novembro 12, 2019

Prefácio


Dizer umas breves palavras acerca de uma singular dissertação académica sobre a primeira idade de Espinho, como famosa estância balnear, é uma honrosa incumbência que aceitei com gosto, pela grande estima pessoal por Mestre Armando Bouçon Ribeiro e admiração pelo seu trabalho profissional no domínio da cultura, na cidade aqui retratada, que é a sua, e que também considero minha.
Esta obra, é, de facto, um verdadeiro retrato de época, com os mil e um rostos de Espinho, durante um quarto de século, entre 1889 e 1915, no vertiginoso processo de emergência como urbe, de construção de uma identidade própria, de um paradigma de modernidade, que perdura, inspirando e movendo sucessivas gerações.
O livro oferece uma leitura acessível e fascinante, a todos os que se interessam pela História, pela aventura humana de criar novas realidades –  círculo amplo, que vai muito para além do núcleo universitário a que, em primeira linha, se destinaria, pela erudição, riqueza de dados coligidos e seu tratamento metodológico. Mas é, evidentemente, obrigatório sublinhar a imensa riqueza de informação que carreia para conhecimento e motivação de pesquisas futuras: fontes manuscritas, arquivos municipais, livros de atas de coletividades, jornais (a Gazeta e numerosos outros, na sua maioria, efémeros…), vasta bibliografia,  muitos anexos com planos urbanísticos, mapas, fotografias de edifícios, praças, eventos, listagens de associações, espetáculos, artistas…
Mas não é menos relevante que, nas páginas de um livro tão bem concebido e solidamente alicerçado, do ponto de vista científico, nos sintamos transportados ao dia a dia de Espinho oitocentista, numa viajem encantatória ao tempo em que um belíssimo recanto da beira-mar, pequeno povoado de pescadores acobertados em modestos palheiros, se transmutou em animada praia , primeiro num vaivém estival, apoiado em pitorescas barracas de madeira sobre a areia, mas logo depois, em casas de pedra e cal, casas para morar, hotéis, cafés, comércios, flanqueando ruas de traçado geométrico. Um fenómeno coincidente com a expansão das linhas de caminho-de-ferro, a do litoral e a do interior, que em Espinho se encontraram e tornaram possível a chegada de veraneantes, vindos do norte, do sul e do leste até à Estremadura espanhola e a Madrid, e que facilitaram a instalação da fábrica de conservas Brandão Gomes, a breve trecho, líder de mercado…
O concelho de Espinho foi criado em 1889, apenas 10 anos depois de se ter convertido em freguesia da Vila da Feira. Um processo meteórico, uma “independência” contestada à partida, naturalmente, mas ganha, em definitivo, pela nova autarquia, a mostrar a influência política dos seus líderes, o empreendedorismo em todos os domínios, base da auto-suficiência económica, uma cultura expansiva – a “vivência do lugar”, que fizera da praia cosmopolita, à medida de todas as posses e de todos os gostos, uma verdadeira comunidade. Nela convivem as alteridades, o núcleo piscatório matricial, a arte xávega, a grande indústria conserveira, os espaços de diversão que se multiplicam, à vista do mar.
Em tudo isto se centra o trabalho de investigação, captando a riqueza das variantes e das mutações na urbe nascente, as práticas sociais, culturais e associativas que a animam, a mudança de mentalidades, de conceções, de destino - de sítio de passagem ocasional a terra de fixação para muitos e de praia “ terapêutica” e pacata a praia lúdica e vanguardista. Oalegre convívio nos cafés - o “café-concerto”, o “café tertúlia”, o “café-casino” -os animatógrafos, os cinematógrafos, a Praça de Touros, o Teatro Aliança, que atrai grandes companhias  teatrais,  companhias de ópera portuguesas, italianas, espanholas -  de onde veio, certamente, o estímulo para a criação de grupos locais de teatro amador, o orfeão, bandas, orquestras, grupos corais… -  os clubes elitistas, as associações populares, as feiras e romarias, as festas de rua, como as Batalhas de Flores e o Carnaval, a imprensa, que perpetua o colorido e a intensidade desses momentos… Assim se fez o que Mestre Armando Bouçon Ribeiro designa por uma “praia abrangente”, onde coexiste a diversidade de classes sociais, de tendências políticas, de interesses culturais, de modos de viver. Aristocratas, alta burguesia, pescadores, magistrados, intelectuais, lavradores, empresários… A vida mundana, a boémia, o jogo - transgressões toleradas como fontes de receitas vultosas -  a par da vida cívica e cultural colocaram Espinho entre as mais famosas estâncias balneares  de toda a península  ibérica. Na sua história estão atores como Chaby Pinheiro, Adelina Abranches, músicos como Casals ou o espinhensa Fausto Neves, pintores como Amadeo, António Carneiro, Fausto Sampaio, poetas e escritores, como Ramalho Ortigão, Junqueiro, Trindade Coelho, Miguel de Unamuno , Manuel Laranjeira,  tertúlias literárias, espectáculos, saraus, touradas, bailes… Era assim em 1915, há precisamente um século, a praia que deixou um legado de memórias e tradições de convivialidade, de harmonia ou de simples coexistência de contrários.
Espinho, cidade aberta e abrangente, ainda hoje!

Maria Manuela Aguiar

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