Regressei de Coimbra a 24, depois da tomada de posse como assistente da Fac de Economia...
Nada fazia prever estar na véspera da aceleração da nossa história de águas paradas.
Hoje, é tempo de recordar, à conversa com a Docas, enquanto a RTP1 nos oferece uma
esplêndida retrospectiva das músicas de Zeca Afonso, cantadas por ele, como mais ninguém
nunca as saberá cantar,entre comentários de gente que o conheceu de perto. Não é infelizmente
o meu caso, embora o tenha ouvido ao vivo, em Coimbra. Uma das vezes no palco do Avenida,
com apresentação do Zé Carlos Vasconcelos.
Curioso como a memória é selectiva...
Ambas nos lembramos do telefonema da Tia Lola, que nos acordou às 7.00, nesse 25 de Abril :
"Meninas, não saiam de casa, há uma revolução. Estou no Rossio (todos os dias a essa hora bárbara
a tia ía à Suiça tomar o seu pequeno almoço). Estão aqui muitos militares a mandar as pessoas
embora."
Segundo a Docas, fomos logo ligar o rádio. A curiosidade era saber se o sinal da revolução era mais à
esquerda ou à direita: "Esperamos horas, não sei quantas, até termos a certeza de que o golpe tinha
conseguido derrubar o governo. Gritámos de alegria. Foi um entusiasmo enorme. Agora, Otelo, acha
que não valeu a pena. Apesar de tudo, valeu...Na altura, a extrema direita estava contra o Marcelo.
Por isso admitimos a hipótese de o golpe militar ser de direita"
A minha recordação não é bem essa: acho que a bela música "revolucionária" que gravava em fita,
enquanto ouvíamos, indicava claramente a intenção de cilindrar a ditadura. Eu estava animada e
expectante, o receio maior era ou um contra golpe da extrema direita. Creio que que saltámos de alegria
quando a noite já ia longa e vimos nas imagens da TV os rostos do novo poder - a Junta de Salvação
Nacional, com Spínola à cabeça! O aspeto, todos muito hirtos, não era o melhor, mas os nomes
tranquilizavam.
A Docas não se lembra da presença da Maria nem da Endora. Eu sim! A Maria muito assustada,
decerto pensando nas revoluções do tempo da 1ª República... A Endora, normal para cão.
Não comigo ao supermercado, nem à Livraria Ulmeiro, onde, por acaso, comprei
precisamente um disco de Zeca Afonso (Cantigas de Maio). A crédito, porque não tinha dinheiro e
a dona da livraria, que é uma simpatia, ainda me emprestou algum. Como os bancos não fecharam,
pude pagar-lhe logo no dia seguinte...
Boa mas um pouco mais difusa é a memória do 1º de Maio. No caso da Docas, apenas o
desfile entre a multidão, num dia de muito sol.
Eu estou a ver-m,e (ou a ver-nos), a pedir boleia na Av do Uruguai, em frente à pequena mercearia
fronteira à janela do meu quarto. Parou um carro velho, com um cidadão de aspecto modesto, como
o carro, mas muito cordial. Também ía para o desfile, as nossas esperanças na revolução eram
idênticas, conversámos durante uma vagarosa marcha para a Praça de Londres, onde pedi que nos
deixasse.
Seguimos a pé para o Areeiro, eu já com o meu cravo cor de rosa (pink!), comprado à esquina
do antigo Café Londres. Passámos à Mexicana, descendo a Guerra Junqueiro, até à Alameda, onde
enfileiramos na multidão compacta! Havia bandeiras e tarjas vermelhas, do PCP por todo o lado.
Passei o tempo e fugir desse enquadramento - mas quando escapava de um cartaz, já estava o seguinte,
por cima da minha cabeça. A partir do Arieiro, lembro-me de ver gente a colorir a fachada de prédios
que ainda estavam, por ali, em construção.
Subimos a Av EUA, em festa. Em paz. A conflitualidade latente entre as várias
revoluções em curso, dentro da Revolução, ficaria para depois, era tudo menos pública e notória...
,Para o vulgar cidadão, ainda estávamos todos no mesmo desfile, no mesmo barco...
Não conseguimos entrar no estádio, para ver e ouvir, por uma vez, irrepetível, Soares e Cunhal,
lado a lado.
E não nos lembrámos de como fizemos a viagem de regresso - à boleia, de novo?
Creio que não. Provavelmente recorremos a um táxi.
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maio 06, 2020
Recordando 1974, 25 de Abril
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