novembro 04, 2010

Sá Carneiro - o Homem e o Mito

O Homem, como político e como líder partidário nunca foi consensual. Teve invariavelmente consigo a imensa maioria da gente do seu partido, mas nunca a maioria dos chamados "notáveis".
Como já disse, fiz sempre parte da imensa maioria da gente anónima. Era uma "incondicional", mas nunca o tinha sequer cumprimentado. Via-o, de longe, nos comícios. Uma só vez estive perto dele, a poucos metros, em Espinho. A minha Mãe avançou, como é seu costume, por entre a multidão, e foi felicita-lo. Eu não me atrevi a tanto...
Conheci-o pessoalmente apenas quando já era Primeiro-Ministro. Telefonou-me para o Serviço do Provedor de Justiça e perguntou-me se podia encontrar-me com ele, às 17.00, no seu gabinete da Gomes Teixeira. Disse que sim, e adiei, logo de seguida, uma reunião marcada para essa hora. Sabia mais ou menos ao que ía, porque os jornais davam o meu nome como provável no governo AD, ainda em formação - só não sabia em que pasta.
Confesso que estava inquieta! Não tanto pelo convite que me esperava como pelo receio de não gostar da pessoa de Francisco Sá Carneiro: o meu mito!
Poderia a falta de empatia ou simpatia pelo Homem destruir o Mito?
Receava que sim. Pelo telefone, numa breve troca de palavras pareceu-me seco, distante. (eu detesto telefones, sobretudo se do outro lado não está alguém bem familiar...).
Cheguei à hora exacta, como é evidente, e fui imediatamente recebida. Não tive de esperar nem um minuto. (Tem berço, pensei instintivamente - é um Lumbrales...).
A porta abriu-se e ele veio em direcção à entrada, com um sorriso. Os olhos claros brilhavam, acompanhavam o sorriso. Um momento mágico: O Homem, com todo o seu charme, dava asas ao Mito. Absolutamente!
Assim começava, no início de Janeiro de 1980, o ano mais feliz da minha vida.
Não terei estado em mais do que uma dúzia de cerimónias com Sá Carneiro. Mas quantas vezes me telefonou, sobretudo no princípio, enquanto teve a clara percepção de que me sentia insegura!
Ligava directamente e, às vezes, enganava-se no número e falava com as minhas secretárias - que logo me passavam a chamada, emocionadíssimas.
Nunca há político que actue assim!
Será um pormenor, mas, a meu ver, muito significativo do que parece à primeira vista.
Não perdia tempo. Não se dava ares de superioridade em relação aos colaboradores. Falava aos Ministros e Secretários de Estado como quem fala a um igual, a um amigo.
Imteressava-se pelos problemas concretos. Quando me telefonava era sempre para uma abordagem pragmática das questões, ou para me me dizer uma palavra simpática, de encorajamento...
Talvez por isso tudo correu tão bem para mim - e, certamente, para quase todos os outros (não todos - alguns, poucos, não teriam lugar no governo seguinte e sem ele tiveram...).
Para esse meu ano inesquecível, que terminou prematuramente, a 4 de dezembro, muito contribuiu o facto de um entendimento perfeito, tanto entre Sá Carneiro e Freitas do Amaral, como, no que especialmente me respeita, com Sá carneiro e Freitas do Amaral, o meu Ministro...

10 comentários:

Maria Manuela Aguiar disse...

Um amigo que fiz nesses 11 meses inesquecíveis foi António Patrício Gouveia (o chefe de gabinete de Sá Carneiro). Era um jovem muito inteligente e muito bem preparado - nem de outro modo alguém como Sá Carneiro o teria escolhido para uma missão tão especialmente crucial... - e, além disso, simpático, simples, divertido!
Com ele, sobretudo nas primeiras semanas, falava quase todos os dias - sempre que tinha um problema ou uma dúvida ou um projecto interessante a discutir. Ajudou-me imenso. Não era diplomata, mas conhecia a "casa" perfeitamente... Teve sempre todo o tempo do mundo para mim, para as minhas questões, para as minhas propostas. Espero que o resto do governo lhe tenha dado um pouco menos de trabalho... Pagou o "preço" de eu confiar tanto nele e na sua opinião.
Ainda hoje me custa a acreditar que também tenha desaparecido naquele 4 de Dezembro.
Considerava-o o futuro, o Sá Carneiro da geração seguinte. Se quisesse... Mas nem sequer sei se quereria, se era era militante do PSD. O partido foi coisa de que nunca falamos!

Maria Manuela Aguiar disse...

Com o resto do gabinete do 1º Ministro as relações não foram do mesmo tipo. De Pedro Santana Lopes, por exemplo, nesse contexto, nem me lembro e Conceição Monteiro sempre me pareceu pouco comunicativa. As minhas "mensagens" para Sá Carneiro nunca passaram por ela...

Maria Manuela Aguiar disse...

