outubro 04, 2020

Coletânea Luso Galaica

Chamo-me Maria Manuela e sou de Gondomar, uma terra antiga com nome de rei godo - como outra, que, na Galiza, talvez partilhe conosco esse remoto fundador. Nasci, em junho de 1942, em casa da Avó materna, uma das chamadas "casas de "brasileiros" do norte de Portugal, e desde pequena, ouvi declamar poemas, ao som de música brasileira, e contar histórias felizes de emigração. Era uma família em que todos discutiam política, fraternalmente divididos, e em que quase todos versejavam, embora só tenham vindo a público os de um tio, autor da letra do hino de Gondomar, os de outro tio que glorificou as belezas da terra na lírica de um musical de teatro, e uma coletânea de sonetos de meu Pai, editada postumamente. Mãe e tias maternas eram, todas,  discípulas de Florbela e uma Bisavó paterna tornou-se, para mim, figura mítica como poeta repentista, cantando ao desafio em romarias populares, para além de ser admirável contadora de lendas e tradições. Logo que comecei a dominar a escrita, tentei, com menos talento, mas igual propensão, seguir esses exemplos e guardo, no fundo das gavetas, muitos cadernos manuscritos em que posso seguir a evolução da minha caligrafia dos 9 aos 16 anos,  período em que estudei num internato de Doroteias, o Colégio do Sardão. A partir do momento em que me libertei da clausura, logo me voltei,  não sei porquê, para prosa... No meu último ano do curso de Direito, (em Coimbra), alguns colegas do Porto, à frente dos quais Mário Cláudio, editámos uma revista (A Tábua), na qual o meu contributo foi um poema feminista, assinado com pseudónimo. Depois, a vida levou-me, inesperadamente, para os terrenos da política, e para uma convivência de décadas com a emigração e a Diáspora portuguesas (como Secretária de Estado e deputada). Os vários livros, os muitos artigos para revistas científicas ou jornais, que publiquei, são sobre Migrações, Direitos Humanos, Feminismo...  e Desporto (futebol), também. 
O desafio que a Amiga Ester Sousa e Sá me lançou de participar nesta coletânea, (uma honra imerecida!), levou-me a mergulhar no passado, numa torrente de versos inéditos, de cantigas de escárnio e maldizer (ah, como o Colégio era inspirador!), a sonetos, e às tão portuenses "quadras de São João". ... Não resisti à tentação de reescrever alguns desses versinhos, de incluir, igualmente, aqui e ali, modificado, dando-lhe, enfim, o meu nome, o "poema de intervenção", aparecido in "A Tábua", há 55 anos... 

Maria Manuela Aguiar dias Moreira

 - MULHER DO ROSTO DE VENTO
 Vai
Pela Terra-Mãe adormecida
 que em ti hiberna,
as mãos vazias
das rendas de outrora,
Vai dar sentido ao Dia!
Vai
Para que a Terra-Mãe
Seja em ti,
Ao chegar o momento...
Vai
Rosto de vento
Em busca de Alma!
Vai da noite moribunda
Do ter ser negado
Vai
Que agonizas
No corpo atormentado
Os sonhos adiados da manhã

2 - VIVER...
Queria ser Mulher e ter Poder,
Queria ser a monja a meditar,
Queria ser o tudo e ser o nada
Dos opostos fazer meu caminhar

 Queria ser a nuvem que se esvai,
Como a ilusão de amor de uma donzela,
Queria ser o mito de grandeza
No rasto de uma antiga Caravela

 Queria ver a lua derradeira,
E o céu na escuridão adormecer,
Para deixar, sem mágoa, sem saudade,
A breve eternidade de viver...

3 - QUADRAS DE SÃO JOÃO DO PORTO

Balão que sobe nos céus
Como miragem de vida
Leva com ele o devir
De uma promessa esquecida...

Deste-me um beijo de noite
Perfumado de alecrim
E a fogueira que saltámos
passou pr'a dentro de mim

Os balões e as cantigas
Unem-se à luz do luar
Que em noites de São João
O amor fala a cantar!

Quando saltares a fogueira,
Cuidado! Vê lá se cais...
Ao coração que se queima
O amor não volta mais!

Na manhã de vinte e quatro.
Olhando a cinza eu fiquei
Que, ao ver a cinza,  lembrava
O amor que ontem te dei...

Meninas, vamos gozar
A noite de São João
Ponham sorrisos no rosto,
Fogueiras no coração.

À suave luz da fogueira
Teu coração desenhei
O retrato em contraluz 
Sobre o meu o acharei

Quando à noite, no escuro,
Uma fogueira acendeste
Teus olhos disseram tudo
O que tu me não disseste...

Zangado estavas comigo
São João nos vai casar!
Que o amor e os santinhos
Sabem sempre perdoar...

Uma mensagem deixei 
Na luzinha de um balão,
Promessa de amor sincero
Em noite de São João

Meu Porto, que sais à rua
Nas festas de São João,
Não há no mundo cidade 
Mais fraterna - não há, não!

O Porto sem São João
Por causa da pandemia,
Sem manjerico, alho porro, 
Festa, balões, alegria...

Sem comentários: