maio 08, 2020

Sobre o 4 de dezembro de 1980

Caro Amigo:

Sim, claro que em recordo... Estávava a jantar no "Grande Gatsby", num prédio próximo do actual Corte Inglês, com o Dr Sousa Brito. Um empregado veio, muito transtornado, dar-nos a notícia. Pode imaginar o que sentimos... Logo depois, chegou o Ângelo Correia - julgo que seria outro dos oradores no comício do Lumiar (poderei confirmar procurando na minha pasta de recortes). 
Acompanhei o Dr. Sousa Brito, que era Secretário de Estado da Comunicação Social, e outro dos oradores do Lumiar, num périplo por Lisboa, que começou na RTP - onde o Doutor Freitas do Amaral, tão transtornado como nós, gravou a comunicação ao País, num estúdio ao lado, enquanto esperávamos, uma espera demorada... - e acabou numa reunião de membros do governo, que se prolongou até de madrugada. Não recordo rigorosamente nada do que se disse. Acho que nem ouvia, só me lembro da sala grande, de muita gente, da desorientação geral, do arrastar do tempo. Um motorista deixou-me em casa por volta das 5.00.
Tenho também, vívidas e tétricas na memória, as imagens do velório no Mosteiro dos Jerónimos, os caixões, rodeados de coroas de flores, lado a lado, exceto o de Snu, que foi a enterrar, dias mais tarde, no cemitério dos Ingleses, E, no dia seguinte, a morosa, infindável travessia de Lisboa, os carros que rompiam, vagarosamente, entre multidões que saudavam a passagem da urna, como se estivessem num comicio. Deixei o meu carro não sei a quem, e segui no de Rui Machete. Foi penoso, angustiante, suportar aquela insólita reacção popular, que  acentuava a sensação de irrealidade. Queria sofrer a perda em silêncio, tal como Rui Machete, que não dizia uma palavra - não ver.me no meio de uma procissão macabra,  com "vivas" a Sá Carneiro, que estava definitivamente morto, E com ele, pensava eu, e hoje tenho a certeza, outro futuro para o País.

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