário Ferreira, casado com a sua linda e inteligente filha Maria Isabel (Mimi), grande amiga da prima Maria Aguiar, de quem era apenas alguns anos mais nova. Mimi teve uma única filha, Maria Laura, que casaria com Luís Aragão, um homem encantador, que foi despachante da Alfândega do Porto, quando esse cargo estava no seu auge. Dois filhos, a lindíssima Anabela (Bebinha) e o Luís. Ficaram famosas as festas que davam em sua casa no Porto, e onde as primas Aguiar nunca faltavam .
JOSÉ BARBOSA RAMOS casou com senhora de ilustres famílias beirãs, CELESTINA MESQUITA DE ABREU, a tia Celestina de perfil não muito diverso do da tia Hermínia, a cunhada minhota, também ela de boas famílias (e aluna interna de bons colégios de freiras porque o pai enviuvara quando ela era menina). Tiveram dois filhos, José Joaquim (Zé Quim) e Celestina (Tininha) Mesquita d' Abreu Barbosa.. Viviam na casa que fora dos antepassado Carolina e Joaquim, perto da Praça Manuel Guedes e foram sempre companheiros de brincadeira dos primos Barbosa Aguiar, A Tininha será a primeira mulher da família com curso universitário (Farmácia) e exerceu, como dirigente e proprietária de uma Farmácia em Valongo e o Zé Quim, licenciou-se em Histórico - Filosóficas e foi Bibliotecário da Universidade de Coimbra.
Na geração anterior, o pai distinguira-se, como político, à frente de um jornal de intervenção e como deputado pelo Porto, como advogado e, seguidamente, como Juiz. Fez, na Magistratura, um percurso fulgurante, e acabaria aposentado compulsivamente do Supremo Tribunal de Justiça, onde era o mais jovem Conselheiro de sempre. Américo era monárquico regenerador, como o pai e as irmãs. Rozaura, Glória e Maria da Conceição (de Carolina, a mãe, se ignoram, de facto, as convicções políticas, embora não custe admitir que fosse monárquica, como tendiam a ser as mulheres, mais do que os homens.... Ideologicamente divididos em campos opostos, mas afetivamente unidos, nunca deixaram que isso interferisse na boa relação quotidiana.. Nos anos 30, várias vezes António se refugiou, onde a polícia do regime nunca se lembraria de o procurar, na "Vila Maria" junto da irmã que dava o nome à Vila e era uma cidadã acima de toda a suspeita, catolicíssima e dirigente local da "Obra das Mães". Às criadas dizia: "Daquele Senhor, que está lá em cima, não se fala a ninguém". E elas não falaram. Nas últimas vezes, esteve ele acompanhado da sua companheira espanhola, a Teresita, e de um cãozinho. Era viúvo já, mas da falecida mulher nada consta - à sua memória mais se associa a ex-bailarina espanhola e o cão que, no seu funeral (civil, exatamente como quis) ficou sentado no chão, durante o velório, ao lado de um busto da República. Nenhuma das irmãs acompanhou o cortejo fúnebre até ao cemitério. Ficaram a chorar a sua morte, dentro de casa, de portas e janelas fechadas. Um enterro laico era, para aquela geração, uma morte eterna pior do que a morte terrena. Ainda não viam Deus como suficientemente justo para receber nos céus um bom ateu, como hoje crescentemente se acredita, tanto ou mais do que num Deus concreto...
Das filhas de Carolina e Joaquim só GLÓRIA BARBOZA RAMOS quis continuar estudos. Os rapazes seguiram, um para o seminário, todos os outros para os colégios, embora só um se formasse na Universidade de Coimbra. Para as meninas, estudar era facultativo - depois da escolaridade primária, podiam ter, em casa, aulas de línguas, de piano, sem grande rigor ou obrigação e aprendiam as artes de bordar, a cozinhar... Glória terminou, com facilidade, o curso do Magistério na Escola Normal, tornando-se uma pioneira na família. Contudo, não chegou a exercer o cargo de professora - a tuberculose levou-a aos 21 anos. Do Porto teria trazido o diploma e a doença incurável. Escolheu ficar em casa, não ir para um sanatório de montanha, como quem vai para o exílio. Rozaura, a irmã mais velha, quis trata-la dedicadamente, como faria, anos depois, com o irmão, o bondosíssimo Padre Américo, que morreu com aura de santo entre os paroquianos..
Glória, ao contrário de Rozaura, era uma rapariga moderna, de uma formosura exuberante. Não hesitava em passear, na modesta vila de São Cosme, os seus vestidos citadinos, levando com ela, lado a lado, igualmente alta e chique, Maria, e, atrás, consumida e vigilante, a mana mais baixinha e modesta, com nome de heroína de romanca. Paravam os moços de Gondomar, espantados para as ver pisar terra batida como quem caminha em passadeira vermelha e atiravam às meninas piropos e galanteios, a, que, às vezes, horror dos horrores, elas ripostavam (ou melhor, no singular, ripostava Glória, ria Maria, discretamente, e quase chorava a mais conservadora, com o despropósito). Seria a jovem professora "feminista"? Dir-se.ia que sim, fica a dúvida - as manas não desvendariam o mistério. apenas contaram que era excelente amazona e namorava um primo Lobão. São muitas fotografias que dela nos dão uma imagem de beleza e de auto-confiança, a coincidir com a opinião transmitida pelas irmãs. Um seu retrato de grandes dimensões, que dominava a galeria dos retratos de casa da irmã Maria, foi muitas vezes emprestado, tal como o piano, para as récitas e peças de teatro da Ala Nuno Álvares, como decoração em palco de salas de visitas, dominadas por imponentes quadros de parede...(incrível a cedência do pesadíssimo piano alemão, "Riese", que fazia o curto trajeto para o Souto em carro de bois, segundo os relatos de Maria Antónia, ela própria executante musical e atriz de várias comédias, que divertiam a boa sociedade Sãocosmense,...).
ROZAURA BARBOZA RAMOS, a incansável enfermeira dos dois irmãos, não tinha podido evitar o contágio... Mas não ficaria a ser tratada em casa - decisão sua (para poupar mais contágio no círculo próximo) ou dos próprios pais, cada vez mais crentes na solução hospitalar? Resta a dúvida. Partiu para o sanatório do Caramulo, onde ficou por muitos meses. Aí viveria a grande paixão da sua vida, com um médico que lhe retribuiía o sentimento, o Dr Manso, também ele já atingido pela tuberculose. A doença os reuniu e os acabaria por separar, porque ela curou-se e ele não, pelo menos, nessa fase. Guardou numa caixinha, atadas com uma fita de seda as cartas que ele lhe escreveu, deixando dito que queria que fossem enterradas com ela, E assim seguiram com ela, para o seu jazigo em São Cosme, sem que ninguém ousasse abri-las e lê-las.
A Gondomar regressou, pois, saudável, tendo resistido a dietas espantosas, (que incluíam uma dúzia de ovos por dia) e fazendo muitas amigas, sobretudo do sul do país, meninas da alta burguesia, igualmente arrancadas à morte certa pela competência do Dr Manso. Com elas se correspondia e, por várias vezes, visitou as melhores amigas nas suas quintas dos arredores de Lisboa. Estava num solar de Benfica, em 1908, aquando do regicídio, e pode assistir, com a sua anfitriã, às exéquias do Rei D Carlos e do Principe Real Luís Filipe, muito formoso e loiro no caixão, com os vestígios mal disfarçados da bala que lhe atravessou a têmpora, Se monárquica já era, mais intransigente se sentiu. Contudo, o Dr Manso era republicano, amigo de Afonso Costa, que, um dia, lhe apresentara durante um passeio na serra, em que aquele político acompanhou um seleto grupo de convidados, doentes já no bom caminho da cura. Desses passeios frequentes há imagens muito bonitas, junto a quedas de águas. Algumas até foram encaixilhadas e chegaram já bastante sumidas ao presente. Em nenhuma delas, porémk se vê o famoso Afonso. Certo é que a jovem de Gondomar terá tido uma intensa vida social, entre os tempos de repouso forçado, naquela verdadeira "Suiça portuguesa", de que falava com entusiasmo. .
Sobreviveu, rija e saudável, até ao ano em que completaria o seu centenário (1979), Casou, anos mais tarde, já com mais de 30 anos, com um viúvo, funcionário da Contrastaria, MANUEL MARQUES, homem muito amável, com quem foi feliz. Do primeiro casamento tinha ele um filho já adulto, Armando, de quem todos gostava, mas com quem conviviam pouco. Morava, talvez em Braga, de onde, tal como o pai, era natural. De Braga, ficou famosa nos Natais de Gondomar uma receita regional de "formigos" ou "mexidos", doce delicioso, à base de pão, mel, pinhões e passas, que ninguém fazia tão bem como a Tia Rozaura - artista incomparável, tanto na cozinha, como nas rendas e bordados, que saiam das sua mãos. Aos 95 anos, terminou uma enorme colcha em crochet, da mais alta complexidade técnica! - e mais teria empreendido, se a família não a dissuadisse, porque exagerava no andamento do trabalho, com receio de morrer e deixar a obra inacabada...
Foi uma velhinha encantadora, com uns olhos vivos e perspicazes, gostava de falar por aforismos e provérbios, e até de usar um "calão" ligeiro, (que escandalizava a irmã e afilhada Maria, incapaz de dizer uma palavra imprópria) . Eram radicalmente diferentes, Maria sempre pronta a sair, a passear, a conviver, a liderar iniciativas e a influenciar o seu círculo social e familiar, enquanto Rozaura de bom grado se quedava em casa, tricotando, conversando e lendo (nomeadamente jornais, analisados de ponta a ponta, vendo televisão, sempre recatada e serena, embora pudesse fazer comentários certeiros e ácidos, a quem, perante ela, caía no ridículo ou a quem conseguia desmascarar jogadas de intriga ou oportunismo,
Numa pessoa tão prudente, hábil e sábia se estranha a decisão mais errada que tomou na vida e de que haveria de se arrepender: - um segundo casamento, já quase sexagenária, com um "brasileiro" de torna-viagem. MANUEL LIMA. Revelou-se homem de mau feitio, que a sua serenidade foi suportando, até que se viu viúva, de novo, e em pior situação financeira, depois da dispendiosa doença que levou o falecido. Com muito sentido prático, hábitos antigos de poupança e o apoio de uma criada dedicadíssima e competente, Maria da Conceição Póvoas, atravessou aqueles tempos em que não existia segurança social, vendendo apenas uma pequena quinta muito bonita, "a Passagem". Conservou tudo o resto, todas as "relíquias de família", de que era legatária - móveis, loiças, jóias, bordados, linhos e "bibelots" - contando à afilhada Maria Antónia, a história longa de cada peça. E com a afilhada, no Porto e, depois, em Espinho, passaria, os últimos trinta anos, sempre uma companhia agradável para várias gerações de sobrinhos, que escutavam as suas histórias. Consigo trouxe recordações, pertences do maior valor afetivo e uma criada fiel, já não a velha Maria, mas uma sucessora, chamada Olívia Pessegueiro (mais outro traço distintivo entre irmãs, saber ou não manter o pessoal doméstico, que na Casa da Pedreira ficava décadas e na Villa Maria mudava constantemente)
Três irmãs com sorte tão diferente...A que mais parecia querer fazer com o seu futuro, a que ousou estudar na grande cidade (ir para o Porto seria, então, quase como ir para o estrangeiro), havia de partir tão cedo de uma vida que parecia ter tudo para lhe dar - vemo-la, com os pais, como a menina dileta nos retratos, elegante nas festas e piqueniques no Castro, com alegres grupos de amigos e parentes, sempre com predominância da componente feminina... Sabemos que cavalgava o cavalo que o pai comprara não só por desporto e para recreio, mas para se deslocar em serviço fora de São Cosme (gostava de animais, ficou conhecida a sua ligação a um cão grande, chamado Diu, que o acompanhou na velhice e surge, tranquilo, em muitas fotos de família. E até que não queria dar aulas na escola.
