novembro 28, 2010

Sá Carneiro - na memória do País...


Um artigo que tem quase três décadas. Mais exactamente, data do 1º aniversário da sua morte. Um tempo em que ainda havia Sacarneiristas e anti-Sacarneiristas.

Hoje fala-se do "mito" que esconde a verdade humana (e, de algum modo, também a política...) de Sá Carneiro. E ao mito aderem até os mais implacáveis dos seus antigos críticos - em especial os seus detractores dentro do PSD.

Por isso deixei, por muito tempo, de falar e escrever sobre ele. Nunca de o lembrar no meu dia a dia. A sua fotografia ficou sempre no meu gabinete nos 3 Executivos seguintes a que pertenci... Continua na parede do meu escritório privado, naturalmente. Em Espinho e em Lisboa.

Infelizmente, por razões de família, não pude estar lá, na missa e, depois, na Universidade Católica, na homenagem conjunta a Sá Carneiro e a Amaro da Costa, promovida pelos Institutos que levam os seus nomes. Comprei a imprensa que lhe (ou lhes) dedicava suplementos. Passei a noite diante da tv, fazendo "zapping" entre programas que, melhor ou pior, o (ou os) recordavam.

O melhor era mesmo vê-lo e ouvi-lo, como, em tantos casos, aconteceu em directo há mais de 30 anos... A meu ver, a televisão suplantou a imprensa. Porque ele próprio lá esteve, nos grandes comícios da nossa esperança, ou no parlamento, ou em comunicações e debates. Sorrindo para nós com aqueles olhos que viam mais longe, inexcedívelmente carismático entre multidões fascinadas de seguidores, sereníssimo como Primeiro Ministro do Portugal.

Muito mais "true to life" do que os comentários escritos - quase todos desajustados, desfazados de um tempo cada vez mais distante e incompreendido, assim como da essência da sua personalidade e do seu pensamento e, consequentemente, do significado da sua participação cívica e política. Sobretudo, mais interessados nas "estórias", nas peripécias, nos traços de temperamento, nos "faits divers" , na vida privada, na faceta mundana do que na coerência das suas ideias e do seu projecto para o país. Querem, eles, sim, construir um "mito" (de preferência, colocando-lhe "pés de barro", que na realidade, do ponto de vista político, não tinha, nem tem...). É incrível que cedam à tentação de menorizar o conteúdo das suas intervenções públicas, dos seus abundantes escritos e discursos, do fio condutor da sua acção, privilegiando o "blá-blá" social e a pura intriga partidária (que não deve ser varrida para debaixo de um tapete, mas que teve a importância que teve - não tanta assim, porque o trajectória de Sá Carneiro foi imparável apesar desses acidentes de percurso). Enfim, quero com isto dizer: há nos relatos que se multiplicam, muita coisa acessória que submerge o essencial. Não são escritos de historiadores, de politólogos - são ensaios de jornalistas e outros "amadores" em terreno alheio. Nota-se... As grandes biografias de Sá Carneiro, o político, o Homem de Estado, o construtor da democracia portuguesa, estão por fazer... Nem mesmo os seus companheiros de projecto, o quiseram fazer, como em relação a Kennedy começou por ser brilhantemente levado a cabo por Arthur M. Schlesinger Jr. com o seu "A Thousend Days - John F. Kennedy in the White House".(dois anos apenas o assassinato de JFK). Dos nossos, até ver, não se poderá fazer um comentário semelhante, por ex,. ao "The Guardian": "Very much more than a gossipy bid for best-seller... a book of real distinction".

(É certo que ainda não consegui comprar o livro de J Miguel Júdice -"O meu Sá Carneiro" e acredito e espero que possa colmatar esta imensa lacuna...).

De facto, do governo de Sá Carneiro mais não há ainda do que alguns escritos ou apontamentos sobre políticas sectoriais, de um ou outro dos seus ministros, e as superficiais referências, "en passant" em publicações onde se fala mais da sua primeira e da sua segunda mulher do que do Vice-Primeiro Ministro ou do Ministro das Finanças ...

Apesar de tudo, um pouco mais glosada é a sua intervenção cívica e política no período da chamada "ala liberal" - talvez apenas porque não tinha, então, a concorrência de temas da vida privada...

