novembro 17, 2016
SOBRE AS ACADEMIAS DO BACALHAU
As Academias de Bacalhau estão hoje espalhadas no mundo, como
verdadeiros padrões de presença portuguesa, cumprindo uma vocação
matricial de convivialidade, que vem marcando o seu trajecto de várias
décadas, sempre a irradiar alegria, a expandir a nossa cultura e os
nossos costumes, a oferecer solidariedade a
quem precisa. A ideia que lhes deu origem é, em si mesma, uma ideia
felicíssima e singular: partir de uma simples tertúlia de amigos,
reunidos num almoço habitual, e juntar-lhe, numa fórmula que faz toda
a diferença, as componentes essenciais da cultura e da beneficência.
Mas por muito interessante que fosse este "achado", ao colocar uma
forma de associativismo lúdico ao serviço dos mais nobres objectivos
da sociedade, os seus autores não terão, com certeza, imaginado
assombrosa aventura humana em que haveria de se traduzir!
O mundo da Diáspora portuguesa era formado por um sem número de
Comunidades engendradas pela mesma vontade de preservar a identidade
nacional e de conservar os laços afectivos de ligação à Pátria, mas
que, não obstante o que as unia, permaneciam distantes e
incomunicáveis entre si.
Era preciso dar um passo em frente para formas mais englobantes de
cooperação entre instituições congéneres, entre Portugueses dispersos
no espaço geográfico dos cinco
continentes. Uma meta que, face à experiência do passado, parecia
inatingível. Seriam os portugueses, ao invés de tantos outros povos
europeus da emigração, definitivamente, avessos ao envolvimento num
amplo movimento de convergência? As Academias do Bacalhau vieram
provar que não. Ao longo de mais de quatro décadas, mostraram tanto
uma enorme capacidade plástica de se moldarem à situação e
características das sociedades em que se inseriam, como uma
surpreendente facilidade de vencer as distâncias geográficas,
estabelecendo a ligação permanente entre todas, pontuada por
Congressos Mundiais, que juntam anualmente centenas de "compadres” em
sessões de trabalho e em cordial convívio.
Este movimento converteu-se, assim, em paradigma de diálogo e
articulação de projectos a nível intercontinental, e é também o único
actuante, em simultâneo, nos mesmos moldes e com o mesmo espírito, na
Diáspora e em Portugal.
A designação "Academia" não tem conotação elitista - as regras de
tratamento no seu interior excluem, aliás, o uso de quaisquer títulos
universitários ou profissionais – antes apelam ao igualitarismo e à
camaradagem. E as Academias não têm uma sede patrimonial, pois o seu
real património é a sua gente: os “compadres e as comadres”
O lugar ímpar e cimeiro a que as Academias do Bacalhau ascenderam no
universo da emigração, ficou, evidentemente, a dever-se à qualidade
dos dirigentes. Tanto os pioneiros, como os que lhes sucederam eram (e
são) líderes de larga visão, conhecedores da importância de conjugar
esforços para consolidar e engrandecer verdadeiras comunidades em
terras
estrangeiras. Sabiam bem que estas podem datar a sua emergência e
formação nos inícios do associativismo. Podem mesmo, a meu ver,
sintetizar a sua história lapidarmente: "Associo-me, logo existo".
Este poder criador e estruturante de comunidades, em sentido orgânico,
está, de há muito, estudado e definido e é corrente distinguir, de
acordo com as finalidades principais, as instituições de assistência e
solidariedade, as agremiações de fins culturais, os clubes e centros e
recreativos. Todavia, as Academias do Bacalhau escapam a essa divisão
clássica, devido ao ecletismo e pluralidade dos seus fins e à
singularidade dos meios utilizados para os cumprir. Conseguem ser, no
estrangeiro, um elo de pertença à Pátria, e, no nosso país, um meio de
compreensão e de convivência ecuménica com a Diáspora.
Há entre os seus membros muitos emigrantes ou ex-emigrantes,
considerados, justamente, “pessoas de sucesso”. É excelente lembrar os
percursos individuais, um a um, mas não esquecendo o que tende a ser
mais subestimado: as suas realizações colectivas. Um longo
relacionamento com as comunidades de emigração, leva-me a acreditar no
papel insubstituível do associativismo, em que vejo,"um ímpeto de
Portugal", de que falava Pessoa - o ímpeto que despertou para a acção
concreta os fundadores das Academias, no sul da África, e, depois, um
pouco por todo o lado, em instituições que avançaram e cresceram à
medida dos desafios com que foram sendo confrontadas.
Julgo que o processo de descolonização de Moçambique e Angola, e, com
ele, a necessidade de valer a dezenas de milhares de refugiados, foi
um dos factores decisivos de uma rápida
evolução para patamares de actuação cada vez mais elevados, e
centrados na acção humanitária.
O regresso, em grande número, da África do Sul, anos mais tarde, terá
sido determinante na constituição de novas Academias em Portugal. Os
"compadres" retornados trouxeram consigo a saudade de África e a
determinação de retomar o contacto e o trabalho beneficente, em terras
portuguesas.
O Porto foi uma das primeiras cidades do país onde isso aconteceu
-como não poderia deixar de ser, já que, através de ilustres
portuenses, havia estado presente em Joanesburgo, no momento do
nascimento, e, depois, em todo o processo de consolidação e expansão
do movimento. E bem pode dizer-se que a imagem de marca da cidade –
capacidade de iniciativa, força de trabalho e extroversão da alegria
de viver – se evidencia, hoje, na dimensão e no dinamismo da Academia
do Bacalhau do Porto.
A fase seguinte foi a da difusão em novos destinos da Diáspora, o que
nos leva a perguntar: e agora, que futuro para as "Academias"? Em
tempo de crise sem fim à vista, num ponto de partida de grandes vagas
migratórias, fenómeno recorrente na vida portuguesa, em ciclos que se
encadearam, imparavelmente, nos últimos cinco séculos - quantos
desafios vemos pela frente!
É o momento de pormos nas Academias do Bacalhau as maiores esperanças,
apostando na sua experiência para enfrentar conjunturas difíceis e,
como é da sua natureza, fazer história em gestos de solidariedade e
simpatia.
Afirmação que avançamos, de caso pensado, com segurança, pois estamos
a falar, afinal, naquele que se transformou no maior e no mais
inovador movimento associativo dos Portugueses do mundo inteiro.
Maria Manuela Aguiar – Ex-Secretária de Estado das Comunidades Portuguesas
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