A tragédia da sua morte foi muito sentida, Glória não era só a filha do prestigiado tabelião e de gente com tradições na terra, brilhava com luz própria, pela cultura e pela beleza. Chegou às páginas dos jornais de então, guardados, sem indicação do título e ficou para sempre na memória da família.
"Gondomar, 25 -Falleceu hontem, na primavera da vida, quando tudo lhe sorria, com a idade de 21 anos, a Srª D. Glória Mendes Barbosa, gentil e adorada filha do digno tabelião destre concelho Sr Joaquim Mendes Barbosa.Era uma menina simpática, prendada e de finas qualidades de educação. Aos seus pais, que a adoravam, e aos irmãos Alexandre Mendes Barbosa, secretário da administração deste concelho e Américo Barbosa, abbade de Gondalães e a restante família enlutada os nosso profundos sentimentos. O seu enterro realiza-se amanhã, à 9.00, na Paroquial igreja de Gondomar".
Era a mais ousada das raparigas, e parece, ter sido, realmente, especial - "adorada", como diz e repete o periodista.. Mais determinada, mais intelectual e mesmo mais bonita do que as suas bonitas irmãs. Mulher pensante e atuante, admirada e querida. O namorado dedicava-lhe inspirados poemas. Era o centro de um grupo alegre de jovens, de que os irmãos faziam parte. Um seleto círculo, ou, como diriam então, "a fina flor" da vila
Para a irmã Rozaura, a mesma doença que a vitimou por pouco não lhe abriria as portas de um destino bem mais glamoroso do que o que lhe veio a caber em sorte -, ao lado de um médico muitíssimo atraente, com fortuna e influência social, semelhantes às que MARIA DA CONCEIÇÃO iria encontrar no casamento com ANTÓNIO CARLOS PEREIRA DE AGUIAR, vivido um e outro lado do mar Atlântico
Não surpreende, assim, o facto de ser Rozaura, nos recortes de jornais, que se conservaram nos baús de recordações, a menos citada, não obstante o peso que manteve, no círculo familiar e a popularidade de que gozava entre irmãos, cunhados e sobrinhos, à medida que avançava nos anos, até ao ano do seu centenário.
E, na verdade, as senhoras, são mencionadas, quase sempre, apenas, como "mulheres dos seus maridos". ou "mães dos seus filhos", até nas colunas sociais. Assim surge a matriarca Carolina, a propósito de uma simples festa:
"Passou no último domingo o aniversário natalício da Srº D. Carolina Ramos Barbosa, esposa do estimado e bemquisto notário local, Sr Joaquim Mendes Barbosa. Por esse motivo vieram a esta vila seu filho, Sr Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e ilustre director e proprietário do semanário local "O Progresso de Gondomar" e o Sr Deolindo Oliveira, collaborador do mesmo periódico".
A formatura desse filho José merecera, aliás, pouco antes, destaque semelhante.
"Estiveram domingo último nesta vila os nossos conterrâneos Camilo Martins de Oliveira, António Barbosa , Thomaz Pessoa e César de Moura, do Porto, que vieram assistir a um lauto jantar "offerecido, pelo novo bacharel dr José Barbosa Ramos, festejando a conclusão recente da sua formatura em direito.
Escusado será dizermos que o jantar decorreu no meio da mais franca e eloquente cordialidade e com immenso enthusiasmo. Ao jantar, além dos cavalheiros citados assistiu a família do novo bacharel, que partilhou a alegria da festa. Assistiu mais ao jantar o nosso patrício António Pereira de Aguiar, antigo companheiro da vida escolar do sr dr José ramos Barbosa".
A pequena notícia oferece-nos o colorido da celebração de um feito, então, relativamente raro, como era uma formatura coimbrã... De menor interesse etnográfico. mas muito mais interessante para a reconstituição do mosaico de relacionamentos familiares é o facto de salientar a presença de um ilustre "patrício" (forma, porventura, de designar, um expatriado no Brasil...) António Aguiar, que tinha sido companheiro de escola do novo jurista. Um dado novo, que, por um lado, nos mostra como, já então, o jovem emigrante no Rio era considerado figura grada da vila e nela mantinha, em férias certamente frequentes, uma rede de contactos com pessoas e instituições. E deixa-nos a dúvida: seria nesse jantar que primeiramente conversou com Maria, ou foi convidado, não como colega de José, dos bancos da escola, mas já como namorado da futura mulher?
As famílias Barbosa Ramos e Aguiar não teriam sido íntimas, anteriormente, mas já houvera, pelo menos, um outro romance (que, porém, não terminou no altar), entre Alexandre e uma irmã de António Carlos, Gracinda (ou Florinda?), muito engraçada e, segundo esse tio disse à Maria Antónia, parecidíssima com ela.
Difícil na única fotografia coletiva existente da família Pereira de Aguiar, um retrato de dezenas de figurantes, entre pais, filhos, noras e genros e criadas, reconhecê-la e avaliar a semelhança de traços. Nesse ano, ainda António Carlos não tinha partido para o Brasil, mas já estaria a fazer as malas, o que situa a fotografia em 1895 ou 1896..
Maria casaria com ele, já homem de fortuna e cultura acima da média, em 10 de setembro de 1910,
OS AGUIAR - SOB O SIGNO DA DIVERSIDADE
De diversidade se pode falar, a seu propósito, em diversos sentidos .Desde logo, num confronto com o outro lado da família. Enquanto nos Barboza e nos Ferreira Ramos há uma memória que os traz até nós, com a marca de uma acentuada homogeneidade não só de classe social, de fortuna ou profissão (com predominância de funcionários públicos, professores, médicos, advogados, que se irá acentuando nas novas gerações) mas também de intervenção cívica, para além das fissuras ideológicas, nos Aguiar encontramos uma espantosa diversidade. Os 15 filhos do casal Rosa Pereira e Manuel de Aguiar, que chegaram à idade adulta (não havendo qualquer indício de que outros terão desaparecido em crianças, como então era comum) distinguiam-se mais pelas diferenças do que pelas parecenças e tiveram destinos também muito distintos... Maria, a mãe de Maria Antónia, dizia que nunca vira família que, nesse aspeto, se comparasse aquela.
A ascendência de Rosa Pereira é a que está melhor estudada, ao longo de mais de 300 anos, graças a um ilustre primo Maia, professor catedrático e especialista de genealogia, descendente direto de um segundo casamento de Anna Pereira, a mãe de Rosa. São, surpreendentemente, 300 anos de enraizamento em Gondomar! Mas deles só se conhecem o grau e os nomes,com apelidos vários. Alguns desses antepassados ter-se-iam dedicado à arte que põe no mapa a vila de Gondomar - a ourivesaria. Numa imprecisa crónica destaca-se a vaga memória de uma parente, que foi a primeira mulher de Camilo Castelo Branco, e de um Bispo, figura ainda mais nebulosa.
De Manuel Aguiar. a longa lista de avoengos está por investigar. O pai, Miguel Aguiar e as gerações imediatamente anteriores eram, provavelmente, também, dali.
O casal vivia a sul de São Cosme, na Gândra, num casarão de pedra à face da estrada, com extenso jardim nas traseiras. Aí brincou essa prole numerosa, crianças engraçadas e alegres, com certeza, porque a vivacidade e a extroversão é a qualidade mais comum a todos os Aguiar que se mantiveram no nosso círculo de convivência, levando a supor, que os demais fossem assim também
ANTÓNIO CARLOS PEREIRA DE AGUIAR, o pai de Maria Antónia, era um dos mais novos, talvez mesmo o mais novo. Nasceu em 11 de fevereiro de 1988. Muito bonito, baixinho, sempre bom aluno. cuidadoso com a roupa e a apresentação, determinado, sem ser agressivo ou egocêntrico, era ambicioso, como provou ao emigrar com 16 anos, aceitando o desafio de João, um dos irmãos mais velhos, então já bem estabelecido no Rio de Janeiro. Dos seus primeiros anos, não há episódios que tenha transmitido aos filhos. Pela ligação que cultivou, muito para além do círculo familiar, com amigos de infância e com a terra, a sua atualidade e progresso, ou falta dele, é a imagem daquele género de emigrante, que, como dizia Jaime Cortesão, leva a Pátria consigo. Cruzava, com regularidade, o Atlântico, para vir passar férias em São Cosme. É por recortes de jornal, não por relatos orais, que tomámos conhecimento de que não faltava na época da caça - desporto que, aparentemente, o entusiasmava mais em Gondomar do que no Rio, certamente porque ali tinha os melhores companheiros para caçadas e convívios. Muito provavelmente, misturava prazer e trabalho, manteriam , ele e João, negócios de exportação/importação com o irmão Augusto, pois este era joalheiros, no Porto, como eles no Rio de Janeiro
Terá começado tão rápida ascensão empresarial, certamente como empregado na joalharia de João, com quem terá aprendido os segredos de bem gerir um empreendimento. Com diferença de idades substancial, a sua relação deve ter sido mais do que fraterna, quase paternal/filial. Foi acolhido em casa do irmão, e, muito provavelmente, encorajado por ele a lançar empresa própria, alguns anos depois. No mesmo ramo, independente, não se sabe se antes ou depois de alguma forma de parceria. Talvez, por essa altura, João, casado com uma brasileira de família abastada, se dedicasse já a outros ramos de negócios.
Com cerca de 28 anos, na altura em que se terá enamorado da futura mulher, António era um homem extremamente rico. Onde e quando se iniciou o romance?
