outubro 23, 2009

Emigrantes - Imigrantes: a dupla pertença

Emigrantes e Imigrantes - A Dupla Pertença



1. Os expatriados têm sempre esta dupla condição de emigrantes/imigrantes, no relacionamento com um e outro dos países que marginam o seu percurso de vaivém, percurso geográfico, cultural, afectivo…
Todos sabemos que os migrantes são, em determinado condicionalismo, levados a dar sinais exteriores da sua pertença a uma outra entidade nacional, da sua etnicidade, enquanto em outros contextos, se esforçam por diluir ou esconder quaisquer diversidades de conduta ou aparência, que os distingam no mainstream, na nova sociedade.
Pensando em comunidades portuguesas dos cinco continentes, tendo a considerar que a decisão de não assumir, publicamente, essa pertença não se explica nem por um menor sentimento patriótico, nem pela quebra de laços afectivos ou de adesão aos valores de que se entretece a entidade nacional. É obviamente outra a explicação das diversas opções individuais, opções opostas tomadas, por vezes, pelas mesmas pessoas nas sucessivas fases do ciclo migratório. Ou na veste de imigrante (quando na sociedade de destino oculta a origem, a ascendência, a alteridade) e de emigrante (quando, no seu país de naturalidade ostenta as marcas da experiência de vida e de trabalho no estrangeiro – maneirismos de fala ou de traje, bons carros, a casa grande, que conta na pedra, no azulejo, na estatuária, no exotismo dos jardins, uma história de sucesso em países distantes).
A meu ver, é determinante da avaliação da imagem, mais ou menos prestigiante, do seu grupo minoritário, o olhar dos outros, o conceito da maioria. Ou melhor, a percepção subjectiva desse conceito, que pode, ou não, ser realista…
Assim, por exemplo, na Argentina, país cosmopolita e europeísta, os jovens de segunda e terceira geração assumem a ascendência portuguesa com grande à vontade. De igual modo, em nações nascidas de um mosaico de imigrações, como o Canadá e Estados Unidos, abertas ao interculturalismo, como componente essencial da sua sedimentação, igualitárias para os estrangeiros, fica mais facilitada a vivência das tradições de cada grupo, dos valores e dos direitos da nacionalidade de cada um.
Já num pano de fundo de rejeição larvada ou explicita das diversidades, com a prossecução de politicas de assimilação de imigrantes e suas culturas, se torna expectável que deixem na sombra, como que dormentes, os direitos da sua cidadania – dormentes, mas não voluntariamente perdidos, mesmo quando adquirem a do outro país, através de laços de natureza semelhante.
2. Sou partidária, sem reservas, da dupla nacionalidade – por nós aceite em 1981, antes da maioria dos Estados da União Europeia actual, muitos dos quais se mostram ainda incapazes de a consagrar.
O reconhecimento da dupla cidadania, na ordem jurídica interna, é uma mensagem clara do legislador, cujo sentido os imigrantes logo captam. Que os estimula a serem como são – parte do seu país de origem – e a transformarem-se no que querem ser: parte, igualmente, do país que os acolhe, sem complexos, sem desconfiança, sem pressão de ordem jurídica ou, simplesmente, psicológica. Sem receio de discriminação ou exclusão.
O receio é o que os pode levar, num contexto ressentido como adverso (e a existência de politicas e imigração radicalmente assimilacionistas, como as que se desenham na Europa da União não pode ter outra leitura, feita pelos imigrantes ou por meros observadores como eu…) a restringir a extroversão de hábitos, de tradições e costumes próprios, limitando-a a um círculo restrito, à intimidade da família e do grupo étnico.
Ou, pelo contrário, à revolta, exibindo a sua diversidade como um desafio, ou uma coroa de glória…
Uma reacção deste tipo terá sido desencadeada pela controversa medida da proibição do véu islâmico em França, na França laica e republicana, onde nunca se viu tantas mulheres veladas…
Sotainas, hábitos religiosos, tranças pretas de judeus ortodoxos, saris de asiáticas, saia preta e avental de mulheres ciganas – nada disso me incomoda particularmente…
A intervenção do Estado impõe-se só quando estejam em causa princípios e direitos fundamentais da pessoa humana, incluindo, obviamente, a questão de igualdade de género.
Aí, não podemos transigir! Em tudo o mais, sim, podemos e devemos.
3. O que acontece a nível individual passa-se, do mesmo modo e pelas mesmas razões, a nível colectivo, isto é, repercute, fortemente, no movimento associativo dos imigrantes.
De início, a actividade associativa é discreta, circunscrita ao âmbito do grupo, a um pequeno mundo fechado e marginal. É, de facto, o gueto de que sempre se fala, quando se fala de diásporas organizadas.
Estas reservas de estrangeiros são comummente combatidas por serem consideradas barreiras à integração dos imigrantes e seus descendentes.
Recordo que foi este o entendimento, largamente maioritário, dos participantes na 6ª Conferência de Ministros Responsáveis pelas Questões das Migrações do Conselho da Europa, que à questão deu grande importância.
Presente na reunião, na qualidade de observadora, em representação da Comissão das Migrações da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, fui das poucas vozes criticas desta visão das coisas. E apontei para contradizer a corrente dominante, casos de associativismo português, que sendo verdadeiros paradigmas de capacidade de integração, não são singulares ou raros, antes se assemelham aos de outros povos europeus, e também de muitos não europeus.
Na minha óptica, o associativismo segue a senda original da introversão ou evolui para uma crescente abertura ao exterior como reflexo da integração dos seus membros na nova sociedade.
É evidente que nem sempre assim é. O associativismo pode também servir um projecto estratégico de resistência à integração, mas convém precisar as razões e circunstâncias em que isso ocorre, sem cair na tentação de generalizar.
No que respeita à imigração portuguesa, creio que maioria das associações são, em simultâneo, um factor de preservação de um espaço cultural português – ao qual se dá tanto maior visibilidade quanto maior é a autoconfiança dos imigrantes, enquanto imigrantes bem inseridos no meio social e profissional – e um factor de adaptação à sociedade de acolhimento, isto é, de integração.
Foi assim no Brasil, nos Estados Unidos e na Argentina, há mais de um século. Assim é actualmente em França e em outros Estados europeus, no Canadá, na Venezuela na RAS, na Austrália – por todo o lado onde há comunidades nossas…
Em muitos clubes e associações se organizaram e organizam cursos de português para os mais jovens, mas também cursos da língua local, serviços de informação sobre leis, práticas, oportunidades de emprego, iniciativas de formação profissional, mediação junto de entidades públicas, troca de experiências e saberes para uma mais rápida penetração e ascensão no novo meio de todos os seus membros.
E à medida que os naturais do país entram no seu círculo de amizade e convívio quotidianos, tanto vão à casa de cada um como à casa comum, que é o clube ou um centro cultural português.
4. Os responsáveis pelas políticas de imigração nos países europeus deviam dialogar com os seus homólogos do chamado Novo Mundo, que têm mais passado e mais experiência neste domínio.
Com eles aprenderiam esta verdade simples e inelutável: não se pode neutralizar a pertença dos imigrantes à cultura de origem. Seria como separar o seu corpo e a sua alma…
O que é realmente importante é ganhar os imigrantes para a nova sociedade, criar as condições para a sua pertença afectiva ao país de acolhimento. O que passa por aceitar, naturalmente, a dupla pertença.


Espinho, 19 de Fevereiro de 2008

Maria Manuela Aguiar

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