(Aliás, tomemos o ex. das reportagens do 4 de Dezembro: quantos dos intervenientes da jornada televisiva foram ao ponto de citar Sá Carneiro, com as suas próprias palavras? O mais comum foi lembrarem a sua própria relação pessoal com Sá Carneiro - mais adequada a um ambiente de tertúlia ou a um simples blogue do que a análise que pretende ser de políticos ou politólogos sobre um fenómeno da cena política portuguesa - com algumas excepções, como a de Freitas do Amaral).

Schlesinger, ou Sorensen, dão-nos o quadro de trabalho de todo um gabinete, as temáticas principais, os conflitos diplomáticos, as campanhas cívicas, a luta pela igualdade racial numa América em transformação - não os problemas conjugais de Jack e Jacqueline...

Com toda a franqueza: o que me interessa é Sá Carneiro, o Político - não particularmente a sua vida de família, ou o seu quadro clínico em 1975/76 ou mesmo em 1980 - salvo na estrita medida em que ditou o seu afastamento paísou em que nos dá a imagem do homem que supera a adversidade. ( é ridículo ver, no livro de Pinheiro, detalhada a lista das prescrições de medicamentos que tomava, em vez da lista das medidas discutidas e aprovadas nos seus Conselhos de Ministros!).

Como muitos dos Portugueses que vieram a aderir ao PPd/PSD, comecei a acompanhar o percurso de Sá Carneiro em 1969, desde o momento daquele primeiro discurso, em Matosinhos. A minha adesão foi imediata. Como reformista que era e sou, achei interessante a experiência da Ala Liberal, na tentativa aventurosa de abrir o regime por dentro. Não sei se acreditei no sucesso da tentativa, em si, mas sei que acreditei sempre nos seus protagonistas e na importância de pedagogia democrática da sua intervenção. Por isso, conhecia muito bem e admirava muito Francisco Sá Carneiro, como político. Achava-o um modelo de coerência e, obviamente, muito mais previsível do que agora os seus "biógrafos" pretendem apresentá-lo... Estive invariavelmente de acordo com ele. Dizia, e mantenho, que nele o que mais apreciava eram os defeitos que os inimigos lhe apontavam, ainda mais do que as qualidades que todos lhe reconheciam...

(As questões da vida privada, quando surgiram, no fim dos anos 70, nunca me interessaram particularmente - fui ouvindo os boatos sobre separação e novo romance, sem lhes dar especial atenção. Quando houve confirmação do seu relacionamente com Snu, não tive nada a objectar - pelo contrário, pois a sua conduta regeu-se pela verdade e pela seriedade. Estou à vontade para o afirmar, justamente na qualidade de divorciada de um colega de curso, a quem, em circunstâncias parecidas, facilitei, de imediato o divórcio para que ele casasse com quem queria).

Não o conheci pessoalmente até ao momento em que me convidou para o seu Governo, em Janeiro de 1980. Momento inesquecível de encontro com a personalidade do mundo político que mais me fascinava!

Nada para mim foi mais significativo do que fazer parte da sua equipa governativa, na Secretaria de Estado da Emigração - do meu ponto de vista o melhor Governo que houve em Portugal no século passado - não havendo neste século nada de comparável. Sei que estou praticamente sozinha nesta minha convicção - à curta duração dessa experiência não atibuo relevância. É uma avaliação qualitativa, não quantitativa. Hei-de explicar as razões que a fundamentam.

Para já uma palavra sobre o "MITO":

Se falam do mito nascido depois da sua morte, por causa da sua morte trágica, retirem dessa lista todos os inúmeros Sacarneiristas que o seguiram desde a fundação do PPD! O que pensava do Dr. Sá Carneiro vivo é precisamente o que penso dele depois de 4-12-1980... Estou com tantos portugueses, da minha geração, que o "descobriram" em vida e o consideravam um líder único e insubstituível, e que tinham perfeita consciência de que ele estava a fazer História!



Comentários

Maria Manuela Aguiar disse...