Por uma pequena nota na coluna social de um periódico gondomarense apercebemo-nps da sua presença no jantar de formatura em Direito do futuro cunhado José Barboza Ramos. A notícia comprova que nesse ano (1908?) António já era figura grada na vila, pois é um dos poucos nomes em destaque, na festa que reuniu a família e numerosos amigos do homenageado. Aí se menciona ainda que ele e José tinham sido colegas de estudos. Este simples dado permite-nos aventar um anterior convivido com a pequena Maria, dez anos mais nova, (contas feitas, tinha apenas 6 anos quando ele emigrou...), ou, pelo contrário imaginar que a tivesse encontrado nesse jantar convivial, onde ele terá brilhado pelo seu caraterístico humor e cordialidade e, assim, chamado a atenção da lindíssima irmão do novo doutor ele próprio, atraído, de imediato, pela sua graça e desenvoltura de rapariga moderna, chique,
Suposições, apenas... Maria Aguiar teria respondido, se a pergunta lhe tivesse sido feita, mas não foi... Gostava de falar do passado, mas o que deixou dito, não foi anotado, perderam-se pormenores, onde sobrevivem impressões vagas de conversas longas, havidas com as netas a quem histórias antigas encantavam. Do período inicial de namoro, uma pequena confidência indicia que ele era, então, o mais apaixonado. Na primeira despedida, depois de ficarem noivos, ficou e vê-la afastar-se, desolado pela separação de tantos meses em perspetiva e ela foi em frente, rindo com a irmã. Por um gesto de ombros, António Carlos julgou que ela chorava e apressou-se a segui-la, para a consolar, prolongando ou reiniciando a despedida (gesto em que os portugueses de todos os tempos são useiros). Não a viu em lágrimas, que não havia para ver, e a surpreendida Maria terá discretamente atenuado os sinais de boa disposição. Decreto não tinha pressa de subir aos altares, sabendo que se seguia uma separação da família inteira do outro lado do mar sem fim. Com 20 anos, talvez não tivesse pressa de ir para longe sozinha com aquele homem, dedicado e generoso, que lhe oferecia uma vida na alta sociedade da mais maravilhosa cidade do mundo os embora o achasse interessante, Achava um esplêndido contador de história, amável e divertido, coma as suas feições perfeitas e sorriso fácil nos olhos muito claros, muito grandes, verdes, os mais fascinantes que jamais vira (filhos, nem netos herda-los-iam, mas sempre um pouco àquem dos dele)." Os olhos são o espelha da alma", dizia muitas vezes. Também a impressionava a sua cultura, ou "ilustração", palavra que usava mais, mas ainda não um grande anor, que veio depois, e parece ter ido sempre em crescendo, num convívio, em que até os momentos piores como a morte de Augusto, (o quinto menino, de oito meses. que parecia o mais encantador de todos e não resistiu a uma pneumonia) serviu sempre para unir, Discordâncias pequenas, também as houve, mas em conversas em que ele não alterava do tom de voz, Foi, essencialmente, um homem calmo e cordato, dentro e fora de casa. Com a mulher, o desagrado manifestava-se, geralmente, em silêncio, numa expressão mais fechada, ou indiretamente, em mensagens subtis, a avaliar por um dos casos mais bicudos, confidenciada pela (já então) Avó Maria à neta favorita, que era a Manelinha (eu...), no meio de sorrisos, a revelar, décadas depois, notória falta de arrependimento... Acabava de chegar ao Rio a moda dos cabelos curtos, a acompanhar a altura dos vestido e Maria, já senhora de quase trinta anos, sentiu-se tentada a seguir a moda. Cortou os seus longos e grossos cabelos castanhos, passou, de seguida pelo fotógrafo, muito glamorosa, de fato escuro e raposas ao peito, encomendou uma dúzia de exemplares e partiu satisfeita com o novo visual para mansão de Santa Teresa. O marido não lhe pareceu assim tão deslumbrado pela modernidade do visual. pois não fez grandes comentários. Algum tempo depois, já Maria recolhera as fotos encomendadas, já as enviara por cartas para a família, quando foi preparar malas para uma nova viagem e encontrou, na mala do marido, um pacote com doze, precisamente, doze, fotografias dele, com ar bastante crispado. Era, obviamente, a resposta aos seus doze retratos, de farta cabeleira reduzida por tesoura de mestre. E a cara que António exibia naquelas imagens, era, ostensivamente, a que não tinha querido mostrar face a face, no dia em que terá sofrido desgosto de monta...Mas a foto não era assim tão má, a mulher não a deitou fora e ainda existem, até em albúns de família.
Casaram na Igreja de São Cosme, em 10 de setembro de 1910.. No dia 12, um dos jornais de Gondomar noticiava, com o título "Consórcio":
"Realizou-se no sábado passado na egreja paroquial d' esta villa o enlace matrimonial do nosso presado amigo e conterraneo Sr António Aguiar com a Srª D Maria da Conceição Barbosa Ramos, gentil filha do estimado notário local Sr Joaquim Mendes Barbosa e irmã dos nossos amigos Srs António, Alberto e Américo, abbade de Gondalães e dos Srs Alexandre Mendes Barbosa, digno secretário da Administração e Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e diretor de "O Progresso de Gondomar"
Lançou a benção o irmão da noiva, rev abade de Gondalães, Américo Barbosa. A cerimónia revestiu caráter íntimo, assistindo pessoas de família dos dois simpáticos nubentes,
Aos cônjuges, dotados dos mais preclaros dotes de espírito e primorosa educação, desejamos um futuro ridentíssimo"
O recorte, que sobrevive há mais de um século, não permite identificar o periódico - fica a saber-se que não se trata, com certeza, "O Progresso", que referiria a noiva como irmã do diretor. Terá, provavelmente, dado igual ou superior relevo ao evento, mas o eco perdeu-se para a posteridade...
Perdidas andarão também as fotos da cerimónia, porque o retrato oficial foi tirado no Porto, dias mais tarde, em estúdio, e até se conhecem vicissitudes do transporte dos trajes nupciais, ao cuidado de uma criada um pouco descuidada... O fraque do noivo chegou ligeiramente amachucado e ele, exigentíssimo com pormenores, ficou i, coisa ra, zangado (ignora-se se a criada terá conseguido arrepiar caminho para continuar ao serviço, duradouramente). Enfim, foi preciso arranjar um ferro de engomar e dar o toque necessário à perfeição. De seguida, novo motivo de irritação. Maria Aguiar era muito alta, mais do que o marido e o artista fotógrafo sugeriu que ele se colocasse num banquinho disfarçado nas dobras do vestido. Sugestão recebida pelo noivo, com indignação. Tanta, que ele não conseguiria recuperar o sorriso da praxe. E ela também não, como, a rir-se, retrospetivamente, contaria. E, assim, a imagem não espelha a autêntica felicidade daquele 10 de setembro.
A lua de mel terá começado no norte e continuou em Lisboa, onde passaram uns dias num excelente hotel, o Franqueforte do Rossio (há muito desaparecido), e de seguida,na travessia do oceano para o Brasil, em paquete de luxo, Nos primeiros dias, ondas alterosas retiveram a maioria dos passageiros nas cabines. Ambos "bons marinheiros", resistentes à intempérie, Maria e António foram companhia constante na mesa do comandante, com quem fizeram amizade..
Foi uma lua de mel com história, na capital do Reino de Portugal - pois aí viveram os noivos os últimos dias do Reino e os primeiros da República.. Em Lisboa, no Rossio, estavam, precisamente, a 5 de outubro. Uma bala atravessou a janela do quarto, sem lhes causar dano (bala guardada como macabro troféu, por um casal de monárquicos, que muitos dos netos ainda tiveram na mão...). Infelizmente, o cozinheiro do hotel foi atingido e morreu. Que ambiente para deixarem o país... na incerteza de uma revolução por ambos indesejada, e temendo pela sorte de todos os que .
No Rio de Janeiro viveriam durante uma década muito feliz.
Cruz Vermelha italiana
Sobre o marido, traçava o retrato de um homem bom, sociável, alegre, feliz porque a adorava e adorava a sua numerosa família, 8 filhos em 16 anos de casamento... e mais teriam sido se não tivesse morrido, quando ela ia nos 36 anos e a última filha nos 3 meses. Talvez não ficassem longe dos 15 ... Impensável, hoje, mas a qualidade de vida, então, era outra. Não faltavam criadas para todo o serviço e "babás" para os meninos, que viajavam sempre com eles na 1ª classe dos navios. Os meninos eram terríveis, corriam pelo convés e conseguiam atirar à água tudo o que estivesse à mão, como almofadas de cadeiras...
Os Aguiar ricos não hesitam em gastar largamente o dinheiro bem ganho, - em casas enormes ( como a casa do Tio João, da Rua de Payssandú, a da Gandra, herdada dos pais e remodelada e remobilada luxuosamente pelo Tio Augusto, a Villa Maria dos Barbosa Aguiar, ou, na geração seguinte, as de alguns dos Aguiar Saraiva Maria, na Foz do Porto ou na Lapa em Lisboa). Investiam, todos, em conforto no dia a dia, em roupas, em viagens, em festas. Eram generosos com os empregados e solidários com os familiares menos afortunados, e, alguns, dados a causas e a beneficência. António, por exemplo. à cunhada Rozaura, agradecia a infinita paciência com que, tantas vezes, se encarregava de entreter e controlar os seus irrequietos filhos, oferecendo jóias valiosas, anéis e brincos de diamantes.
Contudo, daquelas descrições da avó para a filhos e netos (sobretudo a netas), construímos mais um estereótipo do que o homem real - o do emigrante de "torna viagem", com fortuna rápida e honesta, embora não o preocupasse só o lado material do destino (com que a maioria se contenta), e se tivesse refinado, ganho mundo, cosmopolitismo. Nas vindas a Portugal, aproveitava para viajar pela Europa e, talvez, também pelo médio Oriente, onde terá comprado a carpete persa do pavão azul, que se conservou no centro da sala de visitas, sob os passos de várias gerações de descendentes.
É em pequenos pormenores que conseguimos vislumbrar a pessoa, hábitos adquiridos em outras paragens, sob céu com outras estrelas, como tomar diariamente duches frios ou nadar pela manhã num tanque com dimensão de piscina, em água gelada. e tomar, de seguida, invariavelmente um pequeno almoço de frutas variadas. E excentricidades, Uma das suas engraçadas e inofensivas" era quebrar a loiça toda nas romarias. Uma mania muito popular entre as feirantes. Logp que o avistavam, as vendedoras de cântaros e vasos desatavam numa gritaria: "Senhor Aguiar, venha aqui partir a minha louça!".(em São Cosme não se dizia "loiça") E ele lá ia, varrer com vigorosas bengaladas, uma das tendas, pagando principescamente, os estragos.. Restam ainda muitas das bengalas de castão de prata ou ouro, com que executava o ato.
António Carlos Pereira de Aguiar.
Nasceu no dia 11 de Fevereiro de 1880, em Gondomar. Há 129 anos!
Hoje, ao fim do dia, enquanto passeava, em Espinho, à beira mar, pensava nele.
Nas vezes, sem conta, que atravessou este oceano, aproximando-se da "terra amada", como diria Camões, ansioso por abraçar os seus - uma multidão de joviais "Aguiares", entre os pais e mais de uma dúzia de irmãos, para além de afins, e sobrinhos, e amigos e, depois, a namorada Maria...
Quantas vezes partiu, saudoso, mas, como todos os expatriados jovens e bem sucedidos, pronto para retomar o fio dos negócios e enfrentar interessantes desafios no grande país tropical das oportunidades sem fim. E na mais bela cidade do mundo, que era o Rio de Janeiro, no início do século passado (assim pensava a Avó Maria, certamente de pleno acordo com ele).
