outubro 04, 2020

AMÁLIA NOS CAMINHOS DA EMIGRAÇÃO Foram os caminhos da emigração que me levaram, indiretamente, ao encontro de Amália, a Senhora da voz assombrosa, e da personalidade mágica, que nos deslumbrava nos espetáculos, nos discos de vinil e nas histórias, verdadeiras ou efabuladas, que sobre ela corriam.... Lembrava-me do pasmo geral que causara, nos meus tempos de estudante de Coimbra, o seu casamento tardio com um Engº Seabra, português do Brasil, que a levou consigo para o outro lado do Atlântico, longe da Pátria e, por algum tempo, longe dos palcos. Já ela era um nome enorme, muito mais reconhecida e prestigiada lá fora do que na terra natal. (o que não é raro suceder...). Conhecera a emigração em seis anos de Brasil e longas estadias em Paris (onde nasceu como vedeta internacional) e na América (que a descobriu, logo depois da França). Com ela, o canto dolente da noite lisboete, rompera a estreiteza das paredes de "casas de fado" e a barreira da língua, e ascendera a alturas de grande música, disputada nos mais exclusivos auditórios dos cinco continentes. Ela era a voz, a palavra, porventura enigmática, mas sempre traduzida na intelecção de emoções e sentimentos, em partilha espontânea com todos os povos e culturas, que se abriam ao magnetismo irresistível da sua presença. Parecia impossível que trocasse um dom divino pela felicidade do comum dos mortais - e impossível foi... Em breve, voltaria a Lisboa, e aos palcos que a aguardavam em infindos pontos do "mapa mundi", com ela trazendo o marido e, assim, encerrando o ciclo migratório do casal. Em 1980, quando iniciei um trabalho, ainda inacabado, com as comunidades do estrangeiro, tive logo por anfitrião um Dr Adriano Seabra da Veiga, Cônsul de Portugal em Connecticut, prestigiado cirurgião e uma das pessoas mais generosas e influentes no meio português e americano. Na sua magnífica mansão em Waterbury, (vizinha de elegantes residências de estrelas de Hollywood na reforma), acolheu muitos compatriotas, como Zeca Afonso (em busca de tratamento), Spínola, Veiga Simão e Victor Crespo (exilados), Sá Carneiro (de passagem), e Amália, de quem havia fotos, tanto na biblioteca da casa como no gabinete do Consulado, onde o seu retrato era maior do que o do Presidente da República. No universo da Diáspora, como depressa aprendi, a dimensão simbólica de Amália justificava isso e muito mais - até na órbita de uma grande Paróquia portuguesa se chegou a projetar um museu com "memorabilia" da Diva!. O que eu não sabia é que este Seabra, médico e filantropo, era primo direito e amicíssimo de Seabra, o engenheiro, consorte de Amália, ambos sobrinhos do falecido Comendador Seabra, que fora o português mais rico do Brasil. Tomei conhecimento do parentesco, por acaso, uma vez em que falámos de Amália, a artista, naturalmente em perfeita sintonia. Depois disso, sempre que visitava Lisboa, com a mulher, Rita, convidava-me para o jantar de família com os primos - só os dois casais e eu. Logo no primeiro jantar, a empatia foi imediata. Os mais extrovertidos, Amália, Adriano e eu tomámos conta da conversa. Rita e César Seabra eram mais de ouvir e sorrir do que de falar. Amália, que então andava pelos 65 anos, estava vestida de preto, discretamente chique, e muito bem disposta, com a sua vivacidade, resposta pronta e um invariável toque de humor, qualquer que fosse o assunto em questão - a sua bem conhecida paixão pelos filmes de Fred Astaire, que, havia pouco, a salvara de depressão quase fatal, o Brasil polifacetado nas nossas tão diferentes vivências, uma certa América, sobretudo a de Adriano, cheia de peripécias extraordinárias... Encantada, com a sua versatilidade e simpatia, custava-me, porém, a acreditar que aquela senhora, com uma postura tão simplesmente "familiar", fosse Amália Rodrigues... Parecia-me, sim, uma das minhas próprias tias, da mesma idade e quase tão bonitas e engraçadas como ela (o mesmo, sabendo embora que não gostavam uma da outra, digo sempre de Agustina - se bem que fosse um outro paradigma de tia amável, uma daquelas que faziam "tricot" e doçarias e a quem não escapava nada do que acontecia à sua volta). Ao longo do memorável serão, só estranhei que antes de um qualquer comentário, repetisse "eu tenho pouca cultura", ou "eu sou muito ignorante", após o que se lançava em acutilantes observações, que revelavam ser precisamente o oposto. Porquê? Talvez porque conotasse classe política a snobismo... Como nos jantares e encontros seguintes, não mais voltou a reivindicar pretensa "incultura", convenci-me de que tinha passado no teste, sido aceite como pessoa tratável. Na verdade passara, também, o teste da amizade e continuaria a conviver, ano após ano, com a Amália, não a Rodrigues, mas a do círculo Seabra. Muitas faces ela tinha, mas, na sua tão original heteronímia, eram todas genuínas, todas refletindo a sua Verdade. não mais do que expressões diversas, condizentes com cada mundo que atravessava e em que sabia estar perfeitamente, com intuitiva compreensão dos outros, usando a sua linguagem... O mundo que partilhámos foi de risos e alegrias, não o das suas mágoas e melancolia - digamos que foi o ds folclore ou das canções ligeiras de Alberto Janes, não o dos fados de Alain Oulman, com que alcançou a eternidade. Convivemos, é certo, mais no país do que nas rotas da emigração, onde só recordo duas ocasiões em que estivemos juntas em Connecticut, na casa de Adriano, os festejos do Dia 10 de junho, em Newark, no ano em que Amália, com a faixa de "Grand Marshal" encabeçou a parada, aplaudida por cerca de 100.000 pessoas na "Ferry Street"/Avenida de Portugal, e uma viagem transoceânica para o Brasil em que coincidimos numa executiva sem muitos passageiros, quase só para nós. Conversámos longas horas, para que esquecesse estar tão longe e acima de terra firme - detestava andar de avião, e de avião andou, constantemente, uma vida inteira! Ia atuar ao Canecão, ao que suponho, pela última vez. Eu, que a ouvia, no gira-discos, quase todos os dias, desde que a conhecera, há uma década, ainda não a tinha visto em espetáculo público. No palco do Canecão, entrou, mais alta do que na vida, num deslumbrante vestido negro. Aos 74 anos. Cantando, transfigurada, para uma audiência em delírio. Era a outra, a Amália Rodrigues! Depois, no camarim, entre muitas flores, que adorava, e champanhe, que nos oferecia, reencontrei uma Amália, tangível, radiante, descontraída, à vontade no meio de amigos, de gente comum.

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