Em suma, como deixei claro, prefiro biografias de políticos mais centradas no pensamento e na acção política.
Na vida pessoal eles são mais iguais a toda a gente...
Acho que não nos cabe julgar as razões do coração. O ideal é que, mesmo no plano sentimental, haja seriedade e compostura (e Sá Carneiro não nos desiludiu em nenhum desses aspectos).
Isto não significa ter de tomar partido, ter de encontrar culpados.
Nunca conheci Isabel Sá Carneiro e com Snu não troquei mais do que palavras de circunstância. Para dizer a verdade, creio que se houvesse tido ocasião de conviver com uma e outra, teria tido mais afinidades com Isabel do que com Snu - porque é do Porto e muito portuense, porque suponho que tem muitas das qualidades que Agustina atribui à figura feminina de "Os meninos de ouro". (não reconheço é Sá Carneiro no personagem masculina dessa obra menor de uma escritora incomparável...).

Não suportaria em Sá Carneiro duplicidade e hipocrisia. Ainda que no âmbito exterior à política, o não assumir a coerência neste domínio seria, no seu caso, "contra natura" - e diminuiria, para mim, a imagem integral que dele tinha.
Na primeira recepção oficial para a qual fui convocada fiquei muito surpreendida com os dizeres do convite dirigido pelo "Primeiro Ministro Francisco Sá Carneiro e Senhora". Senhora? Como não estava por dentro dos compromissos alcançados entre PR e Governo não me passou pela cabeça que a "Senhora Sá Carneiro" fosse Snu e não compreendia que o 1º Ministro tivesse chamado a mulher, Isabel, só para satisfazer a ortodoxia protocolar. Sentia-me desiludida pelo inesperado oportunismo da "cedência". Era um comportamento eminentemente anti- sacarneirista!

Quando entrei no Palácio de Sintra deparei com dois casais a receber conjuntamente os convidados: Sá Carneiro e Snu, Freitas do Amaral e Mª José. Muito sorridentes, elas deslunbrantemente vestidas (era ainda o tempo das recepções de vestidos compridos!).
Uff! Que alívio! Afinal não havia ponta de duplicidade - só um sã cumplicidade entre os dois principais responsáveis pelo governo. Sá Carneiro igual a si próprio!

9 de Dezembro de 2010 18.18...

Maria Manuela Aguiar disse...

O frio que passei nesse sumptuoso banquete no Palácio da Vila em Sintra! Era inverno rigoroso. Tinha perguntado ao jovem diplomata do protocolo de Estado se o palácio era aquecido e ele respondeu que sim. Por isso optei por um vestido de chiffon azul com desenhos pretos, sem mangas, fresco e vaporoso (comprado dias antes na Boutique Ayer). Erro crasso! A temperatura era glacial. Aqui e ali apenas apenas uns pífios aquecedores que destoavam no ambiente palaciano e não aqueciam coisa nenhuma...
Já não me lembro quem era o visitante estrangeiro ali homenageado. Para recordação ficaram a surpresa daquela recepção pelos dois casais, o requinte de todo o "décor", excepto os anacrónicos aquecedores, e a sensação de desconforto por falta de agasalho...

10 de Dezembro de 2010 22.10

Maria Manuela Aguiar disse...

Uma só vez estive à conversa com os dois durante largos minutos. Foi durante a visita do Presidente Carter. Na altura ainda não me tinha apercebido do "incidente" protocolar que impedira Snu de acompanhar a Senhora Carter numa excursão em Lisboa. Após um almoço, os presentes circulavam no salão de um dos palácios (já não sei qual...) e, de repente, ao fazer um movimento circular, quase choquei com eles.
Muito me espantei por os ver sem "entourage", longe do concorrido local onde estavam os Carter, falando um com o outro!
E fiquei eu, a contar as histórias de uma recente visita à Venezuela, envolta nas guerras costumeiras com o Conselho da Revolução, na pessoa do Conselheiro Victor Alves, qu nós então chamávamos o "Ministro da Emigração do Presidente" .( eram os tais "poderes paralelos" que FSCarneiro combatia - e nós com ele no Ministério do Negócios estrangeiros, que era uma das frntes principais sendo o "MNE do Presidente" Melo Antunes...)
Tanto assim era, que, na publicação em que se faz o balanço do Governo AD, antes das eleições de Outubro, se afirma que "O Governo recuperou para a sua esfera o domínio do Negócios Estrangeiros e o da Emigração e Comunidades Portuguesas" (cito de memória, até encontrar o livrinho, com capa das cores da AD sobre fundo branco, que está bem guardado, mas não sei aonde).
Na perpectiva do Primeiro Ministro, e de todo o Executivo, não foi pequeno feito...

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