E quantas viagens, já depois de casados, em cada nova travessia com um menino mais, porque a família crescia, crescia...
Vinham e iam, claro, na 1ª classe dos melhores paquetes (incluindo a "bábá" dos meninos).
Sei que gostavam da vida a bordo, que dançavam nas festas que se sucediam, feericamente, e faziam amigos, com facilidade. Formavam um belo casal - ela bastante mais alta, mas ele sem complexos e orgulhoso da sua graça e distinção, ainda que um pouco ciumento ...
Os meninos eram encantadores, como mostram as fotos (o que as fotos não revelam, "hélas", é as suas diabruras: as almofadas e outras possessões móveis do navio, que eles atiravam pela borda fora...). Enfim, havia formas de diversão para todas as idades!
Como não pensar, também , na casa construida por esse Avô - que não pudemos conhecer, por ter desaparecido, subitamente, com 46 anos, apenas.
A "Villa Maria". A casa dele, a nossa casa!
Os jardins com as belíssimas rosas, que ele cultivava, por suas mãos, e levava a concursos (ganhou vários prémios!). As árvores, de todos os frutos. Os mirantes e recantos, feitos para o convívio da família e dos amigos...
Um presente, que deixou a várias gerações. Através das recordações, que a simples memória desse "espaço Aguiar" nos traz, ele continua vivo.
As histórias do génio empresarial deste "Avô brasileiro", assim como do seu bom gosto, da sua cultura, da sua generosidade, do seu sentido de humor, chegaram, até nós, nos relatos da Avó Maria,
Pela memória se vive, e, por isso, ele não vai morrer nunca.
JOÃO PEREIRA DE AGUIAR
Dos irmãos mais fracos deste vasto rancho, praticamente, não reza a crónica familiar, (exceto em alguns casos em nota elítica a parecer epitáfio). O que talvez aconteça apenas porque não pertenciam ao círculo de convivência dos Barboza Ramos, ou seja, os contadores de histórias.
João fez-se um homem muito alto e elegante, embora não propriamente bonito. Não se sabe a idade com que partiu para o Brasil, ou se aí tinha parentes ou conterrâneos que o apoiassem, ou como afrontou os primeiros tempos, quase sempre os mais difíceis, A progressão de fortuna e estatuto terá sido rápida, pois quando chamou António Carlos para junto de si já estava num patamar elevado Não há dúvida de que o ajudou a fazer carreira e o introduziu na sociedade local. Talvez o tenha também incentivado a valorizar-se num plano cultural, pois ele mesmo prezava esse lado da vida, para além dos aspetos mais materiais, com que o comum do emigrantes dessa época se contentava. Frequentava os meios portugueses, o seu nome consta-se, por exemplo, entre os associados do Real Gabinete de Leitura do Rio de Janeiro, então já uma instituição cultural florescente, que acolhera a mais recente Academia Brasileira de Letras na sua sede, e possui, ainda hoje, a segunda maior biblioteca do Brasil, uma das mais belas do mundo. Contudo, foi com uma jovem brasileira que casou - Judith, uma jovem encantadora da alta burguesia carioca, que viria a ser a melhor amiga da cunhada Maria. Se tinham como aparenta nos retratos mais ou menos a mesma idade, o casamento terá acontecido poucos anos antes do de Maria e António, provavelmente, depois de 1905 , o que faria do marido um quarentão. Se algum dia João tivera um projeto de retorno às origens, o matrimónio brasileiro radicou-o definitivamente lá. Não consta sequer em visitas a Gondomar.
Os filhos de Judith e João aparecem em muitas fotografias com os tios e primos portugueses. Quase todos os homens enveredaram pelos negócios, pela política (houve entre eles, segundo as memórias de Maria Antónia vários senadores e deputados) e pela diplomacia - escolhas que se terão continuado na geração seguinte. Com Portugal não mantiveram ligações. Maria e Judith, depois da morte de João e de se verem separadas pelo Atlântico, trocaram correspondência toda a vida. Porém, nas novas gerações perdeu-se o contacto, só retomado durante ao curto período em que José Augusto, um dos filhos brasileiros de Maria e António, morou no Rio de Janeiro. Tirou muitas fotos com elegantes primas Aguiar, algumas mais jov elegantes
AUGUSTO PEREIRA DE AGUIAR era quase da mesma idade de João e, tal como ele, altíssimo. Talvez o mais semelhante ao pai, um belo homem muito loiro, com olhos azuis, sorriso fácil, invariavelmente bem disposto, Tal como João e António, era joalheiro, estabelecido na carismática Rua das Flores. O negócio prosperou e ele podia e gostava de viver em grande estilo. Sempre com os seu fatos impecáveis e rosas frescas na lapela, frequentador de tertúlias e teatros. Melómano, quis que as filhas do seu casamento com Leonor, Aurora, Lucinda e Leonor estudassem nos melhores colégios e no Conservatório do Porto.. Uma quarta irmã morreu tuberculosa e as primas não a conheceram, não se lembram do nome, só de ouvir dizer que era linda,
Leonor (Nucha) terminou brilhantemente o curso do Conservatório, mas não fez carreira artística, Casou cedo, passou a dar aulas particulares de piano e foi professora das primas,Maria Antónia, Glória (Lolita) e Madalena, todas bastantes mais novas.
Do Tio Augusto guardavam boas recordações. Conviveram com ele nas visitas frequente à casa da Gandra, que lhe coube em partilhas, por morte do Pai. Fez, certamente obras de vulto e mobilou-a luxuosamente. Do jardim há uma única fotografia em que vê a mãe Rosa Pereira com 3 pequenos netos não identificados e, em primeiro plano, o filho António à conversa com um irmão, (que não é Augusto) ou um amigo, mas não se sabe se é anterior às famosas remodelações do joalheiro. Conhecida é a sua paixão por rosas, que pode ter sido herdade dos pais.e era compartilhada pelo mano António.
Segundo Maria Antónia na meia idade o Tio Augusto era gordo e verdadeiramente imponente, uma figura parecidíssima com o Rei Dom Carlos, mas com olhos espantosos e pestanas muito longas, que impressionavam as sobrinhas, crianças, no meio das quais era imensamente dele. Tinha o sentido de clã, tradicional nos Aguiar, era por natureza generoso e tinha meios para lhe dar livre curso. A irmã Violante e o cunhado Camilo, que nunca foram ricos, e uma outra irmã solteirona, Guiomar. moravam por sua conta no rés do chão da casa. Violante e Camilo tiveram um filho, que recebeu o nome do pai e foi mais uma vítima da doença fatal do século, (a tuberculose).
Augusto Aguiar teve negócios com o Brasil, para onde exportava por intermédio dos irmãos emigrados, sem nunca se deixar atrair pela emigração. Se alguma vez esteve no Rio foi de férias ou para tratar de assuntos profissionais.Já a filha Lucinda morou lá alguns anos, com o marido, Homero Figueiredo, que era farmacêutico e dono de uma Farmácia no Porto "naquela rua que vai da Sé para a Batalha, passando pelo antigo Governo Civil", nas palavras da Maria Antónia, que lá passava muitas tardes, feliz porque Lucinda, sua madrinha de batismo, lhe dava quantidades enormes dos bolos e doces de que mais gostava. Por vezes, na companhia de uma criança da mesma idade, um sobrinho de Homero, Fernando Figueiredo, que viria a ser seu médico e grande amigo..
A aventura brasileira foi breve. Não assim para outro dos irmão de Augusto e António Carlos, ao que parece chamado Alberto, um boémio irrecuperável. Aparecia, de longe a longe, com um aspeto que desgostava a família e ficava por pouco tempo, partia, de novo, para lugar incerto. Perdida a paciência, os desistiram de tentar salvá-lo. A sua mais persistente protetora foi a cunhada Maria. Por sua intercessão, António mandava-o comprar fatos apresentáveis e alojava-o em casa. um dia, foi e não voltou mais. Tomaram conta de um filho de Alberto, que tratavam como mais um filho do casal. Seria anos mais velho do que os primos, pois quando começou a preparar o regresso a Portugal, com ausências mais prolongadas (numa altura em que a sua primogénita Carolina tinha 7 ou 8 anos) o deixou a gerir os seus empreendimentos, com as mais inesperadas e dramáticas consequências...
AMÉLIA PEREIRA DE AGUIAR
A única das mulheres desta geração que permanece como lenda, figura lendária, com um "toque de Midas", em domínios onde nenhum antepassado se terá aventurado . estaleiros de barco, frota pesqueira, E uma frase, a única que ficou para a posteridade e que é a sínteses perfeita de um percurso feminino extraordinário "Deus castigou-me com saúde, filhos e dinheiro" Tudo teve em abundância. Supõe-se que nos favores divinos incluiria um marido discreto, cujo nome se conseguiu desvendar numa pequena notícia da imprensa - o Sr Oliveira Aguiar. Seria um primo ou parente ou uma coincidência num apelido nem raro, nem muito comum? Mais provável o parentesco, mas não provado.
Uma velha fotografia amarelada, do espólio de Maria Aguiar, que tem no centro uma senhora alta e forte,bem vestida, de rosto firme determinado, rodeada de meninos, será a única imagem que possuímos (se for ela...). É a matriarca dos Aguiar de Matosinhos, que conservam uma aura de prosperidade possivelmente merecida, mas com os quais se perderam laços de relacionamento e amizade. A migração de Amélia para Matosinhos, embora interna e próxima, produziu, neste aspeto, efeitos semelhantes à emigração brasileira de João e Alberto,
GRACINDA AGUIAR SARAIVA (Saraiva, apelido do marido), teve sete filhos, como a cunhada Maria. Amigas, comadres, Maria e António eram os padrinhos de batismo de António Aguiar Saraiva. A madrinha tinha-o em grande estima, dizia que ele era mais parecido com o padrinho do que qualquer dos seus filhos! O cunhado Saraiva, foi grande empresário, mas atravessou altos e baixos, num percurso muito acidentado e morreu, novo ainda, num dos pontos mais baixos, deixando a viúva e os órfãos em péssima situação. Só o celebrado "espírito solidário dos Aguiar permitiu, não só a alguns, mas a todos, subirem, a pulso, até ao nível mais alto dos tempos do pai, onde souberam permanecer o resto das suas vidas..No princípio foram as irmãs mais velhas, raparigas de uns 20 antes, se tanto, a procurar empregos (dando explicações, ou como precetoras, num círculo social onde tinham relações de amizade, lembrando novelas inglesas oitocentistas) para dar educação aos irmãos, alguns andavam ainda na escola primária. Uma história que terminou coletivamente bem. Eram inteligentes, trabalhadores e bafejados por um instinto empresarial certeiro, que os levou em frente e para cima, invariavelmente. Sem complexos, sem marcas de passadas dificuldades, num regresso ao mundo de onde vinham, como paradigmas de sociabilidade, sentido de humor, extroversão. Morenos e atraentes, com os olhos luminosos, em geral claros, sempre expressivos, que traziam no ADN, capazes de uma boa gargalhada e de um humor cortante, mas temperado de um pendor diplomático, que era em alguns muito acentuado. Facilmente faziam amigos em todas as categorias sociais.
De uma multidão de parentes Aguiar, da sua geração, foi sobretudo com estes que conviveram intimamente em Gondomar e no Porto. e Maria Antónia seria a que com eles foi mantendo pela vida fora um relacionamento constante - com todos, e mais ainda com a Cristina e a Belita, mesmo depois de Cristina ter ido para a Alemanha e Belita para Lisboa, ambas com maridos alemães. Também com António, empresário importador de máquinas e material de escrita e de fotografia - canetas Monblanc, rolos de filme Adox, uma marca germânica, há muito desaparecida dos mercados. Empregava sempre vendedores alemães, que, a seu ver, tinham melhor aceitação junto dos clientes do que os naturais do burgo.aumentando a aceitação e a venda dos produtos (nessa época, os estrangeiros rareavam e a sua presença era notada e desejada, sobretudo se fossem obviamente diferentes, muito loiros. A irmã, CRISTINA FERNANDA AGUIAR SARAIVA, era a gerente. "public relations" e acabaria por casar com um desses profissionais promissores, Ernst Lamb, jovem que cumpriria as promessas, e seria, logo nos anos 70, a diretor da Zeiss (e, seguidamente, da Rodenstock), levando a encantadora Cristina para Wiesbaden, e, depois, para uma pequena, bem traçada, arrumadinha cidade de Aalen (perfeita para postais turísticos e monótona para morar), não longe de Estugarda. Lá viveu, com um marido que a adorava e por quem ela se deixava, melancolicamente adorar, sempre pouco apreciadora de uma certa rigidez e conservadorismo daquela mini sociedade germânica. Na verdade, não é coisa natural um mulher que gosta da sua carreira voltar a um reduto de dona de casa e mulher, Frau Lamb. E pior ainda na tradução alemã, não só linguística mas também sociológica, "Hausfrau". num meio geográfico e humano que sentia avesso.Mostrar há Morreu, durante uma visita a Munique,( cidade grande e festiva, católica e quase latina, onde se sentia mais à vontade) com um enfarte de miocárdio" como o Tio António e com a mesma idade
Ernst era um homem encantador, do meu ponto de vista. Falava um português excelente, tinha estado no Brasil, antes de vir para o Porto, gostava de música, em particular de ópera, de fotografia, de futebol e, no tempo da revolução, acompanhava o PREC lisboeta, apaixonadamente. Não nos faltavam temas de conversa divertida, Sem ser germanicamente loiro ou particularmente formoso, tinha uma caraterística comum a quase todos os compatriotas que conheci de perto. - aceitam muito bem qualquer estrangeiro, desde que lhes pareça, digamos, igual a eles (ou quase), fazendo as mais triviais coisas do quotidiano exatamente como eles fazem. IA mim, não me custa nada - gosto da língua, da gente e das suas peculiaridades, de vinho do Reno, de salsichas, bifes tártaros e peixe cru. Na família Aguiar Saraiva não havia mais ninguém de quem se pudesse dizer o mesmo, pelo que eu para ele era a a pessoa mais popular da família e passei repetidas e felizes férias com eles.
A Cristina reconhecia o seu brilho intelectual e profissional, contudo, por muito que gostasse dele, sempre me pareceu que achar excessiva a sua dedicação e sentir-se enclausurada num magnífico andar com varandas amplas, quais jardins suspensos da Babilónia, cheias de belas plantas, que cuidava com prazer. Viajava bastante, mas sempre na mesma companhia (a dele), ela que era tão expansiva e tinha um enorme círculo de amizades do Porto ao Alto Minho. Só um mês por ano vivia a seu modo, na vinda, sozinha, a Portugal , aproveitando uma das longas ausências do marido no Japão e outros mercados do Extremo-Oriente. Eram 30 dias de movimentação imparável, almoçava e jantava no seu roteiro de afetos, Porto, Espinho, Vila do Conde, Póvoa, Cerveira. Lisboa. A sede da campanha de visitas era a sua velha casa da Rua Santa Catarina, onde continuavam os irmãos solteiros, Rosinha e Manuel, um apartamento acolhedor, cheio de antiguidades e móveis confortáveis, o oposto das simetrias e do conforto modernista do seu lar germânico. De qualquer modo, não parava um minuto, não podia perder um minuto daquela breve e esplêndida liberdade.
Na verdade, não era aquela competentíssima "relações públicas", tão extrovertida, bem pensante e bem falante (mais noutras línguas do que em alemão, aprendido à pressa, por necessidade), que podia ajustar-se ao perfil exigido por Ernst, de esposa doméstica para executivo de multinacional em ascensão. Er hatte eine hausfrau heiraten wollen...Ou, em alternativa ter feito carreira, embora menos meteórica, em terras portuguesas, onde ela melhor escaparia ao seu cerco tendencialmente obsessivo, numa sociedade, onde sempre seria figura preponderante, pelo seu espírito, graça e simpatia
.
BELITA AGUIAR SARAIVA SCHMIDT teve com Walter Heinz Karl Schmidt, história que a coloca quase nas antípodas daquela irmã.. Walter era outro tipo de alemão, de famílias da alta burguesia, impressionantemente alto (quase dois metros), muito bonito, em traços nórdicos - podia ser um vicking gentil e elegante. E também um exemplo de tolerância - o pai, finda a guerra, em 45, apenas porque era diretor na função pública, foi internado num campo de concentração russo e aí morreu. A família ficou sem nada, ajudou-os uma criada ucraniana. Walter, que era moderadamente conservador, centro-direita, nunca manifestava sentimentos ant-russos, mas tinha um declarada simpatia por tudo o que era ucraniano. O seu lema, era certamente, o de valorizar mais o o bom do que o mau, nas memórias, como no seu dia a dia. Inteligente, mostrava discretamente um sentido de humor, que costuma acompanhar essa qualidade, sem nunca ser mordaz. Um dia em que comíamos, num jantar ligeiro, em família, salsichas (alemãs de origem certificada), eu disse, no meu alemão rudimentar, "wurste", à maneira de Estrasburgo, ao que ele replicou: "Oh, a Manuela agora até já fala alemão com sotaque regional".
Prosperaram no ramo das importações (da Alemanha, é claro), desde máquinas pesadas a lápis, viviam num privilegiado recanto da Lapa lisboeta, e nos tempos do PREC passeavam, perigosamente, de Jaguar pelas ruas da capital em fúria. Um dia em que me deram boleia para o Ministério do Trabalho, ele perguntou-me se não serai arriscado levar-me até à porta naquele veículo capitalista, mas eu disse que não e sobrevivi ao desafio.
A Belita nunca foi uma "Hausfrau" - tinha criadas, no plural, para as artes doméstica e era uma associada da empresa familiar, onde fazia a parte de contabilidade, aproveitando experiência dos anos em que trabalhou no Porto, valendo a irmãos mais novos. Depois do choque da morte do Walter, doze anos mais novo, celebrou os 101 anos, bonita e lúcida, impecavelmente penteada e vestida. Como a prima Maria Antónia, que, porém, não chegaria a festejar os 99 - muito interessada em questões da política, mas de uma direita muito mais centrista. Influência do Walter? Maria Antónia, pelo contrário, não acompanhava a moderação social-democrata do marido...Foi a primeira mulher da família a inscrever-se num partido (o PPM), subscreveu a candidatura à presidência do General Kaúlza de Arriaga e votou sempre no CDS. Todavia, era admiradora confessa de Mário Soares e das suas famosas presidências abertas (com o seu "quê" de régio, a motivá-la), e detestava Donald Trump, como um nazi gordo de melenas alaranjadas e Bolsonaro, como homem perigosamente inculto.
ANTÓNIO CARLOS PEREIRA DE AGUIAR, o pai de Maria Antónia, era um dos mais novos, talvez mesmo o mais novo. Nasceu em 11 de fevereiro de 1988. Muito bonito, baixinho, sempre bom aluno. cuidadoso com a roupa e a apresentação, determinado, sem ser agressivo ou egoísta, era ambicioso, como provou ao emigrar com 16 anos, aceitando o desafio de João, um dos irmãos mais velhos, então já bem estabelecido no Rio de Janeiro. Dos seus primeiros anos, não há episódios que tenha transmitido aos filhos. Pela ligação que cultivou, muito para além do círculo familiar, com amigos de infância e com a terra, a sua atualidade e progresso, ou falta dele, é a imagem daquele tipo de emigrante, que, como dizia Jaime Cortesão, leva a Pátria consigo. Atravessava frequentemente o Atlântico, para vir passar férias em São Cosme. É por recortes de jornal, não por relatos orais, que tomámos conhecimento de que não faltava na época da caça - desporto que, aparentemente, o entusiasmava mais em Gondomar do que no Rio, certamente porque ali tinha os melhores companheiros para caçadas e convívios. É muito provável que misturasse prazer e trabalho, que mantivesse negócios de exportação/importação com o irmão Augusto, pois ambos eram joalheiros, este no Porto, ele no Rio, tal como João.
Como terá começado uma tão rápida ascensão empresarial? Obviamente como empregado na joalharia de João, com quem terá aprendido os segredos de bem gerir um empreendimento. A diferença de idades era substancial, a relação deve ter sido mais do que fraterna, quase paternal/filial. Foi certamente acolhido em casa do irmão e encorajado por ele a lançar a sua própria empresa, alguns anos depois. No mesmo ramo, mas independente, não mero associado. Talvez, por essa altura, João, casado com uma brasileira de família abastada, se dedicasse já a outros negócios. Com cerca de 28 anos, na altura em que se terá enamorado da futura mulher António era um homem extremamente rico. Ignora-se onde e quando se iniciou o romance. É por uma pequena nota na coluna social de um periódico da terra que nos apercebemos da sua presença no jantar de formatura em Direito do futuro cunhado José Barboza Ramos. A notícia comprova que nesse ano (1908?) António Aguiar já era figura grada em Gondomar, pois é um dos poucos nomes em destaque, numa festa que reuniu a família e numerosos amigos do homenageado. Aí se menciona ainda que ele e José tinham sido colegas de estudos. Este simples dado permite-nos aventar um anterior convivido com a pequena Maria, dez anos mais nova, (contas feitas, ela tinha apenas 6 anos quando ele emigrou...), ou, pelo contrário imaginar que a tivesse encontrado nesse jantar convivial, onde ele terá brilhado pela graça e simpatia e chamado a atenção daquela jovem lindíssima. E que a beleza dela (o porte - a desenvoltura de rapariga moderna, chique) o cativasse, de imediato.
Suposições...