Com o próprio Sá Carneiro, sim, o relacionamente era fácil. Sentia que ali estava quem me compreendia!
E desde o primeiro momento tive a impressão que ele sabia bem que estava a conhecer uma das suas mais incondicionais "fãs", à face da terra...
Falou-me como se me conhecesse de longa data, com uma surpreendente familiaridade.
Quando me dirigi a ele como "Senhor Primeiro Ministro", disse-me de imediato: "Não me trate por Primeiro Ministro!"
E eu, com o mesmo à vontade com que cruzava argumentos com os meus professores de Coimbra, respondi-lhe:
"Mas eu tenho de o tratar assim , porque sempre sonhei com o dia em que fosse Primeiro Ministro de Portugal!"
E mantive a posição: sempre o tratei por esse título!

Maria Manuela Aguiar disse...

Em matéria de títulos oficiais, aconteceu-me coisa bem pior, no dia em que tomei posse do meu 1º governo, que foi o Governo do Prof. Mota Pinto, em 1978-79.
Era então Secretária de Estado do Trabalho. Foi na Praça de Londres que entrei no carro que me estava destinado. Não guardo memória, nem da marca nem da cor, só do motorista, um homem pequeno, rosado, cerimonioso, que me perguntou, abrindo a porta traseira, com uma vénia: "Como é que Vossa Excelência deseja ser tratada? Por Senhor Secretário de Estado ou por Senhora Doutora?
"Senhora Doutora" - respondi sem sombra de hesitação, horrorizada com a alternativa!!!

Maria Manuela Aguiar disse...

Tenho muitas coisas a registar sobre esse 1º governo, que considero absolutamente decisivo para a democracia em Portugal, porque foi um governo de viragem, o primeiro de tendência não socialista. Ou seja, o primeiro de alternância, após 1974...
Mas isso fica para depois.

Maria Manuela Aguiar disse...

Voltando ao dia em que conheci Sá Carneiro:
A "convocatória" para o encontro foi tão súbita, que não tive tempo para ir a casa mudar de fato. E estava, como de costume, muito mal vestida, com um velho casaco de fazenda grossa, gola larga, desactualizada, xadrês preto e branco. Um horror!
A Branca Amaral, minha colega de gabinete na Provedoria da Justiça, muito frequentadora de meios políticos, irmã de Rui Pena e cunhada de Rui Machete, chamou-me a atenção para o facto.
E acrescentou que o Dr. Sá Carneiro era um homem muito observador, que não deixaria de reparar no casacão "demodé".
Solução encontrada por ela: emprestou-me o seu elegante casaco de peles!
Só um "senão": ela era mais pequena do que eu e isso notava-se um pouco no comprimento das mangas... Mas não demais!
E assim marchei, insegura por muitas e variadas razões, para a Rua Gomes Teixeira.

Maria Manuela Aguiar disse...

Antes de formular o convite para aquela particular Secretaria de Estado, Sá Carneiro perguntou-me se falava francês e inglês.
Não pude negar que sim, que falava...
Muito me lembrei dessa prudente cautela em governos posteriores, nos quais a mesma pasta foi ocupada por homens incapazes de dizer uma frase completa em qualquer dessas línguas...

Maria Manuela Aguiar disse...

A conversa decorreu sob o signo do insólito. Aquele Primeiro Ministro, com todo o seu carisma, não deixava ninguém indiferente: o interlocutor ou ficava intimidado ou eufórico.
Eu pertencia a esta segunda categoria.
As respostas que lhe fui dando não tiveram nada de convencional.
Quando me perguntou:"O que lhe parece ser Secretária de Estado da Emigração?" a reacção instintiva e franca foi esta: "Eu no Ministério dos Negócios Estrangeiros? Nem pensar! Ando sempre mal vestida e mal penteada."
Esta e outras semelhantes tiradas divertiam-no visivelmente...

De facto, ambos estavamos muito divertidos.
O pior foi quando o Dr. Sá Carneiro chamou o Professor Freitas do Amaral, MNE, para vir participar na conversa. Eu já não conseguia mudar de estilo e imaginava que o cerimonioso líder do CDS estaria a pensar que o outro partido convidava estranhas criaturas para integrar o executivo e que uma delas aterraria a seu lado nas Necessidades. Não sei se era ou não o que ele achava - nunca procurei averiguar. Nesse dia ele ria-se imenso. depois, sempre nos entendemos maravilhosamente, sem a mais pequena das divergências...

Maria Manuela Aguiar disse...

Acabei a conversa a dizer a Sá Carneiro que Secretária de Estado da Emigração não queria ser, mas que por ele faria qualquer outra coisa, por exemplo, colar o seu retrato nas paredes ou ir, de balde e pá, pintar a sigla AD nas ruas...

Maria Manuela Aguiar disse...

Deu-me um curto prazo de 24 horas para repensar e dar a resposta definitiva.
O 1º conselho pedi-o ao meu anterior primeiro ministro e amigo de sempre, o Prof. Mota Pinto ( que foi quem me levou para a política...).
Ele foi a favor.
Depois fui jantar com a Branca e o Rui Machete, cujo 1º cargo governamental foi a emigração.
Igualmente a favor.

No dia seguinte dei o meu "sim" ao Primeiro Ministro. Pelo telefone.