Maria Aguiar teria respondido, se a pergunta lhe tivesse sido feita. Não foi... Gostava de falar do passado, mas o que deixou dito, não foi anotado, perderam-se pormenores, sobrevivem impressões vagas de conversas longas havidas com as netas a quem histórias antigas encantavam. Do período inicial de namoro, uma pequena confidência indicia claramente que ele era, então, mais apaixonado. Despediu-se, triste pela separação de tantos meses que tinham pela frente e ela foi em frente, rindo com a irmã. Por um gesto de ombros, António Carlos julgou que ela chorava e apressou-se a segui-la, para a consolar, prolongando a despedida. Não a viu em lágrimas, mas Maria terá discretamente atenuado os sinais de boa disposição. Achava-o interessante, com uns olhos muito claros, muito grandes, verdes, os mais fascinantes que jamais vira. Segundo dizia, nenhum dos olhos bonitos dos seus filhos e netos se lhes podia comparar Impressionava-, também, a sua cultura, ou "ilustração", palavra que usava mais. O amor terá ido em crescendo, no noivado e, sobretudo, nos 16 anos de uma união fácil e feliz, com algumas discordâncias, inevitáveis na vida de um casal, mas nunca expressas, num alterar do tom de voz. Terá sido, essencialmente, um homem calmo e cordato, dentro e fora de casa
Casaram na Igreja de São Cosme, em 10 de setembro de 1910.. No dia 12, um dos jornais de Gondomar noticiava, com o título "Consórcio":
"Realizou-se no sábado passado na egreja paroquial d' esta villa o enlace matrimonial do nosso presado amigo e conterraneo Sr António Aguiar com a Srª D Maria da Conceição Barbosa Ramos, gentil filha do estimado notário local Sr Joaquim Mendes Barbosa e irmã dos nossos amigos Srs António, Alberto e Américo, abbade de Gondalães e dos Srs Alexandre Mendes Barbosa, digno secretário da Administração e Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e diretor de "O Progresso de Gondomar"
Lançou a benção o irmão da noiva, rev abade de Gondalães, Américo Barbosa. A cerimónia revestiu caráter íntimo, assistindo pessoas de família dos dois simpáticos nubentes,
Aos cônjuges, dotados dos mais preclaros dotes de espírito e primorosa educação, desejamos um futuro ridentíssimo"
O recorte, que sobrevive há mais de um século, não permite identificar o periódico - fica a saber-se que não se trata, com certeza, "O Progresso", que referiria a noiva como irmã do diretor. Terá, provavelmente, dado igual ou superior relevo ao evento, mas o eco perdeu-se para a posteridade...
Perdidas andarão também as fotos da cerimónia, porque o retrato oficial foi tirado no Porto, dias mais tarde, em estúdio, e até se conhecem vicissitudes do transporte dos trajes nupciais, ao cuidado de uma criada um pouco descuidada... O fraque do noivo chegou ligeiramente amachucado e ele, exigentíssimo com pormenores, ficou i, coisa ra, zangado (ignora-se se a criada terá conseguido arrepiar caminho para continuar ao serviço, duradouramente). Enfim, foi preciso arranjar um ferro de engomar e dar o toque necessário à perfeição. De seguida, novo motivo de irritação. Maria Aguiar era muito alta, mais do que o marido e o artista fotógrafo sugeriu que ele se colocasse num banquinho disfarçado nas dobras do vestido. Sugestão recebida pelo noivo, com indignação. Tanta, que ele não conseguiria recuperar o sorriso da praxe. E ela também não, como, a rir-se, retrospetivamente, contaria. E, assim, a imagem não espelha a autêntica felicidade daquele 10 de setembro.
A lua de mel terá começado no norte e continuou em Lisboa, onde passaram uns dias num excelente hotel, o Franqueforte do Rossio (há muito desaparecido), e de seguida,na travessia do oceano para o Brasil, em paquete de luxo, Nos primeiros dias, ondas alterosas retiveram a maioria dos passageiros nas cabines. Ambos "bons marinheiros", resistentes à intempérie, Maria e António foram companhia constante na mesa do comandante, com quem fizeram amizade..
Foi uma lua de mel com história, na capital do Reino de Portugal - pois aí viveram os noivos os últimos dias do Reino e os primeiros da República.. Em Lisboa, no Rossio, estavam, precisamente, a 5 de outubro. Uma bala atravessou a janela do quarto, sem lhes causar dano (bala guardada como macabro troféu, por um casal de monárquicos, que muitos dos netos ainda tiveram na mão...). Infelizmente, o cozinheiro do hotel foi atingido e morreu. Que ambiente para deixarem o país... na incerteza de uma revolução por ambos indesejada, e temendo pela sorte de todos os que .
No Rio de Janeiro viveriam durante uma década muito feliz.
Cruz Vermelha italiana
Sobre o marido, traçava o retrato de um homem bom, sociável, alegre, feliz porque a adorava e adorava a sua numerosa família, 8 filhos em 16 anos de casamento... e mais teriam sido se não tivesse morrido, quando ela ia nos 36 anos e a última filha nos 3 meses. Talvez não ficassem longe dos 15 ... Impensável, hoje, mas a qualidade de vida, então, era outra. Não faltavam criadas para todo o serviço e "babás" para os meninos, que viajavam sempre com eles na 1ª classe dos navios. Os meninos eram terríveis, corriam pelo convés e conseguiam atirar à água tudo o que estivesse à mão, como almofadas de cadeiras...
Os Aguiar ricos não hesitam em gastar largamente o dinheiro bem ganho, - em casas enormes ( como a casa do Tio João, da Rua de Payssandú, a da Gandra, herdada dos pais e remodelada e remobilada luxuosamente pelo Tio Augusto, a Villa Maria dos Barbosa Aguiar, ou, na geração seguinte, as de alguns dos Aguiar Saraiva Maria, na Foz do Porto ou na Lapa em Lisboa). Investiam, todos, em conforto no dia a dia, em roupas, em viagens, em festas. Eram generosos com os empregados e solidários com os familiares menos afortunados, e, alguns, dados a causas e a beneficência. António, por exemplo. à cunhada Rozaura, agradecia a infinita paciência com que, tantas vezes, se encarregava de entreter e controlar os seus irrequietos filhos, oferecendo jóias valiosas, anéis e brincos de diamantes.
Contudo, daquelas descrições da avó para a filhos e netos (sobretudo a netas), construímos mais um estereótipo do que o homem real - o do emigrante de "torna viagem", com fortuna rápida e honesta, embora não o preocupasse só o lado material do destino (com que a maioria se contenta), e se tivesse refinado, ganho mundo, cosmopolitismo. Nas vindas a Portugal, aproveitava para viajar pela Europa e, talvez, também pelo médio Oriente, onde terá comprado a carpete persa do pavão azul, que se conservou no centro da sala de visitas, sob os passos de várias gerações de descendentes.
É em pequenos pormenores que conseguimos vislumbrar a pessoa, hábitos adquiridos em outras paragens, sob céu com outras estrelas, como tomar diariamente duches frios ou nadar pela manhã num tanque com dimensão de piscina, em água gelada. e tomar, de seguida, invariavelmente um pequeno almoço de frutas variadas. E excentricidades, Uma das suas engraçadas e inofensivas" era quebrar a loiça toda nas romarias. Uma mania muito popular entre as feirantes. Logp que o avistavam, as vendedoras de cântaros e vasos desatavam numa gritaria: "Senhor Aguiar, venha aqui partir a minha louça!".(em São Cosme não se dizia "loiça") E ele lá ia, varrer com vigorosas bengaladas, uma das tendas, pagando principescamente, os estragos.. Restam ainda muitas das bengalas de castão de prata ou ouro, com que executava o ato.
António Carlos Pereira de Aguiar.
Nasceu no dia 11 de Fevereiro de 1880, em Gondomar. Há 129 anos!
Hoje, ao fim do dia, enquanto passeava, em Espinho, à beira mar, pensava nele.
Nas vezes, sem conta, que atravessou este oceano, aproximando-se da "terra amada", como diria Camões, ansioso por abraçar os seus - uma multidão de joviais "Aguiares", entre os pais e mais de uma dúzia de irmãos, para além de afins, e sobrinhos, e amigos e, depois, a namorada Maria...
Quantas vezes partiu, saudoso, mas, como todos os expatriados jovens e bem sucedidos, pronto para retomar o fio dos negócios e enfrentar interessantes desafios no grande país tropical das oportunidades sem fim. E na mais bela cidade do mundo, que era o Rio de Janeiro, no início do século passado (assim pensava a Avó Maria, certamente de pleno acordo com ele).
E quantas viagens, já depois de casados, em cada nova travessia com um menino mais, porque a família crescia, crescia...
Vinham e iam, claro, na 1ª classe dos melhores paquetes (incluindo a "bábá" dos meninos).
Sei que gostavam da vida a bordo, que dançavam nas festas que se sucediam, feericamente, e faziam amigos, com facilidade. Formavam um belo casal - ela bastante mais alta, mas ele sem complexos e orgulhoso da sua graça e distinção, ainda que um pouco ciumento ...
Os meninos eram encantadores, como mostram as fotos (o que as fotos não revelam, "hélas", é as suas diabruras: as almofadas e outras possessões móveis do navio, que eles atiravam pela borda fora...). Enfim, havia formas de diversão para todas as idades!
Como não pensar, também , na casa construida por esse Avô - que não pudemos conhecer, por ter desaparecido, subitamente, com 46 anos, apenas.
A "Villa Maria". A casa dele, a nossa casa!
Os jardins com as belíssimas rosas, que ele cultivava, por suas mãos, e levava a concursos (ganhou vários prémios!). As árvores, de todos os frutos. Os mirantes e recantos, feitos para o convívio da família e dos amigos...
Um presente, que deixou a várias gerações. Através das recordações, que a simples memória desse "espaço Aguiar" nos traz, ele continua vivo.
As histórias do génio empresarial deste "Avô brasileiro", assim como do seu bom gosto, da sua cultura, da sua generosidade, do seu sentido de humor, chegaram, até nós, nos relatos da Avó Maria,
Pela memória se vive, e, por isso, ele não vai morrer nunca.
DO RIO DE JANEIRO Á VILA MARIA
Maria e António Aguiar casaram a 10 de setembro de 1910. No dia 12, um dos jornais de Gondomar noticiava, com o título "Consórcio":
"Realizou-se no sábado passado na egreja paroquial d' esta villa o enlace matrimonial do nosso presado amigo e conterraneo Sr António Aguiar com a Srª D Maria da Conceição Barbosa Ramos, gentil filha do estimado notário local Sr Joaquim Mendes Barbosa e irmã dos nossos amigos Srs António, Alberto e Américo, abbade de Gondalães e dos Srs Alexandre Mendes Barbosa, digno secretário da Administração e Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e diretor de "O Progresso de Gondomar"
Lançou a benção o irmão da noiva, rev abade de Gondalães, Américo Barbosa. A cerimónia revestiu caráter íntimo, assistindo pessoas de família dos dois simpáticos nubentes,
Aos cônjuges, dotados dos mais preclaros dotes de espírito e primorosa educação, desejamos um futuro ridentíssimo"
O recorte, que sobrevive há mais de um século, não permite identificar o periódico - fica a saber-se que não se trata, com certeza, "O Progresso", que referiria a noiva como irmã do diretor. Terá, provavelmente, dado igual ou superior relevo ao evento, mas o eco perdeu-se para a posteridade...
Perdidas andarão também as fotos da cerimónia, porque o retrato oficial foi tirado no Porto, dias mais tarde, em estúdio, e até se conhecem vicissitudes do transporte dos trajes nupciais, ao cuidado de uma criada um pouco descuidada... O fraque do noivo chegou ligeiramente amachucado e ele, exigentíssimo com pormenores, ficou furioso (ignora-se se a criada terá conseguido arrepiar caminho para continuar ao serviço, duradouramente). Enfim, foi preciso arranjar um ferro de engomar e dar o toque necessário à perfeição. De seguida, novo motivo de irritação. Maria Aguiar era muito alta, mais do que o marido e o artista fotógrafo sugeriu que ele se colocasse num banquinho disfarçado nas dobras do vestido. Sugestão recebida pelo noivo, com grande indignação. Tanta, que ele não conseguiria recuperar o sorriso da praxe. E ela também não, como, a rir-se, retrospetivamente, contaria a filhos e netos. E, assim, a imagem não espelha a felicidade real daquele 10 de setembro.
A lua de mel terá começado no norte e continuou em Lisboa, onde passaram uns dias no belo Hotel Franqueforte do Rossio (que há muito desapareceu), e depois, num paquete de luxo, em direção ao Brasil. Uma lua de mel com história, na capital do Reino de Portugal - nos últimos dias do Reino e nos primeiros da República.. De facto estavam lá, precisamente a 5 de outubro. Uma bala atravessou a janela do quarto, sem causar dano (bala guardada como macabro troféu, por um casal de monárquicos, que muitos dos netos ainda tiveram na mão...). E o cozinheiro do hotel foi atingido e morreu. Foi nesse ambiente incerto e amargo, que deixaram o País.
No Rio de Janeiro viveriam durante uma década muito feliz.
s.Os breves anos em que habitou na Vila Maria, foram anos memoráveis.
Movimento de amigos - mesa e cadeiras verdes - laranjas amargas
Tratamento cerimonioso com a Mulher - o caso do corte de cabelo
Na travessia mesa de comandante - não enjoavam, dança com Chaby Pinheiro
Eramos felizes sem saber
A Vila Maria era, na meia década de 20 um pequeno mundo, de fronteiras traçadas geometricamente entre propriedades dos vizinhos (os que haviam vendido toda aquela boa porção de terra ao amigo António Carlos Aguiar). Nele cresciam as rosas, as árvores, as crianças... Cumpriam-se os sonhos do casal Maria e António Carlos.
Mariazinha, a sexta das crianças, era suficientemente pequena, quando a família se instalou na Vila Maria, para não se lembrar de ter habitado qualquer outro lugar. E do Pai não guardou muitas recordações - lembra-se do dia em que ele colheu morangos numa bonita cesta, e a mandou leva-los para a sua madrinha (a Tia Rozaura), na companhia de uma criada. Lembra-se de colherem e comerem fruta no quintal, o Pai, ela e a irmã Lolita (Glória Doroteia). E de diálogos jocosos, em que ele chamava à Lolita, tão morena como ele, a sua "molequinha". Ao que ela respondia: "O Papá é o meu molequinho". A mais viva recordação é, porém, a da sua morte trágica, súbita, (de enfarte do miocárdio, aos 46 anos...) Estranhou vê-lo, na sala de visitas, naquela caixa estreita, imóvel, de olhos fechados, e, quando o tocou na face, sentiu-o gelado, tentou acordá-lo, sem conseguir. Estava horrorizada. Quando vieram buscar o caixão para iniciar o cortejo fúnebre. o filho Manuel deitou-se por cima, para os impedir de levar o Pai. Foi preciso tratar dele primeiro.
Do funeral sabe-se mais pelas notícias de jornais, do que por testemunhos da família, sempre mais focada as memórias da sua vida.
A "Ordem"; escreve "faleceu o Snr António d' Aguiar, opulento e estimado capitalista, nosso amigo e assinante de "A Ordem". Contava 46 anos e faleceu repentinamente na manhã do dia 10 do corrente. Teve um funeral muito concorrido , celebrando missa de corpo presente o rev Manuel Coelho.. O extinto gosava de geral estima e porisso o seu falecimento foi muito sentido, (...)
A sombra da cruz
"Inesperadamente, quando parecia ainda ter longa vida, pois era bastante novo, faleceu na p assada semana o nosso querido amigo e assinante Snr António Carlos Barbosa Aguiar. Depois duma viagem recente que fez ultimamente ao Brazil. a sua saúde ficou de tal maneira abalada que d' ahi resultou quase repentinamente a sua morte. Deixou imersa na mais amarga saudade a sua ex-ma esposa e filhinhos. O seu funeral que foi excecionalmente concorrido, realizou-se no passado domingo, ma Igreja desta vila, organisando-se vários turnos durante o percurso. (...)
O título do jornal não está anotado no recorte. Curioso erro é a inclusão do apelido da mulher (Barbosa) no nome de António Carlos Pereira de Aguiar.
Outra constatação interessante é ser do jornal " A voz de Gondomar" (republicano). o mais completo obituário, um artigo de quase página inteira sobre um conhecido monárquico, (ainda que cunhado de alguns dos mais interventivos republicanos do concelho)..
"Mais um bom que desapareceu do scenario tumultuoso da vida ungido da recordação saudosa de todos os que o conheceram e chorado pela dor angustiosa e percuciente da família que estremeceu e idolatrou, António Aguiar, o saudoso e querido amigo que sacrificou a mocidade ao trabalho para conquistar a independência de que usufruia; o lutador austero e persistente que, quási criança ainda, abandonava a Pátria, e com a Pátria a família, para, em terras distantes e pisando o doloroso trilho do "struggle for life" , onde as ambições se entrechocam, consolidar no trabalho a garantia do seu futuro e a dos seus, acaba de tombar, sacudido pela crueldade brutal de uma "angina pectoris", que desapiedadamente o arrancou de um lar que era todo o seu enlevo (...)
Espírito de eleição consagrado ao culto da família, a que lega o inapreciável tesouro dum nome digno como poucos e o exemplo salutar duma vida impoluta,António Aguiar soubera impor-se à admiração e à amizade sincera de quantos com ele privaram, pela intensidade dos sentimentos afetivos em que vibrava a sua alma e pela galharda afabilidade do seu trato em que se espelhava toda a nobreza de um carácter nobre e honrada. Era um justo, de quem pode dizer-se que desceu à vala fria do cemitério sem uma única inimizade a empanar-lhe o brilho suave da sua chorada memória".
O funeral do saudoso extinto, que se celebrou na matriz desta vila em 10 do corrente, foi bem uma demonstração imponente da consternação provocada pelo seu desaparecimento e uma grandiosa homenagem de sagração póstuma tributada às suas virtudes e à sua memória pelos muitos amigos de antónio Aguiar , que os possuía em todas as classes sociais.
Na última parte da notícia são mencionados os turnos, em que os amigos se revezaram no transporte da urna entre a Vila Maria e a igreja matriz. Vale a pena transcrever a listagem, porque nela estão os familiares mais próximos, os amigos que eram presença constante de uma casa.sempre aberta, sempre cheia de visitas, de convívios e festas. ou os companheiros de um associativismo local, a que dava generosa contribuição.
1.º turno - António e Alberto Mendes Barbosa, o irmão Augusto Aguiar, José e Damião de Oliveira Aguiar (sobrinhos?) e Saúl Fonseca e Sousa
2.º. - Mário Ferreira (sobrinho, casadao com Isabel - Mimim - Barbosa), Adelino Garrido, Manuel Martins dos Santos, Camilo de Olivaira (o escritor e autor da monografia do Concelho de Gondomar), Alberto Martins de Moura e Artur Cabral Borges
3.º Manuel Ribeiro de Almeida, Vicente Gaspar Vieira, Doutor Agostinho de Sousa Pinto, José Coelho das Neves Junior, José de Sousa Santos e Manuel Coelho das Neves
4.º - José Marques dos Santos, Avelino Martins da Silva, António Coelho da Silva, Manuel Martins de castro Neves, Joaquim Martins Rosas e Abílio Ferreira da Costa.
5.º -Membros do Club Gondomarense, de que o finado era sócio
6.º - Sócios do Club de Caçadores, a que o extinto também pertencia.
7.º - Bombeiros Voluntários de Gondomar e João Pereira, criado do extinto.
8. - º (no percurso da Igreja para o cemitério) - Dr António Ribeiro Seixas, Dr Manuel Nunes Pereira, José Ribeiro Borges da Cunha, Eduardo Kock, Serafim Rosas e Francisco Herculano Novais de França
Um outro registo significativo é o das coroas fúnebres, colocadas junto ao ataúde: "Club Gondomarense, última homenagem", "Último adeus de Maria Irmínia Barbosa e Alexandre Mendes Barbosa; "Útimo adeus de Rozaura Barboza Marques e Manuel Marques"; Saudades de José Martins das Neves e família"; "Saudade eterna e último beijo de tua esposa"; "Último adeus de sua irmã Amélia Aguiar e esposo": Sentida saudade de seu tio João Moreira dos Santos e Maria Gomes Bessa";"Último adeus de seus cunhados Maria Celestina de Abreu Mesquita Barbosa e José barbosa Ramos";"Eterna saudade de seus filhos": "último adeus de seu amigo Dr Agostinho Emílio de Sousa Pinto".
Pela notícia, que termina apresentando condolências "à desolada viúva, Ex.ma Srnª D Maria Barbosa Aguiar e a seus filhinhos", sabemos ainda que a chave do caixão foi entregue ao Ex.mo Snr Dr José Barbosa Ramos.
Comoção no ambiente familiar e em toda a Vila de Gondomar, onde era, como transparece nos jornais, uma pessoa muito querida, das elites e do povo. A essa sua forma de estar e de viver, devemos, sem dúvida, a imagem que perdura dos Aguiar como exemplos de extrema dedicação à família, de franqueza, de generosidade espontânea, quase a parecer excessiva. e de alegria de viver. E até de uns laivos de excentricidade, em que , porém, seria ultrapassado pelos cunhados Barbosa. (criam-se, assim, "estereótipos dos "Aguiar" e dos "Barbosa", nos quais mal se enquadram muitos dos que levavam ou levam esses nomes...).
Tinha seis anos, a Lolita quatro. (a mais nova, Madalena, apenas seis meses). Não entendiam o significado do que se passava, viam mãe, vestida de preto, caída em depressão e prantos, cada vez mais ausente nas devoções da igreja. Um dos rapazes, o terceiro mais velho, António Maria. com apenas 10 ou 11 anos, deixou-nos em versos simples, de criança, testemunho único de um sentir certamente partilhado dentro das paredes da Vila Maria:
Meu Pai?
"Quem te levou, meu Pai?!... Quem te levou?
Para esse mundo assim tão azulado.
Responde...sim. Teu filho, um desgraçado
Para quem a tua ausência já chegou
Para esse mundo sem fim, quem te arrastou?
Partiste!... Fiquei só! Desventurado
Pede a Deus a quem por ti tenho rogado,
embora infeliz.., para quem tudo se quebrou.
Partiste, morreu tudo neste mundo...
E minha Mãe, oh Pai, sempre a chorar
E eu choro, desde o dia em que, moribundo,
Te segurei... morreste Pai... Agora, então,
Depois de tudo, me vês, sempre a chorar,
Chorará eternamente, Senhor, meu coração!"
Terá sido o primeiro a encontrar o pai. agonizante? Talvez, não se sabe. Desses dias de velório e funeral, a única história insólita é o da segundo filho, Manuel, (doze anos?) que se deitou sobre o caixão, desesperado, para impedir que levassem o pai da sala de casa...)
Tudo mudou, tudo continuou, mas a mãe, a senhora alegre e mundana, divertida e compassiva, transformava-se, a pouco e pouco, numa líder severa e enérgica, dentro e fora de casa, entregue tanto às tarefas de educar sete filhos, (não muito fáceis...), como às boas causas na paróquia e na terra (os pobres, os doentes, os presos e a sua família, não raras vezes, intercedendo ou dando emprego a ex.presidiários - pequenos ladrões, alguns dos quais não perdiam hábitos velhos, apesar de ela acreditar sempre neles - levando criancinhas ao batismo e promovendo casamentos em sólidas "uniões de facto"...). A Vila Maria era visitada, quase quotidianamente, por padres e seminaristas. as freiras que passavam por São Cosme eram suas hóspedes, como se fosse o prolongamento da residência paroquial... Também a organização de festejos religiosos era ali programada, e executadas tarefas várias como a fabricação, em massa, de flores de papel para os andores das procissões ou para os carros alegóricos, ou o ensaio de grupos corais, reunidos à volta do piano. Passou a ser assim, no tempo dos filhos e nos dos netos.
Apesar das profundas marcas que a partida do pai provocara no ambiente famíliar, Maria Antónia sempre se sentiu protegida e feliz dentro da Vila Maria. Eram muitos, eram naturalmente alegres e divertidos, O Tio Alexandre, foi para os meninos órfãos, um segundo pai, para a viúva, o mais amigo dos irmãos, o mais próximo, e não só porque era vizinho, Uma sua filha única tinha morrido bébé, anos antes... A Leninha ocupou esse vazio - praticamente vivia em casa dos Padrinhos, Hermínia e Alexandre, embora a Mãe não a deixasse nunca pernoitar lá. Todos os outros o viam, igualmente como figura tutelar. - bom, generoso e divertido. Nele a irmã tinha um conselheiro (exceto para as coisas da igreja, mas foi sempre em vão que ele, republicano e laico, tentou moderar os seus impulsos beneméritos e oferendas, que considerava excessivos, para as obras da paróquia....).
Presença constante, já nos tempos do cunhado e, do mesmo modo depois, era a da irmã Rozaura, casada, sem filhos, com Armando Marques, um Tio.também ele muito dedicado a todos o meninos Aguiar, e, em particular,l à afilhada, Maria Antónia. Moravam a menos de 10 minutos minutos de caminhada, por caminhos rústicos e lindos, num lugar chamado "a Pedreira" .A "casa da Pedreira" de tão boas memórias para a Mariazinha!. Ali ela era especial e única, não tinha de repartir atenções, com mais seis. E, entre os seus escritos, há pouco descobertos, há um que lhe é dedicado.
A CASINHA DA PEDREIRA
Queria voltar a ver
as camélias a florir,
as laranjas a crescer.
Queria voltar a ter
na minha mão pintaínhos
acabados de nascer
Queria voltar a ver
o jardim, a capoeira,
a horta - querida Maria -
que se enchia de canseira
Limonete ao fim da escada
Alecrim pro's ramos bentos
toda uma festa, a ramada
a casinha, tão modesta,
com o nicho e a cantareira...
Na comparação com a "Vila Maria", a "Casa da Pedreira" era modesta, mas pequena não era. Teria pertencido a uma antiga quinta, com um grande portão e um átrio espaçoso de pedra. O piso de baixo era de terra batida, servia de adega, de casa da lenha, de arrumação. As escadas de acesso ao patamar superior eram de pedra, assim como as outras duas que davam, numa extremidade da casa, para as salas e, e, na outra, para a cozinha. O primeiro andar tinha quartos enormes, ao todo oito divisões. Salas e os quartos de dormir e a sala de jantar, com mobílias muito antigas, muitas de casas dos pais (era afilha mais conservadora). A cozinha, sim, era pequena e escura, um absoluto contraste com a da Vila Maria. A criada era a Maria Póvoas, que cozinhava muito bem e tinha tempo para tudo, até para cultivar a horta e tratar das galinhas e das flores.
As janelas de guilhotina, na parte cimeira eram verdadeiros vitrais coloridos, e davam para o Largo da Pedreira, onde havia um imponente tanque comunitário, constantemente ocupado por grupos ruidosos de lavadeiras e, do outro lado, casinhas térreas, de ourives que trabalhavam filigrana de portas abertas. A casa, por certo, completamente alterada, ainda existirá... Não assim a Vila Maria. A sua vida, por desleixo e descaso de quem manda no município, foi relativamente curta, do início doa anos 20 ao fim do século, quando foi permitida a sua demolição (uma barbaridade, porque a casa com o terreno circundante teria tido fácil utilização para turismo, a mais evidente, ou para uma clínica ou um Museu, até para um centro comercial, ou condomínio de luxo, se soubessem aproveitar o enorme espaço que ladeia o edifício de época, em construções a que o ligassem harmoniosamente). Comprada por um pato bravo que faliu está hoje transformada em parque de estacionamento. Dizem. Nem a mãe nem eu o vimos com os nossos olhos, porque os fechávamos, firmemente, sempre que passávamos pelo local
A casa ficava dentro do jardim, distantes uns 30 metros da rua principal e separada de roseirais simétricos um metro mais altos e bordejados a granito, por um caminho largo, que permitia fazer à sua volta gincanas com os carros, como as que algumas vezes se organizaram. Ladeando o portão de ferro as japoneiras, de camélias cor-de-rosa. No extremo norte, à face da estrada, o mirante (que chamávamos o mirante da frente para o distinguir do mirante que ficava no outro extremo, dava, então, para um caminho de terra batida, onde agora é uma escola). Ao lado, espalhando os ramos sobre o mirante e o muro, um enorme diospireiro, A sul, também à face da estrada, o “chalet”, que fora destinado a cavalariça ou garagem, e, depois da morte do Avô, acabou arrendado a vizinhos tranquilos, gente respeitável da terra.
A simetria dos canteiros (elevados um metro acima do nível do portão e do largo espaço de acesso à casa), terminava face à entrada principal e ao seu terraço - de lado do mirante, prolongava-se até a pequena "casa do forno e à área em que o pomar confinava com as vinhas. Do lado do chalet, em frente ao grande vitral da parede sul, começava o pomar, por trás do qual se escondia, num retângulo fechado por muros de granito, a pocilga.. Vista de fora, sem porcos à vista, dir-se.ia uma longa casa térrea, discretamente avistada entre muitos troncos e ramos das árvores de frutos. Havia sempre dois porcos e, quando chegava o dia da matança, as meninas eram fechadas na sala, tão longe quanto possível, para não ouvirem os gritos do tenebroso ato sacrificial. Ouviam, mesmo longe ouviam, e recordaram o horror dos sons, sem imagem. Quem vinha executar o ritual era o dono do talho, negociante próspero e homem simpático. pai da Felismina, que era amiga das meninas e, como elas, aluna de piano da prima Nucha. Depois, era dia de comer rojões, esquecendo a sua origem trágica..
A carne de porco sobrante era guardada em arcas, antes cuidadosamente limpas com areia e, depois, cheia de quilos e quilos de sal. A mãe conhecia bem a arte de conservar produtos, frutos, por exemplo: mandava colocar as laranjas em areia, numa grande arca de castanho, ou os dióspiros, embrulhados em papel, em gavetões fechados.
Do círculo de amigas e colegas das lições de pianos d pequena Mariazinha faziam parte as "Paciências", encantadoras filhas de um dos vendedores das terras onde se implantou a Vila Maria, e as irmãs Maria Amélia e a Madalena da Estrela. Não era apelido, mas alcunha - o pai tinha construído um palacete original, em forma de... estrela.. (Antecipando o futuro em alguns anos, poderá, desde já dizer-se que há muitas fotografias do casamento de estadão da Maria Amélia, com quem, depois, perderam contacto. porque foi viver para Viana. Madalena uniu o destino a um rapaz de Avintes, contra um coro de opiniões adversas. Gostava dele, e não quis saber de mais nada. Não se conhece o desfecho, pois também lhe perderam o rasto. A Felismina viria a ser uma rapariga bonita, alta e loira e a primeira a casar, com um Ramos, a quem chamavam o "Ramitos". Contou às colegas das, pormenores pedagógicos sobre a noite de núpcias, e deixou um conselho: "Não vale a pena gastarem dinheiro na camisa de noite de núpcias. Não vale mesmo a pena...).
Ao longo da divisória com o terreno do Monteiro ficavam as ramadas com suporte em bardos, ocupando metade da quinta agrícola, desde a casa da eira ao mirante do fundo do terreno. Entre as vinhas, havia americano preto e, junto à eira, americano branco (nunca foram cortadas, escaparam ao massacre imposto por lei) e à esquerda, o "Chance la rose", que era reservado para a Avó Maria, grande apreciadora,
Os primeiros bardos eram de moscatel de Hamburgo.
O piso térreo da casa era ocupado por lojas, garrafeira e adega. Do interior, descendo a escada víamos, em frente, a garrafeira, e, passando uma porta verde, a enorme adega, com o lagar e as pipas de vinho. A Mãe recordava os homens a pisar as uvas, e, no fim do trabalho, a comer na cozinha, enormes pratos de bacalhau e carne de porco.
A mais famosa história ligada à garrafeira, aconteceu numa visita Pascal, quando era Pároco o Abade Andrade, pessoa muito discreta e cerimoniosa. Foi o Tio Serafim quem abriu as garrafas de vinho branco e de champanhe recém chegadas da garrafeira. A primeira não saiu com o estrondo habitual, parecia ter perdido força. Outras foram circulando, mas ninguém parecia ter a habitual vontade de beber. Alguém comentou "É fraquinho, perdeu a força". Quando já os hóspedes se haviam retirado, a Avó Maria decidiu fazer a prova dos vinhos e descobriu que em quase todos a percentagem de pura água era elevada - adicionada pelos filhos para substituir o original, que tinham partilhado em noites de paródia secreta com amigos...Imagine-se o sermão materno que se seguiu - dirigido mais a uns do que a outros, conforme o grau de suspeição. O Tio Zé batia de longe os demais...Uma prole sempre difícil de controlar. Eles e elas. Assim, por exemplo, das filhas só Lina a acompanhava na visitação dos doentes. M A recusava-se, firmemente e não consta que Lola e Lena fossem muito assíduas
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